As obras inglesas de John Wycliffe inseridas no contexto religioso de sua época: da suma teológica.. por Leandro Villela de Azevedo - Versão HTML
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL
Leandro Villela de Azevedo
As Obras Inglesas de John Wycliffe inseridas no contexto
religioso de sua época: Da Suma Teológica de Aquino ao Concílio
de Constança, Dos espirituais franciscanos a Guilherme de
Ockham
São Paulo
2010
As Obras Inglesas de John Wycliffe inseridas no Contexto Religioso de sua Época
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL
As Obras Inglesas de John Wycliffe inseridas no contexto
religioso de sua época: Da Suma Teológica de Aquino ao Concílio
de Constança, Dos espirituais franciscanos a Guilherme de
Ockham
Leandro Villela de Azevedo
Tese apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em História Social
do Departamento de História
Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, para a
obtenção do título de Doutor em História Social.
Orientador: Prof. Dr. Nachman Falbel
São Paulo
2010
As Obras Inglesas de John Wycliffe inseridas no Contexto Religioso de sua Época
3
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
I. 1. Nome do candidato:
Leandro Villela de Azevedo
I. 2. Endereço Residencial:
Rua Coronel Camisão, 409, AP 104
Vila Gomes CEP: 05590-120
São Paulo - SP
F: (0xx11) 3721-9816
e-mail: professorleandrovillela@gmail.com
I.3. Nível:
Doutorado
I.4. Área:
História Social
I.5. Orientador:
Prof.Dr. Nachman Falbel
I.6. Título do Projeto:
“As Obras Inglesas de John Wycliffe inseridas no contexto religioso de sua
época: Da Bula Unam Sacta ao Concílio de Constança, Dos espirituais
franciscanos a Guilherme de Ockham”
I.7. Ano de Ingresso no Programa de Doutorado:
2006
As Obras Inglesas de John Wycliffe inseridas no Contexto Religioso de sua Época
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Dedico essa obra a todos os que
Se empenham em descobrir e divulgar a verdade, sem temer o conhecimento.
As Obras Inglesas de John Wycliffe inseridas no Contexto Religioso de sua Época
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Agradecimentos
Agradeço primeiramente ao professor Nachman Falbel, por sua
paciência e dedicação na orientação deste trabalho, indo além das funções de
um simples orientador, mas me motivando e fazendo crer em mim mesmo.
Igualmente agradeço à Shulamit, esposa do professor, por ser tão atenciosa
em seus chás e comidas exóticas.
Agradeço à minha esposa, Vanessa Martins de Lima, por ter sido além
paciente, durante o tempo em que eu precisava me dedicar ao doutorado, ter
sido ativa em me auxiliar com a revisão gramatical, em debater ideias
relacionadas aos temas aqui presentes e ter me incentivado me ajudando a ver
luz onde eu só via trevas. Igualmente agradeço à minha mãe, Suely Villela de
Azevedo, pela apoio na revisão e no financiamento da produção final das
teses. Igualmente agradeço ao meu avô Eliel Pereira de Azevedo e um
agradecimento postmorten à minha avó Emília Moreira Villela Nunes, por terem
dedicado seu tempo em minha formação relacionada à conversa sobre
histórias de Deus e me auxiliado a ter uma visão crítica perante as mesmas.
Agradeço aos funcionários da Bodeleian Library em Oxford,
especialmente aos auxiliares de baixo escalão, por terem sido tão prestativos
em conseguir o meu acesso a documentos tão raros e indispensáveis para a
criação deste presente trabalho. Igualmente agradeço aos funcionários da
Biblioteca da FFLCH da USP por terem auxiliado na liberação de acesso aos
documentos digitais de Oxford.
Agradeço a Karl Kepler, Ariovaldo Ramos, Moacir Martins, Cícero
Duarte, Rômulo Romin, Márcio Tillmann, Marco Finito por debaterem comigo
ideias presentes neste trabalho, auxiliando na reflexão das mesmas.
Por fim, agradeço a Deus, independente da forma pela qual Ele seja
compreendido ou pela religião que “delimite” em suas explicações. Pois se não
fosse o amplo clamor do coração humano da busca de algo que não lhe é
compreendido, mas de alguma forma é sentido, não teríamos homens, como
Wycliffe, Hüs ou São Francisco que dedicam sua vida à busca de uma verdade
universal, ainda que, conforme diria Wycliffe, esse conhecimento seja
deturpado e dominado por quem quer fazer uso desta para dominar aos outros.
As Obras Inglesas de John Wycliffe inseridas no Contexto Religioso de sua Época
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Resumo
O período presente entre o começo do século XIV e ano de 1418 é
indispensável para a compreensão do cenário religioso-político medieval e para
a compreensão das bases do mesmo pensamento na Idade Moderna. Neste
período temos a mudança da sede da Igreja Católica de Roma pra Avignon, o
retorno da mesma para Roma, a divisão da Igreja em dois grupos, cada um
liderado por um papa, o Cisma do Ocidente, cisma esse que dura por décadas.
Temos a ampliação do pensamento herético, a conversa entre grupos
heterodoxos, e tentativas de conciliação que nem sempre eram absolutas e
levavam até mesmo a renúncia do cargo pontifical.
Neste período viveu John Wycliffe, professor de teologia em Oxford,
tendo produzido uma série de obras em latim e outra ainda maior em inglês.
Divulgando seus ideias para o povo e criando seu próprio grupo, os Lolardos.
Esse pensador, dialogando com os grandes pensadores católicos e revendo
pensamentos de outras heresias anteriores, cria a premissa da impossibilidade
de uma igreja que fosse ao mesmo tempo autenticamente cristã e
institucionalizada ou poderosa, em sua obra The Wicket. Através de uma
argumentação racional e humanista, Wycliffe formulou, de certa forma, a base
para a reforma protestante, ao mesmo tempo que precisou ser descartado pela
mesma, após seu crescimento nos círculos de poder e institucionalização.
A melhor compreensão deste peculiar autor e de sua obra permite não
somente compreender melhor o mundo da baixa Idade Média, suas disputas
religiosas e políticas, como também aprofundar o conhecimento sobre as bases
do pensamento moderno. Além de lançar bases para a própria problematização
da estrutura do poder religioso em si, seja ele católico ou não.
Palavras Chave: John Wycliffe, Heresias Medievais, Pré-Reforma Protestante,
Teologia, Cristianismo Medieval, Filosofia Inglesa Medieval
As Obras Inglesas de John Wycliffe inseridas no Contexto Religioso de sua Época
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Abstract
The Late Middle Ages, specially the period between 1305 and 1418 is
indispensable to understand the political an religious though not only of the
medieval people, but for the comprehension of the modern ages. In this small
period of time much religious turbulence took place in Western Europe. The
capital of the Catholic Church moved to Avignon and then returned to Roma,
the Church slipt in two different factions in the Great Western Schism and each
group was leaded by a different pope, both of them considering themselves as
the sumo pontifce and the only true connection between God and men in earth.
The Schism lasts for decades and each pope define the other as the antichrist.
In this period the heretical though grown up and the attempts of
reconciliations of the groups not always become effective, in matter of fact once
even a pope renounced his post.
John Wycliffe, professor of Theology in Oxford University, lived in this
time. He produced a great number of papers in Latin and a even more great
number of papers in middle English. His ideas continued with his followers the
Lollards. This great thinker created important dialogues with the other heretical
thinkers, being one of the most important pre-reformist theologian and creating
the bases of the protestant reform. But the also created the idea that the true
Christian church would never be institutionalized neither it could be powerful. In
his sermon The Wicket, using humanistic reason, he united the words of Jesus
in the Gospels to prove that would be impossible to create a strong
institutionalized church. So, this particular paper was also put aside because it
was not interesting for the newly created institutionalized church of the 16th
century
Studding this thinker and his works, specially the Wicket is very important
to better understand not only the medieval church, but the institutionalized
church of all times.
Key Words: John Wycliffe, Medieval Heresies, Protestant pre-reformist though,
medieval theology, medieval Christianity, English medieval philosophy
As Obras Inglesas de John Wycliffe inseridas no Contexto Religioso de sua Época
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Sumário
I. Questões Técnicas
I.1. Quanto aos nomes de John Wycliffe e de Jan Hüs............................ 13
I.2. Quanto às citações documentais........................................................ 14
I.3. Beguinos / Begardos. .......................................................................... 14
I.4. Termos específicos. ............................................................................ 15
I.5. Com relação às abreviaturas utilizadas. ............................................. 17
II. Introdução
II.1. – Apresentação do trabalho. ............................................................... 21
II.2. O Século XIV – Poder Religioso x Poder Secular. ................................ 23
II.3. Heresias do século XII ao XIV. ............................................................. 25
II.4. John Wyclife. ........................................................................................ 30
II.4.A. Vida . ........................................................................................ 30
II.4.B. Principais Obras de Wycliffe. .................................................... 33
II.4.C. Principais Documentos Selecionados . ..................................... 39
III. Wycliffe e os “papistas” . ......................................................................... 41
III.1. – Definindo os Principais Temas . ............................................... 41
III.1.A. A ideia do mal – O mal racional x o Mal Espiritual . ..... 42
III.1.B. Questão da Eucaristia e da Transubstanciação . ..................... 43
III.1.C. A questão do papa e da hierarquia eclesiástica . ...................... 44
III.1.D. Questão dos dois caminhos . ................................................... 44
III.1.E. Essência do cristianismo . ........................................................ 45
III.2. A ideia do mal presente em “How Satan and his Children
turn Works of Mercy upside down, and deceive Men Therein,
and in their Five wits” . ………………………………………………………….47
III.2.A. – Analisando o Capítulo 1 . ........................................................47
III.2.B. Analisando o Capítulo 3 . ..........................................................58
As Obras Inglesas de John Wycliffe inseridas no Contexto Religioso de sua Época
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III.3 - Do átomo ao homem: Wycliffe e seu combate
à doutrina da transubstanciação. ............................................................... 69
III.3.A – Acerca da transformação do pão em carne de
Cristo e do vinho em sangue de Cristo. ............................................... 73
III.3.B. Sobre o motivo pelo qual, mesmo após a consagração,
o pão continua parecendo pão e o vinho parecendo vinho. .................. 75
III.3.C. Sobre o momento ou período em que o pão e o
vinho se transformam em corpo e sangue de Cristo. ............................ 76
III.3.D. O pão é somente a carne e o vinho é somente o
sangue, ou ambos juntos são corpo e sangue ao mesmo tempo?. ...... 78
III.3.E. A física e a fé – Como explicar a transubstanciação
mantendo as regras do mundo físico? ........ ..........................................79
III.4 – Wycliffe e o Poder Papal . ................................................................. 85
III.4.A. Definição de poder papal pela Igreja Católica . ........................ 87
III.4.B Definir o foco de Acusação de Wycliffe (Um
ou mais papas específicos ou o papado em si). ................................. 96
III.4.C. Argumentação de Wycliffe. ...................................................... 98
IV. Wycliffe e o pensamento herético
IV.1. Porque comparar Wycliffe com os outros hereges? . ......................... 124
IV.2. Definindo o foco da comparação . .................................................... 125
IV.3. Wycliffe e os espirituais franciscanos . ............................................ . 130
IV.3.A. Wycliffe e Ubertino de Casale . ............................................... 134
IV.3.B. Wycliffe, Angelo Clareno e Arnaldo de Sarrant (e a
teoria de São Francisco como o novo Cristo). ................................. 144
IV.3.C. Wycliffe e Guilherme de Ockham . ....................................... 159
IV.3.C.i As duas fontes de poder do papa ............................. 163
V – A Resposta Católica às ideias de John Wycliffe
V.1 – Wycliffe e a condenação do papa Gregório XI. ............................ 170
V.2. O Concílio de Constança . ............................................................... 195
As Obras Inglesas de John Wycliffe inseridas no Contexto Religioso de sua Época
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V.2.A. Do Concílio de Pisa à convocação do Concílio de
Constança .. ................................................................................... 195
V.2.B. Do discurso de abertura à deposição do “antipapa”
João XXIII ................................................ .......................................... 197
V.2.C. O Julgamento das Ideias de Wycliffe no Concílio
de Constança . .................................................................................. 215
V.2.D. Análise das 260 enviadas de Oxford para
o Concílio de Constança. ................................................................... 243
VI. Wycliffe e o Caminho estreito – Analisando mais
aprofundadamente a teoria apresentada no livro
The Wicket e suas possíveis consequências
VI.1. – Por que aprofundar-se na ideia dos Dois Caminhos. ................... 269
VI.2. – Wycliffe introduz a ideia dos Dois Caminhos . .............................. 271
VI.3 – Atemporalidade da regra dos dois caminhos, segundo Wycliffe .. 276
VI.3.A. – Personagens da Bíblia . ...................................................... 277
VI.3.B. – Reis de Israel : Poder Secular x Dois Caminhos. ................. 280
VI.3.C. – Os Profetas e os dois Caminhos. ......................................... 284
VI.3.D. – Jesus e os dois caminhos. ................................................... 302
VI.3.E. – Os Dois Caminhos e a Institucionalização da
Igreja Católica Apostólica Romana . .................................................. 308
VI.3.F. O aumento do poder clerical nos séculos
prescedentes a Wycliffe . .................................................................... 316
VI.3.G. Os Dois Caminhos, Avignon e o Grande
Cisma do Ocidente. ........................................................................... 326
VI.3.H. A Teoria dos Dois Caminhos após o Concílio de
Constança ................................ ......................................................... 334
VI.4. A impossibilidade da Igreja Institucional em Wycliffe . ....................... 336
VI.4.A. O Sumo Pontificado . .............................................................. 337
VI.4.B. As posses da Igreja e do Clérigos . ....................................... 345
As Obras Inglesas de John Wycliffe inseridas no Contexto Religioso de sua Época
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VII. - Apresentando Jan Hus e os Hussitas
VII.1. Obras de Jan Hus a serem analisadas . ........................................... 371
VII.2. Análise das cartas de Jan Hus. ....................................................... 375
VII.2.A. Antes do Concílio de Constança . ........................................ 376
VII.2.B. Cartas aos acusadores . .................................................... 388
VII.2.B.i. Ao Colégio dos Cardeais, reunido
em Constança. ....................................................................... 388
VII.2.B.ii. Para Zawyssius . ................................................... 390
VII.2.C. Cartas Enviadas a Grupos Populares . .............................. 395
VII.3. Sentença proferida contra Jan Hus pelo Concílio de Constança. .. 415
VIII. Conclusão
VIII.1. Considerações iniciais da conclusão. .......................................... 436
VIII.2. Autocrítica . .................................................................................... 436
VIII.3. Considerações Finais . .................................................................. 441
VIII.4.A Wycliffe e o pensamento da ortodoxia católica . .................... 441
VIII.4.B. Wycliffe e os Verdadeiros Cristãos. ..................................... 448
VIII.4.C. Hus, um Wicliffianista? . ....................................................... 450
VIII.4.D. Sobre a possibilidade de um Wycliffianismo
do século XV aos dias de hoje. .......................................................... 452
IX. Apêndices
IX.1. Apêndice 1 – Tabelas Cronológicas ................................................... 455
IX.1.A. Cronologia do diálogo entre o pensamento herético
e a ortodoxia católica na Baixa Idade Média e Início da
Idade Moderna. ................................................................................... 456
IX.1.B. Cronologia do século IV e início do V
relacionado à institucionalização da Igreja Católica
para melhor compreensão do levantamento criado por Wycliffe,
presente no capítulo “dois caminhos”. ............................................... 464
As Obras Inglesas de John Wycliffe inseridas no Contexto Religioso de sua Época
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IX.2. Lista de Pontificados dos séculos XI a XV . ..................................... 469
IX.2.A. Linhagens Pontifícias durante o Grande Cisma
do Ocidente . ..................................................................................... 470
IX.2.B. Lista oficial de papas, segundo o Vaticano, dos
séculos XI a XV. ................................................................................ 471
IX.2.C. Lista dos considerados Antipapa nos
séculos XI a XV. ................................................................................. 479
X. Anexos
X.1. Mapa demonstrando a presença de Lolardos nos
séculos XIV e XV . .................................................................................. 482
XI. Referências
XI.1. Fontes Primárias .............................................................................. . 483
XI.2. Bibliografia de Referência................................................................. 484
As Obras Inglesas de John Wycliffe inseridas no Contexto Religioso de sua Época
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I. Questões Técnicas
I.1. Quanto aos nomes de John Wycliffe e de Jan Hüs.
O sobrenome do autor dos principais documentos que este trabalho
analisa possui diversas grafias. Em diversos livros e documentos, são
apresentadas as seguintes variantes : Wycliff, Wiclif, Wicliff e até mesmo
Vicliffe. Apesar do presente trabalho ter analisado quase uma centena de
documentos do autor, o documento que deu origem ao trabalho foi The Wicket,
que, dentre todos, é o que possui a edição mais antiga. Neste documento John
Wycliffe assina o trabalho com a esta grafia, utilizando-se do Y e finalizando
com duplo F e a letra E. Embora haja diversas grafias algumas até mais
difundidas do que a utilizada aqui, este trabalho optou por utilizar-se da grafia
presente neste documento.
O mesmo ocorre também ao nome de Jan Hüs, principal seguidor de
John Wycliffe e representante de suas ideias no Concílio de Constança, onde
foi julgado e morto. Sendo originário da Boêmia, a grafia original de seu nome é
Jan Hüs. A tradução comum de Jan ao português é João, da mesma forma o
seu sobrenome Hüs é uma abreviatura de sua cidade de origem Hüssinetz. A
forma mais comum, entretanto, de grafar seu nome é John Huss, forma essa
adotada na Inglaterra e nos Estados Unidos, e que foi aderida em muitas obras
de língua portuguesa, tanto no Brasil como em Portugal. Ao mesmo tempo que
a grafia inglesa é muito comum na língua portuguesa, a grafia João é mais
rara, estando presente em menos de 30% das obras analisadas. Desta forma,
para evitar o “inglesamento” da forma original e evitar um aportuguesamento
pouco utilizado, foi escolhido a manutenção da grafia original, como ele assinou
suas obras em língua boêmia.
As Obras Inglesas de John Wycliffe inseridas no Contexto Religioso de sua Época
14
I.2. Quanto às citações documentais.
Grande parte dos documentos analisados provém do middle english.
Eles possuem sinais específicos para grafar alguns fonemas que não existem
no inglês moderno, e não existem no alfabeto latino. Como, por exemplo, o
símbolo “Þ ” que representa o mesmo fonema de “th” no inglês moderno. Já
que o objetivo deste trabalho não é uma análise lingüística ou tipográfica,
adotaremos a tradução direta ao português, fazendo as citações em língua
original apenas quando, por algum motivo específico, se fizer necessário.
Compreendemos que o mais correto seria uma transcrição completa com os
caracteres originais, posterior a essa uma transcrição para o inglês corrente e
somente após isso a tradução. Entretanto, devido à grande quantidade de
textos analisados, tamanho que o trabalho já havia assumido, preferiu-se por
uma forma mais simples que permitiria uma leitura mais corrente do texto
I.3. Beguinos / Begardos.
A ordem dos Beguinos surge como um grupo feminino no século XII,
entretanto nos séculos XIII e principalmente XIV, este grupo possui uma
presença determinante de homens. Alguns autores fazem a distinção entre
esses grupos com os nomes Beguinos e Begardos. Embora a nomenclatura
B egardos possa ser utilizada em alguns documentos, dependendo a região e
época, daremos preferência a adoção do nome Beguinos, já que é este o nome
utilizado no Manual do Inquisidor de Bernardo Gui, e esta forma adotada por
muitos dos seus estudiosos. A língua portuguesa facilita a divisão da ordem
masculina e feminina por Beguinos e Beguinas, o mesmo não ocorre com a
língua inglesa. Portanto, no presente trabalho, Beguinos e Begardos serão
utilizados como sinônimos.
As Obras Inglesas de John Wycliffe inseridas no Contexto Religioso de sua Época
15
I.4. Termos específicos.
O autor John Wycliffe utiliza-se de termos específicos que, transpostos
para a nossa época, podem oferecer dificuldade de compreensão. Por
exemplo, o autor não se utiliza do termo “católico”. Em seus textos ele faz uma
contraposição entre o termo papista e o termo cristão, como se fossem duas
religiões diferentes, opostas, e por vezes até mesmo “em guerra” uma contra a
outra. Essa terminologia de separação entre os que ele considerava os
verdadeiros cristãos e os seguidores do papa não criam, internamente em seu
texto, contradições. Entretanto, ao nos utilizarmos de termos mais modernos,
podemos enfrentar dificuldades. A princípio parece que o termo “católico”,
apesar de seu caráter universalista, não parece se enquadrar para definir
ambos os grupos “papistas” e “cristãos”. Uma vez sendo o papa, o sumo
pontífice da igreja católica, parece viável atribuir o termo “católico” ao grupo
denominado por Wycliffe de “papistas” o que daria ao grupo denominado por
Wycliffe de “cristãos” a alcunha de hereges. Entretanto a palavra heresia, vinda
do latim haerĕsis que por sua vez vem do grego αἵρεσις, que significa "escolha"
ou "opção", define um grupo que tem pensamentos dissonantes de um
pensamento religioso central. Mas, John Wycliffe, não somente discordava das
atitudes dos que ele chama de “papistas” pelo contrário, ele os define como
seguidores de satanás, ele propõe que de fato já havia ocorrido uma cisão
entre os verdadeiros cristãos e os tais papistas. Deste modo não somente a
palavra “heresia” mais tradicional para a situação encontrada em Wycliffe, mas
também a palavra “seita” parece adequada, uma vez que Wycliffe defende o
sectarismo, ou seja, a separação completa entre os “verdadeiros cristãos” e os
“papistas” (uma vez que os compreendamos como “católicos”, o sentido de
seita é estrito). Durante todo o texto houve uma preocupação especial para
impedir que essas definições de termos não atrapalhassem a compreensão do
pensamento de Wycliffe e dos seus debatedores, embora o mesmo
compreenda que, por vezes, alguma questão referente aos termos pode ter se
mantido.
Alguns outros termos igualmente presentes no trabalho podem parecer
anacrônicos, como o termo átomo utilizado no capítulo analisando o debate
entre Wycliffe e São Tomás de Aquino, no que diz respeito à
As Obras Inglesas de John Wycliffe inseridas no Contexto Religioso de sua Época
16
transubstanciação. Wycliffe, ao preparar sua resposta a São Tomás, utiliza-se
por base de argumento que o “Jesus transubstanciado” na eucaristia, proposto
por São Tomás, não tinha as mesmas características que o “Jesus que andou
entre nós”. Definindo que ele era muito mais semelhante a uma substância que
pode ser dividida infinitas vezes e estar presente em sua completa natureza em
cada uma das suas mínimas partes. O que aconteceria, por exemplo, com o
ferro, com o vidro, com a água, mas nunca com elementos complexos, como
uma pessoa, pois uma vez dividida teria-se apenas uma parte da mesma (a
mão, mas não o completo da pessoa; o dedo, mas não o completo da mão; a
unha, mas não o completo do dedo; etc.) Oras, a ideia das divisões
subsequentes de um mesmo material indefinidas vezes de modo que cada
mínima parte do mesmo garanta as mesmas características do todo, até se
chegar a uma parte tão minúscula que é indivisível, é a mesma ideia presente
no átomo (do grego, indivisível), ideia essa já existente desde a Grécia antiga.
Como a palavra átomo não foi utilizada por Wycliffe, sendo uma citação do
autor deste trabalho, pode parecer tratar-se de um anacronismo, entretanto, o
termo utilizado no citado capítulo, não se refere ao moderno modelo químico
(no qual, por sinal o átomo não é mais indivisível), mas sim à ideia filosófica
criada pelos gregos.
As Obras Inglesas de John Wycliffe inseridas no Contexto Religioso de sua Época
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I.5. Com relação às abreviaturas utilizadas
Abreviaturas de livros bíblicos: Optamos por utilizar a mesma abreviatura
proposta pela Bíblia de Jerusalém. Seguindo, portanto, a tabela abaixo:
Torá ( Pentateuco )
Gn
Gênesis
Ex
Êxodo
Lv
Levítico
Nm
Números
Dt
Deuteronômio
Profetas
Js
Livro de Josué
Jz
Livro dos Juízes
1Sm
1º Livro de Samuel
2Sm
2º Livro de Samuel
1Rs
1º Livro dos Reis
2Rs
2º Livro dos Reis
Is
Livro de Isaías
Jr
Livro de Jeremias
Ez
Livro de Ezequiel
Os
Livro de Oséias
Jl
Livro de Joel
Am
Livro de Amós
Ab
Livro de Abdias
Jn
Livro de Jonas
Mq
Livro de Miquéias
Na
Livro de Naum
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18
Hab
Habacuc
Sf
Livro de Sofonias
Ag
Ageu
Zc
Livro de Zacarias
Ml
Livro de Malaquias
Escritos ( hagiógrafos )
Sl
Livro dos Salmos
Jó
Livro de Jó
Pr
Livro dos Provérbios
Rt
Livro de Rute
Ct
Cântico dos Cânticos1
Ecl
Eclesiastes ( Coélet )
Lm
Lamentações
Est
Ester
Dn
Daniel
Esd
Esdras
Ne
Livro de Neemias
1Cr
1º Livro das Crônicas
2Cr
2º Livro das Crônicas
Outros livros do antigo testamento segundo
a versão católica
Tb
Tobias
Jt
Judite
1Mc
1º Livro dos Macabeus
2Mc
2º Livro dos Macabeus
1 ou Cantares dependendo da tradução
As Obras Inglesas de John Wycliffe inseridas no Contexto Religioso de sua Época
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Sb
Livro da Sabedoria
Eclo
Eclesiástico ( Sirácida )
Br
Baruc
Livros do Novo Testamento
Mt
Evangelho segundo Mateus
Mc
Evangelho segundo Marcos
Lc
Evangelho segundo Lucas
Jo
Evangelho segundo João
At
Atos dos Apóstolos
Rm
Carta aos Romanos
1Cor
1ª carta aos coríntios
2Cor
2ª carta aos coríntios
Gl
Carta aos Gálatas
Ef
Carta aos Efésios
Fl
Carta aos Filipenses
Cl
Carta aos Colossenses
1Ts
1ª carta aos Tessalonicenses
2Ts
2ª carta aos Tessalonicenses
1Tm
1ª carta a Timóteo
2Tm
2ª carta a Timóteo
Tt
Carta a Tito
Fm
Carta a Filemon
Hb
Carta aos Hebreus
Tg
Carta de Tiago
1Pd
1ª Carta de Pedro
2Pd
1ª Carta de Pedro
1Jo
1ª Carta de João
As Obras Inglesas de John Wycliffe inseridas no Contexto Religioso de sua Época
20
2Jo
2ª Carta de João
3Jo
3ª Carta de João
Jd
Carta a Judas
Ap
Apocalipse
As Obras Inglesas de John Wycliffe inseridas no Contexto Religioso de sua Época
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II. Introdução
II.1. Apresentação do trabalho
O século XIV é um período peculiar da história europeia no que diz
respeito ao cenário religioso católico. Para começar temos a conturbada
transferência da sede da igreja católica de Roma para Avignon, na França.
Após esse período de papado francês temos uma situação ainda mais crítica,
com o Cisma do Ocidente, onde dois papas disputam entre si pelo poder em
uma Europa dividida. Durante essa divisão que começa em 1378 e vai até
1417 temos, por décadas, o mundo católico olhando dois “sumos pontífices”,
dois “líderes máximos” da Igreja, cada qual dizendo a si próprio representante
divino e definindo o opositor como anticristo ou servo das forças malignas. A
disputa, prioritariamente de caráter político com fundo religioso, dava margem
ao surgimento de novos movimentos heréticos, uma vez que, a situação
religiosa-política, por si, já gerava a crença de que metade da Europa fosse, de
certa forma, considerada herética. Não importava qual dos lados (papado de
avignon ou papado de Roma) fosse o vencedor, o grupo que perdesse não
seria reconhecido como verdadeiros papas, mas receberiam a alcunha de
antipapa (o que já havia ocorrida diversas vezes na história2). Portanto todos
os que juraram fidelidade ao perdedor, antipapa, seriam impulsionados a
jurarem fidelidade ao vencedor, então reconhecido oficialmente como único
papa, não só a partir do concílio, mas também como único papa existente
antes do mesmo.
É neste cenário que vive John Wycliffe, professor de teologia de Oxford,
pensador focado em uma análise racional e humanista da fé e da situação
religiosa de sua época, agindo também como uma espécie de pré-historiador,
busca as origens históricas para os problemas que enfrentavam, além de fazer
algumas prospecções de possíveis rumos que o cristianismo poderia tomar.
Pensador que, ao invés de assumir um dos lados na disputa do Cisma do
Ocidente, toma a postura radical de ser contra qualquer poder papal, contra a
existência, em si, de um pontífice que tivesse em suas mãos qualquer controle
2 Vide apêndice de papas e antipapas no final destes trabalho
As Obras Inglesas de John Wycliffe inseridas no Contexto Religioso de sua Época
22
do poder secular, propondo que a verdadeira religião cristã jamais poderia
existir de forma institucionalizada ou aliada a elites seculares, pelo contrário,
que esta (a verdadeira em oposição às falsas e corrompidas) sempre seria uma
religião de minorias, opondo-se aos erros e perseguições causadas pelas
igrejas corrompidas e falsamente cristãs.
John Wycliffe, como o presente trabalho demonstra, recebeu fortes
influências de outros pensamentos heterodoxos de sua época, como dos
espirituais franciscanos, e preocupou-se em debater com os grandes
pensadores católicos da baixa idade média, como São Tomás de Aquino,
Egídio Romano entre outros. Gozando de certos privilégios reais, por ter
auxiliado o monarca em questões sobre jurisdições e impostos em seu território
e tendo trabalhos de teologia e direito canônico, John Wycliffe teve certa
liberdade para agir em um cenário menos “grandioso” e ao mesmo tempo
menos “abstrato” que é o seu conjunto de pregações populares, em língua
inglesa.
O presente trabalho está focado na análise destas obras em língua
inglesa, por serem de caráter mais prático e mais focados ao dia a dia dos fiéis,
muito embora, como é característica de Wycliffe, sejam totalmente embebidas
de um pensamento racional e de caráter humanista (e por vezes até
humanitário). Apesar da obra latina do autor receber destaque muito maior por
parte dos pesquisadores, sua obra em inglês também é vasta e seu conteúdo
de imensa importância para a compreensão deste mundo religioso controverso
que a Europa (em especial a Inglaterra) vive nos primeiros anos após a Cisma
do Ocidente.
Entre as obras analisadas, os comentários do mesmo sobre o
testamento de São Francisco, onde Wycliffe claramente toma postura de
defender os espirituais em detrimento à ordem franciscana institucionalizada,
temos sermões ligados à vida de Jesus e comparações demonstrando como a
igreja institucionalizada de sua época (independente do pontífice que apoiasse)
estava em completa contradição não somente com os ensinamentos falados de
Jesus, mas especialmente em contradição com a sua prática. E por fim, a obra
The Wicket, praticamente esquecida pela história e com única publicação em
meados do século XVI, que defende claramente a impossibilidade de uma
igreja ao mesmo tempo cristã e institucionalizada ou poderosa, demonstrando
As Obras Inglesas de John Wycliffe inseridas no Contexto Religioso de sua Época
23
assim não somente seu pensamento contrário às “duas igrejas católicas” de
sua época, mas também, demarcando seu pensamento contrário à qualquer
institucionalização posterior, portanto em oposição também às futuras igrejas
protestantes que seriam institucionalizadas nos séculos XVI e posteriores.
II.2. O Século XIV – Poder Religioso x Poder Secular
Segundo o autor Richard William Southern em seu Western Society and
the Church in the Middle Ages3, o século XIV vê ao mesmo tempo dois
fenômenos, por um lado o crescimento da estruturação monárquica, criando
governos mais estáveis e com poder mais bem definido, ao mesmo tempo que
o papado enfrenta profunda instabilidade (o que, segundo ele, não define uma
perda de poder, apenas uma instabilidade gerada pelo excesso de poder).
Seguindo essa linha de pensamento, define-se basicamente pela ideia
de que a estruturação política em pequenos núcleos se dava de forma mais
simples e mais efetiva, podendo criar novas estruturas, apoiando-se em novo
aparato legal, econômico e militar, e definido em um espaço mais restrito.
Ainda que não estivesse tão articulado com pretensões teóricas4, o seu poder
ia aumentando em força e independência, e tal evolução, a princípio, não
entrava em conflito com a supremacia papal, uma vez que esta se mantinha
tranquila sob elaboradas teorias de que o poder papal estabelece um reinado
universal e divino, sobre os poderes seculares, que podem muito bem se
desenvolver. Assim sendo, a teoria da supremacia papal no século XIII garantia
a não preocupação da igreja com relação ao crescimento dos poderes políticos
crescentes pelos governos seculares.
Já o começo do século XIV viu que tal estabilidade entre poder secular e
religioso estava muito longe de ser duradoura. Por um lado o aumento da
autonomia dos poderes seculares, muito embora não pudessem ainda ignorar
o poder religioso supremo sobre eles, poderiam criar estruturas que apenas
buscariam o natural acréscimo de poder secular, mas que abalariam as
instituições vigentes. Por outro lado, a melhor estruturação secular permitia que
governos pudessem, em certa medida, ignorar a presença religiosa, como uma
3 Publicado pela Penguin Books em 1970
4 Idem, p.48
As Obras Inglesas de John Wycliffe inseridas no Contexto Religioso de sua Época
24
presença apenas paralela e de importância que iria diminuindo no decorrer do
tempo, especialmente no que diz respeito ao crescimento contínuo das cidades
e do comércio, que criava uma igreja mais ligada à religião pessoal do que
ligada a grandes debates políticos ou teológicos5. Esse é o caso da Inglaterra,
ao desenvolver, por exemplo, detalhada legislação antipapal, que embora fosse
utilizada em assuntos específicos de disputas de jurisdição, nunca se opunha
oficialmente ao papado como um todo6. E por fim, uma vez que não se pode
ignorar o poder religioso pode-se querer controlá-lo, o que vemos no caso do
papado de Avignon7.
Se o crescimento do poder secular gerava possibilidade de problemas
para o papado, a própria estrutura hierárquica criada pelo mesmo gerava
outros problemas a si próprio. Por um lado a tendência universalista e
intensamente hierarquizada dava à Igreja Católica uma forma não eficiente de
dominação, muito mais pesada, instável, passível de disputas internas e
poderes paralelos do que os poderes seculares. Por outro lado o foco na
teorização teológica dos problemas, por vezes, gerava um distante abismo8
entre o que a Igreja dizia que pretendia fazer e o que de fato fazia. Por último, a
questão religiosa pretendendo a si própria como representante de um Deus
inerrante, precisava sempre revalidar todas as decisões e pensamentos
precedentes, de modo que cada solução apresentada a um determinado
problema, também poderia ser exatamente a causa do subsequente.
Por fim, a crise do poder papal também se dá intensamente por
problemas vindos de dentro da própria Igreja. Cada vez mais era patente a
distância entre teoria de prática, entre os valores que geriam uma ação e o
resultado final da mesma. A distância entre os valores e vivência dos primeiros
cristãos presentes no evangelho e a vida religiosa do século XIV, se
assemelhando muito mais às elites romanas ou judaicas, perseguidoras dos
primeiros cristãos, do que aos próprios cristãos em si, perseguidos por elas.
Abrindo assim margem ao crescimento ainda maior das heresias. Ao mesmo
tempo que as conciliações feitas no século anterior das ordens mendicantes
5 Idem, P. 47
6 Idem, P.51
7 NELSON, Lynn Harry, The Avignon Papacy, The University of Kansas, in
http://www.vlib.us/medieval/lectures/avignon.html
8 SOUTHERN, Western Society and the Church in the middle ages, p. 48
As Obras Inglesas de John Wycliffe inseridas no Contexto Religioso de sua Época
25
como incluídas na igreja (caso de São Francisco, por exemplo) geraram novas
heresias buscando serem mais fieis aos pensamentos de seus criadores, do
que a gradual proximidade entre os novos seguidores e as práticas até então
criticadas pelo criador (como o embate entre os espirituais franciscanos,
considerados heréticos e os franciscanos “oficiais”).
II.3. Heresias do século XII ao XIV
A presente seção desta introdução tem como objetivo apresentar ao
leitor, de forma sucinta e resumida, as principais heresias da Baixa Idade
Média. A escolha por uma listagem mais simples e de menor profundidade foi
feita para facilitar um conjunto de dados iniciais mais simples, de modo que a
complexidade será estabelecida nos capítulos posteriores quando a relação
entre o pensamento de Wycliffe for estabelecida com alguns dos pensamentos
heréticos citados abaixo.
A escolha das principais heresias encontradas aqui é feita mediante dois
critérios, primeiramente segundo relevância estabelecida pela obra Heresias
Medievais de Nachman Falbel, e como segundo critério a importância de tais
pensamentos na obra de Wycliffe e as relações que os capítulos seguintes
conseguiram estabelecer com esses pensamentos.
Para facilitar uma visão panorâmica das heresias medievais, foi criado o
apêndice 1.a, uma cronologia onde as principais datas referentes aos
pensamentos heréticos foram isoladas. Uma explicação mais detalhada da
cronologia está presente no próprio apêndice citado.
Em linhas gerais temos um grande crescimento do pensamento herético
na Europa Ocidental a partir do século XII, pensamento esse que de forma
multifacetada avançará por diversos setores da sociedade medieval, do
campesinato ao clero, abarcando milhares de pessoas. Essa evolução
continuará, apesar de diversas respostas da Igreja Católica, culminando nos
séculos XIII e XIV com elaborados pensamentos teológicos, políticos,
filosóficos, que de certa forma poderão interagir entre si, conforme podemos
provar na análise da obra de Wycliffe.
As Obras Inglesas de John Wycliffe inseridas no Contexto Religioso de sua Época
26
Ao contrário das heresias dos primeiros séculos do cristianismo, as
heresias da Baixa Idade Média possuem um caráter muito menos teológico ou
filosófico, e tomam uma crítica muito mais das práticas da instituição
eclesiástica. Desta forma estas heresias tornam-se muito mais populares, de
modo que estes séculos chegam a ser chamados de séculos heréticos, pelo
professor Nachman Falbel9
Apesar dos pensamentos heréticos possuírem entre si muitas
diferenças, tanto de caráter filosófico e de argumentação, como especialmente
de prática, há algumas semelhanças básicas que podem ser aplicadas
praticamente a qualquer um deles. A crítica ao distanciamento entre as práticas
da igreja contemporânea aos hereges, e a prática de pobreza, humildade e
caridade da igreja primitiva. A crítica aos meios de dominação criados pela
igreja, tanto em sua hierarquia, como em instrumentos criados para tal. Alguns
grupos heréticos pretendiam a renovação da igreja como um todo; outros
pregam apenas a separação entre um grupo renovado e uma igreja decaída e
terrena que sobraria; por fim, alguns grupos apenas se limitam a criticar e não
a propor uma solução específica em si.
Conjuntamente com os pensamentos heréticos também vieram as
respostas da Igreja Católica aos mesmos, em 1148 já temos, no Concílio de
Verona, o estabelecimento que os soberanos deveriam empenhar-se, ao lado
da lei civil e canônica, para o extermínio das heresias10; em 1215, o 4º Concílio
de Latrão, decretou medidas contra os senhores seculares caso protegessem
heresias em seus territórios, tendo como possível punição a esses até mesmo
a perda de seus domínios; e por fim, em 1229, temos criado o Tribunal do
Santo Ofício, no Concílio de Toulouse11. Pouco a pouco a prática inquisitorial
acabou gerando verdadeiros manuais inquisitoriais, como no começo do século
XIV, o Practica Inquisitionis Haereticae Praevitates de Bernanrdo Gui. Esses
manuais permitiam, através de descrições detalhadas dos pensamentos
heréticos e das práticas realizadas por esses grupos, identificar possíveis
membros e trazer sobre eles a culpa. Com certa ironia histórica, as descrições
contidas em tais manuais auxiliaram, de alguma forma, na manutenção das
9 FALBEL, Nachman, Heresias Medievais, p. 13
10 Idem, p.. 16
11 Idem, p. 17
As Obras Inglesas de John Wycliffe inseridas no Contexto Religioso de sua Época
27
ideias heréticas até os dias de hoje, servindo como documentos a historiadores
para uma melhor compreensão daqueles pensamentos, uma vez que grande
parte de suas produções originais foram destruídas.
Segue,
abaixo,
portanto,
alguns
dos
pensamentos
heréticos
selecionados:
Chama-se de Lolardos o conjunto dos seguidores de John Wycliffe na
Inglaterra, que continuam pregando seus ensinamentos após sua morte. A
origem do nome “Lolardo” é incerta, uma das possibilidades é que o nome
tenha se originado do holandês lollaerd, murmurar. Mas também existe a
possibilidade de que tenha vindo do latim lolium ou ainda do middle english:
loller. Neste caso a referência é a palavra low de baixo, pequeno, mas
normalmente no caráter pejorativo, de inferior, atribuído às classes mais
baixas, como sinônimo de “vagabundo” ou “imprestável”. No caso “lolium” é
uma variedade de joio, planta muito semelhante ao trigo, mas que não produz
sementes comestíveis.
Todas as citadas origens do nome são possíveis. Murmúrio, referindo-se
ao hábito dos lolardos terem costume de ler, uma vez que se utilizam tanto da
tradução ao inglês feita por Wycliffe do novo testamento, como das obras
inglesas do mesmo autor, então o murmúrio seria provocado pela leitura em
voz baixa. Embora também haja a possibilidade de “murmuradores” no sentido
de, ao invés de pregarem a derrubada da Igreja Católica ou do papa, indo
abertamente contra a mesma, preferissem fazer suas pregações aos
pequeninos e aos clérigos menores, portanto sendo apenas murmúrios e não
gritos. A possível origem latina referindo-se ao joio, tem seu embasamento na
possível nomenclatura dada pela Igreja Católica, demonstrando que os lolardos
se assemelhavam muito aos católicos, pois tinham um discurso racional
preciso e respondendo aos grandes pensadores medievais; entretanto, assim
como o joio se assemelha ao trigo mas não dá sementes comestíveis, também
os lolardos no fim, não produziriam bons frutos. A referência ao joio é bíblica12.
Por sua vez, a referência do middle english poderia se dar pela pregação em
língua popular, feita para os pequeninos e permitindo a participação deles
12 Mt 13, 24-40
As Obras Inglesas de John Wycliffe inseridas no Contexto Religioso de sua Época
28
indiscriminadamente no grupo dos lolardo, portanto o grupo dos pequenos,
semelhante às ordens mendicantes.
Os Lolardos começam como um movimento estritamente teológico e, ao
menos em seus primeiros anos, não possuem outro caráter que não esse.
Entretanto, aos poucos, o teor de suas pregações começa a gerar lutas sociais,
rebeliões e discursos políticos13. Originalmente entre os lolardos havia grande
quantidade de teólogos e de nobres feudais, especialmente por causa dos
trabalhos de Wycliffe acerca da não-validade dos impostos clericais, sendo que
até 1381 temos na figura de cavaleiros anti-clericais um grupo que fortemente
apoiou Wycliffe, sendo essa postura14 mantida ao menos até 1395. Porém, a
crítica, inicialmente centrada à Igreja Católica, começa a tomar mais caráter de
crítica à estrutura social, e a divulgação das ideias de Wycliffe toma forma de
panfletos, tendo ampla divulgação na Inglaterra e posteriormente fora dela.
Esse caráter mais social da crítica de Wycliffe fará com que a monarquia
inglesa que a princípio havia, em certa medida, acobertado o teólogo, agora
apoie a perseguição aos seus seguidores. Declaram que, embora não vissem
erro teológico nas apresentações de Wycliffe, a má interpretação da mesma
poderia causar a destruição do Estado15.
Por volta do ano de 1410 o termo lolardo já toma uma conotação
bastante negativa16, aparecendo destacado junto com motivos de condenações
por roubo ou assassinato, sem que, conjuntamente a isso houvesse qualquer
julgamento religioso ou disputa teológica. Isso será ainda mais acentuado após
o Concílio de Constança, quando a obra de Wycliffe será considerada
oficialmente herética e proibida pela igreja católica.
Nada indica que os lolardos tivessem qualquer tipo de organização
hierárquica ou institucional, na verdade qualquer organização mais complexa
dos mesmos seria, como veremos mais adiante, ferir alguns princípios básicos
pregados por Wycliffe. Desta forma é mais difícil de estabelecer exatamente o
número de lolardos, ou como as ideias de Wycliffe são transformadas no
passar dos anos. Entretanto sabemos claramente que elas se mantiveram
13 ASTON, Margaret , Lollards and reformers: images and literacy in late medieval religion, p.2
14 Enciclopédia Católica, verbete Lolardos
15 ASTON, Margaret , Lollards and reformers: images and literacy in late medieval religion, . P.3
16 Idem, p.8
As Obras Inglesas de John Wycliffe inseridas no Contexto Religioso de sua Época
29
firmes na Inglaterra no começo do século XIV e serão posteriormente
espalhadas pela região do Sacro Império e reinos do oriente europeu.
Apesar das ideias de Wycliffe estarem intimamente ligadas ao
movimento dos Lolardos, e da importância deste pensamento para a Inglaterra
e para a Europa do século XIV, uma vez que o próprio Concílio de Constança
se preocupa em expurgar tais pensamentos do seio da Igreja Católica, este é
um grupo relativamente pouco conhecido, sendo que a maior parte dos
trabalhos realizados sobre o mesmo centra-se nos comentários bíblicos ou em
textos escritos por Wycliffe, ainda assim em apenas parte destes,
especialmente os latinos e os seus comentários da tradução do novo
testamento à língua inglesa17
17 HILTUNEM, Risto & SKARRARI, Janne, Discourse perspectives on English: medieval to modern,
p.105
As Obras Inglesas de John Wycliffe inseridas no Contexto Religioso de sua Época
30
II.4. John Wyclife
II.4.A. Vida
Seu nascimento se dá por volta de 1320 em algum local incerto da
Inglaterra, em algum vilarejo nos arredores do castelo de Richmond18
Provavelmente tenha estudado em Merton em 1356. É difícil descrever como
ele faz sua vida em Oxford, havendo mesmo documentação contraditória de
sua presença em dois locais ao mesmo tempo19.
O certo é que, mesmo antes que sua fama se espalhasse por fora de
Oxford, ele fez uma importante carreira nesta universidade. Tendo participado
de disputas filosóficas de diferentes correntes, e suas aulas eram sempre
lotadas, mesmo antes de qualquer trabalho relacionado à política clerical, com
as quais ganhará importância muito além das paredes universitárias. Em 1366
ele publica Determinatio quedam de dominio 20 apoiando o parlamento inglês
contra o pagamento exigido pelo papa Urbano V.
Ele somente consegue sua titulação de doutor em teologia em 1372.
Dois anos após foi um dos enviados reais para Roma em negociações com a
Cúria. Em geral foram colocadas petições da câmara dos comuns, porém o rei
mantém sua ligação com o papa, fazendo com que a reunião não tenha
nenhum tipo de fruto real.
Sua vida, então, passa a ser ainda mais dedicada ao estudo e difusão
de suas ideias filosóficas e acadêmicas. Entre as questões mais debatidas
encontra-se a clássica disputa sobre o livre-arbítrio e a Providência Divina21. Há
certa dificuldade em conciliar ambos os conceitos em uma mesma linha
racional. Como pode o homem ao mesmo tempo ser livre para tomar qualquer
decisão que lhe aprouver e Deus ter o controle de tudo? Segundo Wycliffe a
Providência Divina era superior e não havia possibilidades e alternativas, sendo
que cada ação tomada pelo homem seria a única ação possível a ser tomada
18 LAHEY, Stephen E, John Wyclif , p.4
19 British Encyclopedia, v. Wyclife
20 Embora haja contestações, como de Loserth, que esse documento teria sido escrito somente 8 anos
depois.
21 Tal questão é comum não somente no cristianismo, mas em todas as religiões monoteístas, uma vez que
estas não negam o livre-arbítrio humano, mas têm sua fé alicerçada sobre um Deus onipotente, onisciente
e onipresente.
As Obras Inglesas de John Wycliffe inseridas no Contexto Religioso de sua Época
31
por ele, já previamente sabida e determinada por Deus, desta forma
praticamente reduzindo a zero o livre-arbítrio.
Uma de suas obras mais importantes foi De Civili Dominio, que
argumentava que a Igreja não deveria interferir em assuntos seculares, e que o
luxo da igreja e a posse de excessivos bens materiais por parte do clero era
algo pecaminoso. Apesar disso, tal obra não foi considerada a princípio um
ataque aberto à igreja, sendo que o papa Gregório XI ao invés de proibir a obra
condenou apenas 19 de suas conclusões.
No mesmo ano, ele chegou a ser consultado pelo parlamento inglês
algumas vezes sobre questões fiscais relacionadas à Igreja. A Universidade de
Oxford fez uma defesa de seus pensamentos, dando-lhes mais embasamento
filosófico e dizendo que deveriam ter sido mal interpretados em sua primeira
leitura. Antes mesmo que fosse convocado, ele compareceu por conta própria
e havia preparado uma defesa cautelosa perante a Igreja, entretanto essa
reunião foi cancelada por uma multidão acompanhada de um mensageiro da
princesa de Wales, ordenando a interrupção de seu julgamento.
Ele é convocado pelo parlamento diversas vezes após isso, mas destas
vezes por questões ligadas a outros assuntos, como, por exemplo, a “invasão”
que enviados da nobreza teriam feito ao santuário de Westminster em uma
perseguição a ladrões, sendo que um destes foi morto dentro do santuário.