As vozes de Chico Buarque em inglês: tradução e linguística de corpus por Sérgio Marra de Aguiar - Versão HTML
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LINGUÍSTICOS E
LITERÁRIOS EM INGLÊS
SÉRGIO MARRA DE AGUIAR
As vozes de Chico Buarque em inglês: Tradução e Linguística de
Corpus
São Paulo
2010
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LINGUÍSTICOS E
LITERÁRIOS EM INGLÊS
SÉRGIO MARRA DE AGUIAR
As vozes de Chico Buarque em inglês: Tradução e Linguística de
Corpus
Tese apresentada à Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da USP, para a
obtenção do título de Doutor em Estudos
Linguísticos e Literários em Inglês, sob a
orientação da Profa. Dra. Stella Ortweiller
Tagnin.
São Paulo
2010
(Ficha catalográfica)
Sérgio Marra de Aguiar
As vozes de Chico Buarque em inglês: Tradução e Linguística de
Corpus
Tese apresentada à Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da USP, para a
obtenção do título de Doutor em Estudos
Linguísticos e Literários em Inglês, sob a
orientação da Profa. Dra. Stella Ortweiller
Tagnin.
Banca Examinadora:
São Paulo, de de 2011.
Prof. Dr. Lourdes Bernardes Gonçalves – UFC
Prof. Dr. Anthony Berber Sardinha – PUC-SP
Profa. Dra. Lenita Rímoli Esteves – USP
Prof. Dr. John Milton – USP
Profa. Dra. Stella Ortweiller Tagnin - Orientadora
Para Daniel e Luana, que me traduzem o significado da vida todos os dias.
Agradecimentos
À Profa. Dra. Stella E. O. Tagnin, pela inestimável orientação, pela confiança em
mim depositada e pelo incentivo constante;
Aos Professores John Milton e Carmem Dayrell, pelas contribuições no exame de
qualificação;
À CELIN do Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia,
pela liberação de minhas atividades acadêmicas para a realização desta pesquisa;
Ao autor Chico Buarque de Hollanda, por ter me recebido para uma entrevista sobre
as traduções de suas obras literárias;
Aos tradutores Alison Entrekin, Clifford Landers e Peter Bush, as vozes de Chico
Buarque em inglês, por terem gentilmente concordado em conversar sobre suas
traduções;
À editora Liz Calder, pela entrevista a mim concedida;
À CAPES, pela concessão da bolsa sanduíche para a realização de um estágio no
Programa de Dourado em Translation and Intercultural Studies da Universitat Rovira
i Virgili, Tarragona, Espanha, sob a supervisão do Prof. Dr. Anthony Pym.;
Ao Prof. Dr. Anthony Pym, pela orientação durante o estágio da bolsa sanduíche
realizado na Universitat Rovira i Virgili;
Aos Profs. Itamar Even-Zohar e Harish Trivedi, pelas sessões de orientação
realizadas durante o Spring Seminar promovido pelo Intercultural Studies Group do
Departamento de Filologia Anglogermânica da Universitat Rovira e Virgili, em maio
de 2008;
A todos os colegas do Projeto COMET, USP, SP, pela amizade, solidariedade,
cooperação acadêmica e também pelos memoráveis momentos de descontração;
Às estimadas colegas e amigas Profas. Betina Rodrigues da Cunha, Daisy
Rodrigues do Vale, Paula Arbex e Vera Santiago, pelas interlocuções e pelas
diferentes e especiais formas com que me apoiaram durante esta trajetória;
Ao Fernando e ao Altair Jr., pelo valioso suporte técnico;
Aos amigos, pelo incentivo permanente;
À minha família, pelo carinho, pelo apoio incondicional e por compreender as minhas
ausências.
[ ...] in the course of my experience as a translated author I have
always been torn between the need to have a translation that
respected what I believed to be my intentions, and the exciting
discovery that my text, independently of my early intentions, could elicit
unexpected interpretations and be in some way improved when it was
re-embodied in another language.
Umberto Eco
( Mouse or Rat? Translation as negociation)
RESUMO
O notável talento de Chico Buarque em lidar com as palavras, assim como sua
participação nas traduções de suas obras literárias para o inglês, são o fio condutor
desta pesquisa de doutorado, em que se investigaram as traduções de Estorvo,
Benjamim e Budapeste. A Linguística de Corpus foi utilizada como base
metodológica para investigação do corpus de estudo, composto pelas referidas
obras originais e traduzidas. Utilizando-se o programa computacional WordSmith
Tools, de Mike Scott, foi extraída do corpus de estudo, uma lista de palavras-chave
que serviu como ponto de partida para uma análise qualitativa das traduções,
focando o aspecto da recuperação da criatividade lexical do autor pelos tradutores.
Os resultados desta análise levaram a crer que houve, por parte dos tradutores,
Peter Bush, Clifford Landers e Alison Entrekin, um empenho significativo para recriar
as supostas intenções semânticas e estilísticas do escritor. Tal conclusão foi
corroborada por entrevistas que este pesquisador conduziu com o autor, com os três
tradutores e com a editora Liz Calder. A Linguística de Corpus, por sua vez,
mostrou-se eficaz não só como metodologia para exploração de um corpus literário,
mas também como uma abordagem, na medida em que revelou aspectos das
traduções que não se havia cogitado investigar.
Palavras-chave: Tradução. Linguística de Corpus. Tradução Literária. Criatividade
lexical. Chico Buarque.
ABSTRACT
Chico Buarque’s notable talent in dealing with words as well as his participation in
the translations of his books into English are the core of this doctoral dissertation,
which investigated the translations of Estorvo ( Turbulence), Benjamim ( Benjamin)
and Budapeste ( Budapest) into English. Corpus Linguistics was used as a
methodological basis for investigating the study corpus, constituted by both original
and translated works. With the computer program WordSmith Tools, developed by
Mike Scott, a list of keywords was extracted from the corpus, which served as a
starting point for a qualitative analysis of the translations. The focus was to
investigate if the author’s creativity was recovered by his translators. The results led
to believe that the translators, Peter Bush, Clifford Landers and Alison Entrekin,
made a significant effort to recreate Chico Buarque’s semantic and stylistic
endeavors. This conclusion was corroborated by the oral interviews conducted by
this researcher with the author, the three translators and the publisher Liz Calder.
Corpus Linguistics, in turn, was effective not only as a methodology to explore a
literary corpus, but also as an approach to the extent that it revealed aspects of the
translations that were not previously considered worthy of invetigation.
Keywords: Translation. Corpus Linguistics. Literary Translation. Lexical creativity.
Chico Buarque. Translators.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Trinta primeiros vocábulos do Corpus de Estudo Português Original.
Figura 2 – Trinta primeiras palavras-chave do Corpus de Estudo Português Original.
Figura 3 – Tela do Setting KEYWORDS
Figura 4 – Concordance da palavra de busca “olhos” do corpus de estudo português original
Figura 5 – Alinhamento dos textos original e traduzido do romance Budapeste.
Figura 6 – Resultado parcial do Parallel Search com as palavras “olhos” e “eyes” nos
corpora paralelos, compostos pelos textos originais e traduzidos do romance Budapeste.
Figura 7 – Alinhamento feito com o software ParaConc de parte do primeiro capítulo do
romance Budapeste nas versões original e traduzida.
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Dados estatísticos do corpus de estudo em português original. ESTPO = Estorvo
Português Original, BENPO = Benjamim Português Original e BUDPO = Budapeste
Português Original.
Tabela 2 – Dados estatísticos do corpus de estudo em inglês original. ESTIT = Estorvo
Inglês Traduzido, BENIT = Benjamim Inglês Traduzido e BUDIT = Budapeste Inglês
Traduzido.
Tabela 3 – Palavras pertencentes ao campo semântico do corpo humano no corpus de
estudo em português original.
Tabela 4 – Palavras pertencentes ao campo semântico do corpo humano no corpus de
estudo em inglês traduzido.
Tabela 5 – Primeiras treze palavras-chave pertencentes ao campo semântico do corpo
humano no corpus de estudo em português original (kwcepo2.kws, anexo 2.24) comparado
com o corpus de referência Lácio-Web Geral.
Tabela 6 – Primeiras seis palavras-chave pertencentes ao campo semântico do corpo
humano no corpus de estudo em inglês traduzido (kwceit1. kws) comparado com o corpus
de referência Brown.
Tabela 7 – Primeiras 14 palavras-chave pertencentes ao campo semântico do corpo
humano no corpus de estudo em português original (kwcepo3. kws, anexo 2.24) comparado
com o corpus de referência Banco de Português.
Tabela 8 – Primeiras sete palavras-chave pertencentes ao campo semântico do corpo
humano no corpus de estudo em inglês traduzido (kwceit2. kWs, anexo 2.26) comparado
com o corpus de referência BNC.
Tabela 9 – Palavras-chave pertencentes ao campo semântico das partes do corpo humano
na obra Estorvo.
Tabela 10 – Palavras-chave pertencentes ao campo semântico das partes do corpo humano
na obra Estorvo com chavicidade = ou > 50.
Tabela 11 – Palavras chaves pertencentes ao campo semântico das partes do corpo
humano na obra Estorvo com chavicidade = ou > 50, classificadas entre as 90 primeiras da
Kwestpo3.kws (anexo 3.1)
Tabela 12 – Palavras-chave pertencentes ao campo semântico das partes do corpo humano
na obra Benjamim.
Tabela 13 – Palavras-chave pertencentes ao campo semântico das partes do corpo humano
na obra Benjamim com chavicidade = ou > 50.
Tabela 14 – Palavras chaves pertencentes ao campo semântico das partes do corpo
humano na obra Benjamim com chavicidade = ou > 50, classificadas entre as 90 primeiras
da Kwbenpo3.kws (anexo 3.2).
Tabela 15 – Palavras-chave pertencentes ao campo semântico das partes do corpo humano
na obra Budapeste.
Tabela 16 – Palavras-chave pertencentes ao campo semântico das partes do corpo humano
na obra Budapeste com chavicidade = ou > 50.
Tabela 17 – Palavras chaves pertencentes ao campo semântico das partes do corpo
humano na obra Budapeste com chavicidade = ou > 50, classificadas entre as 90 primeiras
da Kwbudpo3.kws (anexo 3.3).
Tabela 18 – Palavras-chave pertencentes ao campo semântico das partes do corpo humano
na obra com chavicidade = ou > 50, classificadas entre as 90 primeiras palavras da
Kwestpo3.kws (anexo 3.1).
Tabela 19 – Palavras-chave pertencentes ao campo semântico das partes do corpo humano
na obra com chavicidade = ou > 50, classificadas entre as 90 primeiras palavras da
Kwbentpo3.kws (anexo 3.2).
Tabela 20 – Palavras-chave pertencentes ao campo semântico das partes do corpo humano
na obra com chavicidade = ou >50, classificadas entre as 90 primeiras palavras da
Kwbudpo3.kws (anexo 3.3).
Tabela 21 – Palavras-chave pertencentes ao campo semântico das partes do corpo humano
que se repetem nas obras Estorvo, Benjamim e Budapeste com chavicidade = ou > 50,
classificadas entre as 90 primeiras palavras-chave de suas respectivas listas de palavras-
chave.
Tabela 22 – Dados estatísticos referente aos números absolutos e percentuais das palavras-
chave, no português original e no inglês traduzido, que pertencem ao campo semântico do
corpo humano (€ C.S) na obra Estorvo, no português original (PO) e no inglês traduzido (IT).
Tabela 23 – Dados estatísticos referente aos números absolutos e percentuais das palavras-
chave, no português original e no inglês traduzido, que pertencem ao campo semântico do
corpo humano (€ C.S) na obra Benjamim, no português original (PO) e no inglês traduzido
(IT).
Tabela 24 – Dados estatísticos referente aos números absolutos e percentuais das palavras-
chave, no português original e no inglês traduzido, que pertencem ao campo semântico do
corpo humano (€ C.S) na obra Budapeste, no português original (PO) e no inglês traduzido
(IT).
Tabela 25 – Frequência (Freq.) total das palavras-chave, no português original e no inglês
traduzido, nas obras Estorvo, Benjamim e Budapeste, no português original (PO) e no inglês
traduzido (IT).
Tabela 26 – Recuperação das combinações criativas nas obras de Chico Buarque pelos
seus tradutores.
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 – Corpora de referência de Língua Portuguesa
Quadro 2 – Corpora de referência de Língua Inglesa
Quadro 3 – Corpora de contraste para as obras em Português
Quadro 4 – Corpora de contraste para as obras em Inglês
Quadro 5 – Relação das ocorrências da palavra-chave "olhos" e suas respectivas
traduções do português na obra Budapeste.
Quadro 6 – Relação das ocorrências da palavra-chave " head" e suas respectivas
traduções do português na obra Budapest.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
BNC - British National Corpus
BUDIT - Budapeste Inglês Traduzido
LC - Linguísitica de Corpus
Cdp - Corpus do Português
COCA - Corpus of Contemporary American English
ESTIT - Estorvo Inglês Traduzido
BENPO - Benjamim Português Original
BENIT - Benjamim Inglês Traduzido
BUDPO - Budapeste Português Original
ESTPO - Estorvo Português Original
Freq. - Frequência
Chav. - Chavicidade
KWCEPO - Key Words Corpus de Estudo Português Original
KWCEIT – Key Words Corpus de Estudo Inglês Traduzido
WL - Word List
KW - Key Word
KWL - Key Word List
WST - WordSmith Tools
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO………………………………………………………………………. 15
Chico Buarque: o torneador de palavras…………………………………………. 18
Chico Buarque: o partícipe das traduções........................................................ 20
O Interesse pelo tema da pesquisa……………………………………………….
21
A Linguística de Corpus aplicada à exploração e análise de um corpus
literário............................................................................................................... 22
Os relatos orais……………………………………………………………………… 23
A formulação da hipótese…………………………………………………………... 26
Os objetivos da pesquisa…………………………………………………………… 27
A estrutura da tese............................................................................................ 28
CAPÍTULO I – A trajetória literária de Chico Buarque e suas participações
nas traduções de suas obras............................................................................ 30
1.1 Estorvo......................................................................................................... 36
1.2 Benjamim……………………………………………………………………......
38
1.3 Budapeste……………………………………………………………………….
39
1.4 Chico Buarque e tradução........................................................................... 42
CAPÍTULO II – As vozes de Chico Buarque em inglês: Bush, Landers e
Entrekin.............................................................................................................. 50
2.1 Peter Bush................................................................................................... 50
2.2 Clifford Landers........................................................................................... 62
2.3 Alison Entrekin............................................................................................. 73
2.4 Liz Calder..................................................................................................... 83
CAPÍTULO III – A Linguística de Corpus e sua interface com a tradução........ 91
3.1 A Linguística de Corpus e as ferramentas computacionais utilizadas na
corpora desta pesquisa .................................................................................... 91
3.2 A Linguística de Corpus é uma metodologia ou uma abordagem?............
92
3.3 O que é um corpus? ...................................................................................
94
3.4 Os diferentes tipos de corpora...................................................................
95
3.5 O programa para a análise de dados – WordSmith Tools.........................
100
3.6 O software ParaConc.................................................................................. 107
3.7 A convencionalidade................................................................................... 110
3.8 A idiomaticidade.......................................................................................... 111
3.9 A convencionalidade nos níveis sintático e semântico................................ 113
3.10 As colocações............................................................................................ 115
3.11 Colocados criativos: manipulação linguística e criatividade...................... 116
CAPÍTULO IV – Metodologia............................................................................. 118
4.1 Descrição do corpus...................................................................................
118
4.2 Procedimentos de Análise do Corpus........................................................
121
4.3 Levantamento das Word Lists ( WL) – Listas de Frequência......................
121
4.4 KeyWords: O que elas podem revelar?......................................................
124
4.5 Os romances buarqueanos comparados entre si.......................................
129
4.6 Seleção e investigação das palavras-chave: etapas e procedimentos......
130
4.7 O que foi evidenciado a partir da comparação das frequências das
palavras-chaves nas obras originais e nas traduções?..................................... 139
4.8 Descobertas a partir do cotejo dos originais com as traduções no sentido
PO-IT................................................................................................................. 143
CAPÍTULO V – Análise....................................................................................
145
5.1 Aspectos sobre as estratégias utilizadas pelos tradutores que foram
revelados em decorrência dessa investigação no sentido inverso, ou seja,
inglês – português............................................................................................. 145
5.2 Perdas e Ganhos: convencionalidade e tradução....................................... 154
5.3 Colocados criativos: quando “os olhos fogem do assunto”......................... 162
CONCLUSÃO.................................................................................................... 185
REFERÊNCIAS................................................................................................. 191
ANEXOS............................................................................................................ 195
Anexo 1 – Roteiro da entrevista com Clifford Landers
Anexo 2 – Word Lists (Listas de Frequência de palavras)
Anexo 3 – KeyWord Lists (Listas de Palavras-chave)
Anexo 4 – Capas: segunda edição de Estorvo, 2004, primeira edição de
Benjamim (1995), segunda edição de Budapeste, 2005
Anexo 5 – Capa e folha de rosto: segunda edição de Turbulence, 1997
Anexo 6 – Capa e folha de rosto: segunda edição de Benjamin, 1998
Anexo 7 – Capa e folha de rosto: primeira edição de Budapest, 2004
15
INTRODUÇÃO
Muito se perde em uma tradução
literária, isto é incontestável. Mas o que
se ganha? Todo um novo livro.
Nenhuma
perda
na
tradução
é
relevante o bastante para compensar o
ganho que se tem com ela.
Harish Trivedi1
O interesse pelo estudo das traduções para o inglês da obra literária de
Chico Buarque deve-se, primeiramente, a sua incontestável importância como
compositor e escritor para a cultura brasileira. Buarque é considerado o maior
compositor de música popular do Brasil das últimas cinco décadas; sua obra é
permeada pela história deste país desde a década de 60. Como afirma Silva
(2004, p. 8-9), a criação de Chico Buarque
[...] não apenas registra a nossa história, como frequentemente a
revela para nós sob ângulos insuspeitados, amarrando e
comunicando a experiência coletiva aos segredos e abismos da
subjetividade de cada um. É o inconsciente do país que parece falar
na rede simbólica que Chico nos estendeu ao logo dos anos.
O autor da marchinha “A Banda” que, em 1966, juntamente com
“Disparada”, venceu o II Festival de MPB da TV Record, e de outras inúmeras
e memoráveis canções foi, em 1967, definido por Millôr Fernandes como “a
única unanimidade nacional”. Desde então, Chico Buarque, além da música,
transita nos campos da dramaturgia, cinema e literatura, sendo elogiado, mas
também criticado, principalmente por suas peças e livros. Falta de consenso à
parte, o fato é que poucos artistas nacionais contribuíram e continuam a
contribuir de forma tão expressiva para a cultura brasileira como Chico
Buarque. O Brasil possui uma música popular que é, reconhecidamente, e sob
1 Citação extraída da palestra “The nature of literary translation”, proferida em 21/05/2008 , na
Universitat de Rovira I Virgili, como parte do Spring Seminar promovido pelo PhD in Translation
and Intercultural Studies, sob a coordenação de Anthony Pym.
16
diversos aspectos uma das melhores do mundo. Chico Buarque é, sem dúvida,
um de seus representantes mais conhecidos e respeitados no exterior, onde
nossa música goza de notável prestígio.
Esse ídolo popular da década de 70, já com mais de sessenta anos,
continua atual e presente em nosso cenário cultural, seja como compositor ou
escritor. As canções, do início de sua carreira, ainda encantam gerações mais
novas nascidas e embaladas ao som de músicas tão diversas das suas.
Ouvido e lido por gerações de idades e perfis variados, Chico Buarque possui
uma das maiores comunidades do Orkut no Brasil, tendo mais de cem mil
seguidores no seu Twitter; é, inclusive, citado por blogueiros adolescentes e
está cada vez mais visível nos espaços da rede virtual.
Tais fenômenos midiáticos mostram que se trata de um compositor cuja
obra se consolida, cresce e se renova desde sempre, e de um autor, cuja
produção literária – embora seja quantitativamente pequena e recente: quatro
romances nas últimas décadas – é considerada uma das mais relevantes da
literatura brasileira contemporânea, sendo reconhecida, sobretudo, pelas
ousadias criativas e estratégias discursivas. José Saramago ao escrever sobre
o romance Bupadeste (2003), afirma:
Chico Buarque ousou muito, escreveu cruzando um abismo sobre um
arame e chegou ao outro lado. Ao lado onde se encontram os
trabalhos executados com mestria, a da linguagem, a da construção
narrativa, a do simples fazer. Não creio enganar-me dizendo que algo
novo aconteceu no Brasil com este livro.
Como escritor, Chico Buarque ressurgiu2 no cenário literário brasileiro
com a publicação de Estorvo em 1991; Benjamim em 1995; Budapeste em
2003 e “Leite Derramado” em 2009. Em 1992, as traduções de Estorvo foram
2 Chico Buarque havia publicado outras obras, como Fazenda Modelo (1974) e Chapeuzinho
Amarelo (1979 ), que serão mencionadas e comentadas no Capítulo I.
17
publicadas na Noruega, Dinamarca, Holanda, França, Espanha e Inglaterra,
dando, assim, início à sua trajetória internacional como escritor.
Na Inglaterra, sua obra foi publicada pela editora Bloomsbury. Estorvo foi
traduzido pelo britânico Peter Bush em 1992, e recebeu o título Turbulence; em
seguida, vieram Benjamim, em 1997, traduzido pelo americano Clifford
Landers, e Budapeste, em 2004, traduzido pela australiana Alison Entrekin.
Vale lembrar que esse reconhecimento aconteceu também no exterior,
como, inclusive aponta Maria Lúcia Daflon (2009, p.119): “Chico Buarque, aliás,
é hoje um expoente internacional da literatura brasileira. Os livros de Buarque,
especialmente Budapeste, têm boa vendagem, embora dentro dos limites dos
vôos que a literatura brasileira pode alcançar no exterior.”
No lançamento de Estorvo na Inglaterra em 1992, o jornal britânico The
Independent ressaltou a técnica criativa do autor e comparou a sua narrativa a
uma improvisação de jazz 3. Ainda sobre o livro Estorvo, o jornal New
Statesman apontou o brasilianismo do texto de Chico Buarque e o comparou a
um dos livros de Joyce4. A complexidade da narrativa do autor presente no
romance Benjamim foi ressaltada pelo jornal Sunday Times5. O prestígio do
escritor, além de nossas fronteiras, também pode ser comprovado pela
inclusão do romance Budapeste na lista do jornal The Independent entre os
melhores livros lançados em 2004, na Grã-Bretanha, e pelo recebimento do
prêmio “Dois Oceanos” no Festival de Biarritz, na França, em setembro de
2005.
3 “An intriguing cross-fertilisation of creative technique in a narrative as unpredictable as a
sustained passage of jazz improvisation.”
4 “An unmistakably Brazilian text. A little like Ulysses turned inside out.”
5 “A dreamlike and labyrinthine narrative with a thriller plot revving in the background.”
18
Chico Buarque: o “torneador de palavras”
Como bem definiu Regina Zappa (2004), em seu ensaio intitulado
“Vertigem”, Chico é “um obsessivo torneador de palavras” e a sua devoção a
elas é uma de suas características marcantes. Esse cuidado em burilar as
palavras como parte do processo de criação literária, é também ressaltado por
Sales (2004, p. 207), no ensaio “A literatura do Estorvo”: “a palavra é matéria-
prima básica em todos os caminhos que a arte de Chico Buarque tomou [...]”.
Cabe salientar que a referida devoção às palavras, característica
marcante de Buarque, encontra-se presente, também, na sua obra ficcional.
Ela é comum ao protagonista de seu terceiro romance, Budapeste, o ghost
writer José Costa: “De tanto me devotar ao meu ofício, escrevendo e
reescrevendo, corrigindo e depurando textos, mimando cada palavra que
punha no papel, já não me sobravam boas palavras para ela”.
O próprio Chico Buarque fala de seu interesse pelas palavras no texto
intitulado “Os dicionários de meu pai”, publicado na segunda edição do
Dicionário Analógico da Língua Portuguesa, de Azevedo (2010). No texto que
antecede o prólogo, Chico Buarque relata que ao receber de seu pai a primeira
edição desse dicionário, datada de 1950, herdou não só o livro, mas também o
apreço pelas palavras: “Era como se ele, cansado, me passasse um bastão
que de alguma forma eu deveria levar adiante”. Segundo Buarque, “palavra
puxa palavra, e escarafunchar o dicionário analógico” tornou-se para ele “um
passatempo”.
Em um artigo publicado na Folha de S. Paulo, em 19/10/1991, seu pai, o
historiador Sérgio Buarque de Holanda, escreveu que Guimarães Rosa era um
dos autores preferidos de Chico Buarque, e, talvez inspirado em Guimarães
19
Rosa, “que também era dado a inventar palavras”, inventou a palavra
“penseiro”, que faz parte da letra da canção “Pedro Pedreiro”, composta em
1965. Tal admiração pelo escritor mineiro está, também, registrada no DVD
“Chico Buarque – Uma Palavra”6, em que declara que “queria ser Guimarães
Rosa”. Sobre a força da palavra, Buarque afirma, nesse mesmo depoimento,
que “a palavra é mais forte que o criador” e nos “conduz por caminhos
inesperados”.
Como exemplo de sua obsessão pela palavra, pode-se citar o episódio
descrito por Chico Buarque, em uma entrevista concedida à revista Ocas
(24/07/2004), na qual relata que suspendeu, depois de tudo pronto, a prensa
de um disco porque decidiu trocar uma única palavra de uma letra, que já
estava inclusive impressa.
Outro exemplo de seu esmero na escolha do léxico refere-se à
manutenção ou quebra da convencionalidade linguística na tradução. Buarque
afirma que esse assunto foi motivo de disputa com os tradutores: “briguei muito
por isso várias vezes”. O autor cita um exemplo a ilustrar muito bem essa
questão: “No Estorvo, eu dizia, em determinada hora, que o sujeito entrava no
botequim, entrava num banheiro que tinha um cheiro pesado.” O tradutor
insistia em traduzir “cheiro pesado” por “cheiro forte” ( strong smell) sob a
alegação de que não existe “cheiro pesado” ( heavy smell) em inglês. O autor
contra argumentava insistindo que “cheiro pesado” não é uma colocação
convencional em português e que em português “não existe cheiro pesado,
mas o que eu quero dizer é cheiro pesado”. Neste caso, a quebra da
convencionalidade foi intencional.
6 Este DVD faz parte da série retrospectiva da obra de Chico Buarque, lançado pela EMI em
2006.
20
Segundo Chico Buarque, ele “queria fugir do lugar comum” e a tradução
por “cheiro forte” “caía no clichê, caía no lugar comum”, ou seja, a criatividade
do autor, ao promover esse jogo linguístico por meio da quebra da
convencionalidade, não seria mantida na tradução. Nesse caso, na tradução
optou-se por “heavy smell”, mantendo, dessa forma, a quebra intencional da
convencionalidade:
ESTPO: “No extremo do balcão, um
ESTIT: “At the end of the counter, a
corredor que só se atravessa
passage you can only walk along
andando de lado leva a um mictório
sideways leads to a lavatory with a
com um cheiro muito pesado.”
heavy smell.”
Chico Buarque: o partícipe das traduções
Chamou a atenção deste pesquisador o fato de o autor ter colaborado
com os tradutores de seus romances para o inglês, francês, italiano e
espanhol, línguas com as quais possui familiaridade. A participação de Chico
Buarque nessas traduções deve-se, em princípio, ao fato de ele ser
conhecedor dessas línguas; ao cuidado que o autor demonstra ter por suas
criações; e ao direito que, segundo ele, lhe é reservado como autor da obra,
conforme relatou em entrevista concedida a este pesquisador em 22/09/2008.
Percebe-se, então, que existe por parte do autor um apego a sua obra e um
desejo de controle sobre as escolhas dos tradutores.
A disputa de Chico Buarque com o tradutor Peter Bush acerca da
tradução de “cheiro pesado”, acima relatada, mostra a intensidade da
participação do autor em algumas das traduções de sua obra. As conversas
que mantivemos com o autor e com os profissionais tradutores para a língua
21
inglesa revelaram que sua colaboração foi muito expressiva. A forma e o nível
de interação, com os tradutores, variaram devido ao fato de as traduções terem
ocorrido em diferentes épocas e contextos.
Durante a tradução de Estorvo, o contato com o tradutor se deu via fax
e, principalmente in loco, na ocasião em que Chico Buarque esteve em
Londres; com o tradutor Clifford Landers o contato se deu ao telefone e
também via fax; já com Alison Entrekin, grande parte do diálogo ocorreu pela
troca de e-mails, pois, nessa época, o autor já tinha se tornado usuário da
internet.
O interesse pelo tema da pesquisa
Além da já mencionada indubitável importância de Chico Buarque para a
cultura brasileira, a certeza de se escolher as traduções da obra literária de
Chico Buarque para o inglês como objeto de pesquisa se deu com base na sua
característica marcante de “torneador de palavras” e no fato de o autor ter
atuado como partícipe nas traduções de suas obras literárias. A possibilidade,
de dialogar com o autor e com os tradutores sobre as traduções de suas obras,
contribuiu ainda mais para fortalecer o desejo de realizar esta pesquisa.
Como resultado desse interesse, decidiu-se, então, fazer uma pesquisa
das traduções, para o inglês, das obras Estorvo, Benjamim e Budapeste, de
autoria de Chico Buarque de Hollanda, pelos tradutores Peter Bush, Clifford E.
Landers e Alison Entrekin, respectivamente. Devido à extensão do material a
ser analisado, optou-se pelo uso da base metodológica da Linguística de
Corpus para desenvolver a investigação do referido corpus.
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A Linguística de Corpus aplicada à exploração e análise de um corpus
literário
Para desenvolver a análise do corpus composto pelas referidas obras e
suas respectivas traduções, foi utilizada a base metodológica da Linguística de
Corpus (LC). Segundo Berber Sardinha (2004, p. 3), a LC
ocupa-se da coleta e da exploração de corpora, ou conjuntos de dados
linguísticos textuais coletados criteriosamente, com o propósito de
servirem para a pesquisa de uma língua ou variedade linguística. Como
tal, dedica-se à exploração da linguagem por meio de evidências
empíricas, extraídas por computador.
A partir dessa base metodológica, é possível viabilizar análises de
grandes corpora, que antes eram inviáveis pelo cotejo manual. A contagem dos
padrões léxico-gramaticais que caracterizam um corpus de milhões de
palavras, por exemplo, seria impossível, ou no mínimo imprecisa, sem a ajuda
de uma base metodológica computacional.
No artigo intitulado “A Linguística de Corpus no Brasil”, Berber Sardinha
e Almeida (2008), ressaltam o aspecto interdisciplinar da LC e o seu
crescimento em todo o mundo, inclusive no Brasil. A LC, segundo os autores, é
aplicada na área da Lexicografia e em trabalhos de Linguística Aplicada,
Processamento de Língua Natural e Tradução. Cabe mencionar que, além das
disciplinas citadas pelos autores, a LC vem ganhando espaço, também, na
área de estudos literários, nas palavras de Bernardes Gonçalves (2008, p.
387), a LC “se evidencia imediatamente como uma metodologia extremamente
facilitadora do trabalho de pesquisadores e críticos literários”.
Sobre a sua interface com a Tradução, Berber Sardinha (2002) afirma
que a utilização dessa base metodológica pode ser útil tanto para a prática
tradutória quanto para a pesquisa na área da tradução. Dentre as vantagens
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oferecidas pela Linguística de Corpus, pode-se destacar: 1) as evidências que
os corpora podem revelar em termos linguísticos e 2) os insights sobre a
natureza de aspectos discursivos relacionados ao processo tradutório.
Nesta pesquisa de doutorado, a LC ofereceu uma metodologia que
possibilitou - por meio do uso do programa computacional WordSmith Tools7
( WST) - identificar nas obras literárias de Chico Buarque a presença do campo
semântico de palavras que fazem parte do corpo humano. Essas palavras
foram identificadas a partir de uma lista de palavras-chave, gerada
automaticamente pelo WST e, posteriormente analisadas em contexto com as
suas respectivas traduções para o inglês8.
Além de sua comprovada eficácia como metodologia, a pesquisa
baseada nos corpora revelou aspectos dos originais e das traduções que não
se cogitara pesquisar9, corroborando, desta forma, a afirmação de que a LC
não se restringe a um conjunto de ferramentas computacionais, nem é apenas
uma metodologia, mas também uma abordagem aplicável à exploração e
análise de um corpus de estudo literário, composto por obras originais e suas
respectivas traduções.
Os relatos orais
Nesta pesquisa, as fontes orais, constituídas pelas entrevistas realizadas
com o autor, Chico Buarque, com Liz Calder, co-fundadora da Bloomsbury, e
com os tradutores de suas obras literárias, Bush, Landers e Entrekin, são tidas
como uma técnica. Meihy (2002, p. 45-46) explica que usar os depoimentos
7 O programa computacional WordSmith Tools será descrito no Capítulo III.
8 O s critérios de seleção dessas palavras-chave para análise serão descritos no Capítulo IV.
9 As descobertas feitas a partir da análise dos corpora serão detalhadas nos Capítulos IV e V.