Cleyde Yaconis: Dama Discreta por Vilmar Ledesma - Versão HTML
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APLA
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16/8/2005, 16:43
Cleyde Yaconis
Dama Discreta
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Imprensa Oficial do Estado de São Paulo
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Diretor Vice-presidente
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Projeto Gráfico
Revisão e Editoração
Carlos Cirne
Cleyde Yaconis
Dama Discreta
por Vilmar Ledesma
São Paulo, 2004
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da Imprensa Oficial do Estado Ledesma, Vilmar
Cleyde Yaconis: dama discreta/Vilmar Ledesma. –São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004.
208p. : il. - (Coleção Aplauso Perfil)
ISBN 85.7060.234-0
1. Cinema–Brasil 2. Teatro brasileiro 3. Televisão–Brasil 4. Yaconis,Cleyde, 1944 - , Biografia I. Título.
II. Série.
CDD 792.0981
Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (Lei nº 1.825, de 20/12/1907).
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A todos os jovens que queiram fazer teatro.
Cleyde Yaconis
Introdução
Depois de alguns telefonemas, encontrei Cleyde
Yaconis no primeiro dia de outubro de 2003.
Ela mora em Jordanésia, pertinho de Jundiaí, a
40 km do centro de São Paulo, e aproveitou uma
reunião de trabalho para nos conhecermos e
conversar sobre o livro. Ao meio-dia, exatamen-
te o horário combinado, ela apareceu. Cleyde é
pontualíssima e detesta atrasos. Vinha à cidade
acertar seu próximo espetáculo, cujo título man-
tém em segredo. Só adiantou que era uma peça
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de época e sobre corrupção.
O cenário desse encontro inicial foi numa
doceira no bairro do Itaim, próximo ao Teatro
Escola Célia Helena, o local da reunião da atriz.
Rosto limpo, nada de jóias e muito menos afe-
tações de grande dama do teatro brasileiro, ela
está longe de aparentar os 80 anos que com-
pletaria um mês depois. O porte é de rainha,
mas Cleyde Yaconis é toda simplicidade. Nossa
primeira conversa durou quase uma hora e ela
bebeu um ice tea gelado, isso porque não tinha
natural. Nossa conversa só foi interrompida
quando Cleyde viu um passeador de cachorros,
segurando pela coleira vários au-aus, e ficou
observando atenta a passagem da trupe. Cleyde
adora cachorros e seu xodó é Felipe, que reina
na casa de Jordanésia, e tem três filhas. Depois de uma hora de conversa, acompanhei-a até o
estacionamento e ela saiu dirigindo rumo à sua
casa. Cleyde adora dirigir e, como prefere evi-
tar avião, enfrenta a estrada sempre que está
gravando novela ou fazendo teatro no Rio.
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Cleyde marcou o nosso próximo encontro para
dali a três dias, no começo da tarde do sábado,
em sua casa. A casa da atriz fica numa rua sem
saída, construída no centro do amplo terreno,
rodeada de árvores frutíferas, roseiras,
hortênsias e o muro coberto de azaléias.
“Conhece lixia?”: é com zelo e carinho que ela
apresenta suas árvores. E como trilha sonora tem sempre o cantar dos pássaros.
No interior da residência, simples e confortável, Cleyde reservou uma parede para cada uma das
mulheres de sua vida: a mãe e as duas irmãs, as
três já falecidas. Na sala de estar, em frente a uma janela bem iluminada, estão fotos dos
principais trabalhos da irmã Cacilda Becker. Num canto da mesma peça, uma parede menor tem
fotos de espetáculos dela, umas cinco ou seis, as que ela mais gosta. Os retratos da mãe Alzira e
da irmã Dirce estão na parede dos quartos. Em
cima de uma cômoda, objetos que a mãe
adorava, como uma gaitinha de boca, que foi
presente de um namorado dela.
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Foram quatro sessões de entrevistas, algumas
vezes com mais de um mês de pausa entre elas,
e a última na metade de dezembro. Todas
começaram praticamente do mesmo jeito. Era
eu chegar, sempre nas primeiras horas da tarde,
tocar a campainha e esperar o caseiro abrir o
portão. Cleyde estava sempre na varanda,
escorada na mureta, emoldurada pelos galhos
de plantas. Depois dos cumprimentos, sentá-
vamos no sofá da sala para a conversa. Com
aquela voz grave, pausada e marcante, ela não
é do tipo que recusa perguntas, embora não seja
de falar muito e tenha um jeito todo especial
de ser modesta.
No final da primeira sessão, fui presenteado com um pote de geléia de jaboticaba, deliciosa,
preparada pela própria Cleyde. E quando
acabou outra, acho que a terceira entrevista,
numa tarde especialmente calorenta, Cleyde
precisava ir até a ótica, ali pertinho, e ofereci uma carona. Cleyde, Dadá (que foi babá do filho
de Cacilda e acompanha a família há mais de
50 anos) e o cachorro Felipe foram me apre-
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sentar a principal atração turística de Jordanésia, o caipiródromo. É uma espécie de ginásio,
localizado num terreno imenso e, ela me
informa, passa quase todo ano inativo, com
exceção de uma semana, quando se apresentam
por lá os artistas sertanejos, daí o nome
caipiródromo. “Pode um lugar que não tem nem
atendimento médico para a população gastar
dinheiro com essas coisas?”, ela observava.
Cleyde é assim, cheia de preocupações sociais e
indignada com as tramóias do poder. E se
mantém ativíssima aos 80 anos e 53 de teatro.
Um mês antes de nosso primeiro encontro ela
esteve em Salvador para receber o Prêmio
Nacional Jorge Amado de Literatura e Arte, este
ano dedicado ao teatro. No dia da última
entrevista, confirmou por telefone sua presença
na cerimônia de entrega da Comenda da
Independência, concedida pelo governo do
estado de São Paulo. E alguns dias depois, saía
o resultado da premiação da Associação Paulista
de Críticos de Arte, e Cleyde levou o Grande
Prêmio da Crítica de 2003.
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Na primeira semana de janeiro de 2004 estive
com ela para deixar uma cópia deste livro e uns
dez dias depois, numa tarde de sábado, voltei
para conversarmos a respeito. Ela não pediu
para cortar nada, apenas, íntima do português,
sugeriu mudanças em algumas frases que
estavam de maneira muito coloquial e pareciam
sem sentido. Claro que ela tinha razão.
Vilmar Ledesma
Amor Que Vem do Conhecimento
Uma revelação. É assim que o teatro foi para
mim. E pensar que quando comecei não tinha a
menor noção do que é ser atriz, do que é fazer
teatro. Eu nem sabia o que era teatro. Estudava, queria fazer medicina, não tinha nenhuma
vontade de representar. E a minha infância foi
muito pobre, morava em Santos, não tinha
interesse, nem dinheiro, para ver teatro ou
alguma outra manifestação artística.
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A primeira peça que assisti? Não lembro, é
provável que tenha sido Patinho Feio, com o
Raul Roulien, uma das primeiras que a Cacilda
Becker, minha irmã, fez. Também recordo de
ter assistido Divórcio, com a Bibi e o Procópio
Ferreira. Comecei a minha carreira sem a me-
nor noção do que era teatro. Fui aprendendo.
Isso foi ótimo. Não sou daquelas que, desde cri-
ança, vive dizendo “quero ser atriz”. No colé-
gio, eu adorava estudar, mas nunca fui
talentosa, nunca decorei poesia. Sempre pensei
no que eu poderia ser útil e achava que só po-
deria ser com a medicina. E descobri que, da
mesma forma, o teatro é importante para o país,
é importante para o povo. O meu interesse pelo
palco veio quando aprendi o valor cultural do
teatro. Eu detesto publicidade, fama, entrevis-
ta. Não dou valor a essas coisas. Gosto de ensai-ar e representar. Só. Do resto eu não gosto.
Sem nada dessa coisa de “a minha paixão”, foi
um amor que veio do conhecimento. Tudo
começou no palco do Teatro Brasileiro de
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Comédia, o TBC, onde entrei por acaso, em 1950,
e trabalhei sem parar durante sete anos. Nessa
época, junto com os diretores, com o elenco, o
repertório de primeira categoria, foi que perce-
bi o que era o teatro. Fazendo teatro, você não
precisa estudar mais nada. História universal,
geografia, social, economia, política, tudo você estuda através do teatro. A cada peça é preciso
se aprofundar, saber sobre o autor, de onde ele
é, descobrir o país de onde ele vem. Chega a
ponto de discutir se o clima daquele lugar influ-encia na personalidade, na alimentação, na re-
ligião daquelas pessoas. O teatro é a síntese da humanidade.
Você conhece o ser humano fazendo teatro. Se
você se abrir para o teatro você melhora como
gente. O Brecht diz uma coisa maravilhosa: a
finalidade maior do teatro é divertir, só precisa saber o que é divertir. Divertir não é besteirol, é externar o prazer do conhecimento. Tive muita
sorte com o meu começo no TBC, com gente
séria e respeito pelo público. Eu não sabia que
o teatro era tanta doação. Como é importante
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você ser um ator, um artista. Por que é que os
poderosos temem tanto os atores? Porque
aquilo que é dito no palco tem um peso muito
maior do que o que eles dizem no palanque.
Por isso que é muito perigoso, e o ator precisa
pensar muito bem antes de abrir a boca para
falar. Os poderosos temem a palavra do autor,
o teatro. Schiller, não vou me lembrar
exatamente da frase, mas ele diz que quando
tudo cessa, os poderosos falham, todo o mundo
luta e não consegue, quando acabaram todas
as possibilidades para vencer o teu poderoso e
a ditadura, nesse momento entra o teatro, pega
a sua espada e transforma o palco num palan-
que, num altar. E eu tomei consciência disso
nesses meus sete primeiros anos no TBC. O tea-
tro não me ensinou só a representar, me ensi-
nou a viver.
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Quatro Mulheres
Nasci no dia 14 de novembro de 1923, em Piras-
sununga, que não tem muitas diferenças de
outras pequenas cidades do interior de São
Paulo. Meu nome é Cleyde Becker Yaconis, filha
de dona Alzira Leonor Becker e do seu Edmundo
Radamés Yaconis, irmã de Cacilda e Dirce. O
Yaconis é grego, o Becker, alemão e o Radamés,
italiano da Calábria. A mamãe era filha de
alemães, Pedro Becker e Maria Becker. O meu
pai era grego por lado de pai e tinha mãe
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calabresa, Antonio Yaconis e Francesca Marino.
Todas essas nacionalidades são marcantes em
mim. Acho que tenho todas elas. Eu tenho bem
o calabrês, o grego, que é muito parecido com
o baiano, e a minha cabeça é alemã. Há uma
mistura grande de raças e também de religião,
o lado paterno é católico e o materno, protes-
tante. Fomos batizados na religião protestante
e a Cacilda, quando adolescente, adotou o ca-
tolicismo. Eu, por incrível que pareça, freqüen-
to mais a religião católica, mas fora do horário de missa. Em minha família predomina o
matriarcado, desde que me lembro, e começa
com a imagem de meus avós maternos, Pedro e
Maria Becker. Uma das coisas lindas da minha
infância, ele era um homem alto, culto, inteli-
gente, da nobreza alemã, completamente apai-
xonado por minha avó, uma camponesa, baixi-
nha, gordinha, muito bonita e que o dominava
totalmente. Meu avô Pedro tinha um microscó-
pio, falava de astronomia, astrologia e, tenho
impressão, suas histórias tinham coisas de mito-
logia grega.
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Meu pai era filho único entre sete irmãs, não
convivi com meus avós paternos, apenas com
minhas tias. Bem mais tarde vim a conhecer
melhor essas sete calabresas, que a gente cha-
mava de “tias gatas”, e eram mulheres fortes,
admiráveis. Seu Yaconis era caixeiro-viajante.
Vivemos muito pouco tempo juntos, pois ele saiu
de casa quando eu tinha quatro anos. Ele nun-
ca fez parte da nossa vida. Hoje eu gostaria de
saber quem ele era. Infelizmente, ele morreu
antes que a gente descobrisse. Ele não foi feliz, não pode ter sido. Um homem elegante, inteligente, solitário, estranho fisicamente, requin-
tado. Eu me lembro, e eu tinha quatro anos,
das unhas dele. Eram lindas. Antigamente tinha
um pó e ele lustrava as unhas. A pele era seca.
Eu me lembro, ele escanhoava, se barbeava com
navalha, passava duas vezes até ficar com a pele lisa. Era um homem requintado. Usava cuecas
de seda, bengala de cabo de prata, chapéu coco,
polainas de abotoar, abotoaduras de homem
super requintado. Era requintado e nos espan-
cava por qualquer coisa, se batia com a cinta
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era do lado da fivela, e quando batia na cabeça
era no cocuruto pra gente desmaiar. Era do tipo
que não deixava falar. A gente só podia respon-
der, não podia falar. Não podia fazer barulho
com o talher no prato. Assim que terminava o
jantar, a gente ia para o quarto. Minha mãe
respeitava muito isso. A gente comia, sempre
tinha que dormir um pouco depois do almoço e
sete, oito horas, já ia pra cama.
Alzirão, que é como eu chamo carinhosamente
minha mãe, era uma mulher linda, nenhuma de
nós três tem a beleza que ela teve. Uma mulher
simples, inteligente, brilhante. Estranho, como
essa mulher, em Pirassununga, com dez, doze
anos escrevia peças de teatro. Se não sabia de
teatro, como ela escrevia? Em Santos, mamãe
escrevia as peças representadas nas festas de fim de ano da escola onde ela lecionava e nunca
tinha ido ao teatro. Escrevia peças interessan-
tes, poemas. Ela escrevia muito bem, ela falava
muito bem, era uma mulher atenta a tudo, à
vida.
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Mamãe era professora recém-formada quando
casou, mas acabou não exercendo a profissão,
pois o marido não queria que ela trabalhasse.
Meu pai não punha comida em casa, mas não
deixava a mulher trabalhar. A gente mudava
muito de cidade. Eu me lembro de Rio Claro,
quando eu tinha uns três anos e nossa alimen-
tação era salsa roubada de uma quitanda. Como
não tinha dinheiro para calça e combinação, ela
fazia macaquinhos de algodão para nós três.
Depois, veio uma passagem por São Paulo, onde
morei na Rua Caconde, Jardim Paulista, quan-
do bem criança. Era uma rua de terra, tinha um
riozinho, a gente morava num bangalô, meu pai
sumia, a gente passava fome. É a lembrança que
tenho. Foi quando ele nos abandonou e fomos
viver na casa da vó Maria, em Pirassununga.
Minha mãe tinha o estigma de “separada” e
nós ficamos um ano lá, no fundo do quintal, num
depósito do meu avô e nunca sentamos à mesa.
Comíamos quando sobrava. Minha avó tinha um
pomar e apanhávamos as frutas de cima, por-
que as de baixo ela contava.
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Foi aí que mamãe conseguiu vaga para lecionar
numa escola rural e fomos para uma fazenda
de colonização japonesa, onde de brasileiro só
tinha nós e o administrador. Lá aprendi a co-
mer gengibre, a falar um pouquinho de japo-
nês e entrei em contato com a nudez. Como os
japoneses tomavam banho nus, a minha mãe
maravilhosa abriu mão de seus conceitos e nos
jogou nuas entre eles. Foi uma época muito fe-
liz. Quando eu tinha nove anos, mamãe conse-
guiu uma transferência para uma escola de São
Vicente e fomos viver em Santos, pois ela que-
ria que as filhas estudassem. Morávamos numa
favela, num casebre feito de contêineres. Era
uma fase de miséria absoluta, onde chegamos
a roubar para comer. Mas isso não enfeia a vida
quando se tem uma mãe e irmãs como eu tive a
sorte de ter. O nosso casebre era lindo, com
móveis de caixote, que a Cacilda pintava e os
buracos no chão, cobríamos com tapetes de
estopa que a gente bordava. Do lado de fora,
um pé de maracujá de um lado e um de Maria
Mole do outro, plantados pela minha mãe. Foi
uma época dura, mas nós tínhamos certeza de
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que íamos sobreviver e vencer. Vencer como
gente.
A infância é a fase mais feliz da minha vida,
momentos de lutas, de vitórias, ao lado de ma-
mãe e minhas duas irmãs. A diferença de idade
entre nós três era pequena. A Cacilda nasceu
em abril de 1920, a Dirce em agosto do ano se-
guinte, uma diferença de um ano e quatro me-
ses. Eu nasci em novembro de 1923, um ano e
três meses. A minha diferença pra Cacilda é de
menos de três anos. Crescemos juntas. Tivemos
catapora junto, sarampo junto, coqueluche jun-
to, tudo junto, tudo na mesma época.
Nossas brincadeiras eram pular, correr, subir em árvore. Pular, andar pelo mato catando fruta,
correr de boi, correr de um cachorro, animal,
natureza, pular em rio, nadar em rio. Nós éra-
mos moleques. A gente nunca quis saber de
boneca, nem de brinquedo, as nossas brincadei-
ras eram todas inventadas. Era pegador, correr
um atrás do outro, esconde-esconde. Era brin-
cadeira de campo, de rua, jogar futebol.
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As três irmãs eram completamente diferentes,
nenhuma tinha nada a ver com a outra. A
Cacilda completamente diferente, a Dirce com-
pletamente diferente e eu também. Isso é que
era bom. Tudo diferente, tudo. De gostar de
coisas diferentes, de ser diferentes, de tempe-
ramentos diferentes. E a dona Alzira, diferen-
te. Eram quatro mulheres diferentes, que con-
viviam maravilhosamente bem.
A minha infância foi a coisa mais maravilhosa e, se pudesse voltar hoje, agora, eu queria voltar
ao período da minha infância até a juventude.
Raramente, uma pessoa pode ter a sorte de ter
nascido nesse núcleo que eu nasci. Onde eu tive
uma irmã, a Cacilda, que até morrer me chama-
va de “minha irmãzinha”. Era a união, a luta
em conjunto, a não rivalidade, todas amando a
mesma coisa, lutando por uma mesma coisa, por
uma história. A força, as dores, mas acima de
tudo a beleza da nossa vida. O contato com a
natureza, com quatro, cinco anos, eu já estava
na fazenda, depois o ano que passamos na casa
de minha avó. Mas aos cinco anos já estávamos
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em São Simão, a natureza. Depois, morar em
favela, vida pobre, onde os pobres ajudavam, o
menosprezo das minhas colegas e meus cole-
gas, às vezes. Tudo isso é um aprendizado.
Era fantástico, porque nada disso, a pobreza, a
fome, nos massacrava. Ao contrário, cada dor
era um elemento a mais para nos dar energia e
luta. Foi extraordinária, maravilhosa, a minha
infância. Fome, passar fome, o desapego das
coisas materiais. Até hoje, eu rio quando escuto a palavra grife, aquela revista Caras, eu não sei nada disso. Daqui a dez anos vai faltar água e
ficam falando de grife. Engraçado, né.
Então, eu dei uma sorte de ter nascido filha da
Dona Alzira e do seu Edmundo. Tenho sorte de
esse homem nos abandonar porque resultou tão
bem. Se ele não tivesse abandonado o que se-
ria de nós? Sempre uma coisa má resultando
no bem. Isso é fantástico. Nenhuma coisa má
que nos aconteceu resultou em algo mau, sem-
pre resultou em melhor.
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O Teatro Paulista
Na segunda metade dos anos 40, São Paulo, que
sempre foi a potência econômica mais forte do
País, tinha mais de seis milhões de habitantes e nenhuma companhia de teatro. Todas as companhias eram cariocas: Dulcina de Moraes, Jai-
me Costa, Procópio Ferreira, Eva Todor. Aqui
tinha só as temporadas de inverno. As compa-
nhias cariocas vinham fazer as temporadas em
São Paulo e cada espetáculo era representado
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dois ou três dias. Desde que começou o teatro
era assim e esse pessoal viajava o Brasil inteiro.
As capitais recebiam as companhias cariocas, e
a elite recebia a Comèdie Française, o teatro italiano, o teatro polonês. Os espetáculos estran-
geiros eram vistos por pouca gente, não apenas
pelo preço dos ingressos, mas também pela bar-
reira do idioma. Naquela época, a língua estran-
geira mais falada era o francês.
As companhias brasileiras faziam uma peça por
dia e, às vezes, dois espetáculos. Não tinha dia de folga, era de segunda a segunda, o teatro
naquela época. Os atores recebiam não a peça
inteira, só as falas de cada personagem e a últi-ma palavra, a deixa, do ator com quem iriam
dialogar. O ator decorava o seu papel na medi-
da do possível e contava com a ajuda do ponto,
alguém que ficava assoprando as falas para os
artistas. Não existia o ensaio de mesa de todo o texto.
O guarda-roupa era fornecido pelos atores. O
produtor só dava quando era roupa de época, e
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pode-se dizer que quase todo o repertório das
companhias cariocas era moderno. Praticamen-
te o salário dos artistas ia para essas despesas.
No caso da Cacilda, muitas vezes ela comia café
com leite e pão com manteiga. O dinheiro era
contado. E isso numa época em que as mulhe-
res usavam sapato, meia, luva, chapéu, tudo
caríssimo. Aconteceu várias vezes da Cacilda, em começo de carreira, chegar no teatro com uma
roupa que ela tinha comprado e a Laura Suarez,
a primeira estrela da companhia, ter comprado
uma da mesma cor. E quem tinha que sair cor-
rendo para comprar outra era a Cacilda. Não
existia nenhum planejamento, tipo nessa cena
você põe verde e ela, cor de rosa.
Quando vencia o contrato, Cacilda não tinha
outra opção a não ser renovar, pois para com-
prar roupa ela ia tirando vale adiantado. Era
como o fazendeiro que contrata e obriga os
empregados a comprar mantimento no arma-
zém dele, eles ficam sempre presos porque no
fim de cada ano devem mais do que ganharam.
A Cacilda estava sempre assim.
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As coisas começaram a mudar com o Teatro Bra-
sileiro de Comédia, que inaugurou no dia 11 de
outubro de 1948, na rua Major Diogo. Foi o pri-
meiro produtor que dava tudo para o ator, e
não porque fossem bonzinhos, mas porque a
partir daí o guarda-roupa passou a fazer parte
do espetáculo. Nos oito primeiros meses do TBC,
a fase de organização, foram quatorze espetá-
culos. Pela primeira vez, São Paulo teve teatro
todas as noites e começa aí a história do teatro profissional na cidade. Foi necessário fazer o
público, que não estava acostumado com tea-
tro de dezembro a janeiro, de terça a domingo.
Eles só estavam familiarizados com a tempora-
da de inverno da Dulcina, do Procópio. Esse tra-
balho de atrair o público foi muito importante.
Tenho grande admiração pelo Franco Zampari,
o fundador do TBC e acho que São Paulo, o Bra-
sil não dá o lugar que ele merece no teatro.
Zampari eliminou o ponto, trouxe diretor, ilu-
minação. Tenho um grande amor, uma lembran-
ça dele, que sempre me respeitou e gostou
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muito de mim.
Querem Que Eu Faça Amanhã?
Eu me formei no ginásio com 15 anos, sempre
querendo fazer medicina. Fiz um curso de en-
fermagem e cheguei a trabalhar como enfer-
meira de acidentados numa companhia de se-
guros. Eu trabalhava, a Dirce dava aulas e a
Cacilda, que já estava fazendo teatro, nos aju-
dava financeiramente. Aos 18 anos, a gente já
morava numa casinha de tijolo, em Santos e
voltei a estudar, cursando o científico.
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No começo de 1948, mamãe e eu mudamos para
São Paulo. A Dirce tinha casado no ano anterior
e a Cacilda estava grávida. Eu vim para fazer o
terceiro ano do científico no Colégio Bandeiran-
tes. Fomos morar em Santo Amaro e naquela
época o transporte era bonde. A Cacilda me
dava mesada de quinhentos mil réis para estu-
dar e em 1949 estava fazendo o cursinho para o
vestibular de medicina ali perto da Major Diogo, e arrumei um emprego no guarda-roupa do TBC.
Nem me passava pela cabeça ser atriz, mas era
divertido ver o pessoal de teatro e eu estava
sempre por lá, assistia os ensaios.
Em 1950, O TBC estreou O Anjo de Pedra, do
Tennessee Williams. Era um espetáculo maravi-
lhoso, a primeira vez que o teatro me tocou, e
tinha um trabalho de atriz inesquecível da
Cacilda, que era uma coisa impressionante mes-
mo para alguém como eu que não entendia
nada de teatro. Assisti várias vezes e a peça me tocava muito. Luz, cenário, figurino, atriz, dire-
ção, ator, coadjuvantes, tudo era perfeito. Foi
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quando comecei a perceber que o teatro era
uma coisa importante, mas o meu interesse era
fazer o vestibular para medicina em janeiro.
Um dia, a Nydia Licia ficou doente, teria que ser operada e não poderia fazer o espetáculo do
dia seguinte. Lembro que era meia-noite e es-
tavam todos num corre-corre atrás de uma atriz
de cabelo comprido e castanho. Eu falei “Que-
rem que eu faça amanhã?”. Foi um susto geral
e não tenho idéia, nem adianta me perguntar,
como eu disse isso. Sei que estava no camarim
da Cacilda e perguntei “Querem que eu faça
amanhã?” Achei que era a coisa mais fácil do
mundo. Já tinha assistido tantas vezes e, como
tenho uma memória de elefante, decorado as
falas. Sabia mais ou menos que eu ia entrar ali, sair por lá, essas coisas. Subimos no palco, en-saiamos e estreei no dia seguinte. Quando en-
trei em cena, todo mundo estava nervoso e eu,
calmíssima. No fim do espetáculo, todos gague-
jaram e eu estava entusiasmada com tudo aqui-
lo e me divertindo muito. Tímida e retraída, es-
treei fazendo a Rosa Gonzales, uma mexicana
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sensual.
Parece que fui bem, pois o Ziembinski logo me
perguntou se eu não queria fazer o teatro das
segundas-feiras. Além dos espetáculos normais,
o TBC levava textos experimentais nas noites de
segunda. O Ziembinski ia montar Pega-fogo, a
Cacilda faria o menino e faltava a empre-
gadinha. Ele falou que não ia prejudicar meus
estudos e que eu ia ganhar um dinheiro. E o
que eles me ofereciam para fazer quatro segun-
das-feiras era o dobro da mesada que a Cacilda
me dava para estudar. Aceitei por causa disso.
Não fiz o vestibular e nunca mais saí do palco.
Não que tivesse me apaixonado pelo teatro, mas
simplesmente porque iam me pagar e eu ia le-
var dinheiro para casa. A empregada era um
papel bonitinho, pequeninho, e representei essa peça durante nove anos com a Cacilda. Ela não
pôde mais largar, todo mundo queria ver o
Pega-fogo, não uma vez, mas dez, vinte vezes.
Pega-Fogo saiu das segundas experimentais e
quase dez anos depois fizemos em Paris, no Uru-
guai. Foi minha primeira peça ensaiada e tam-
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bém estreou em 1950.
Pega-fogo, com Cacilda Becker e Ziembinski
No Pique do TBC
De 1950 a 1957, a minha primeira fase do TBC,
fiz 28 peças. Tive muita sorte como atriz. Du-
rante sete anos, interpretei papéis completa-
mente diferentes, porque cada diretor me via
de um jeito. Fazia comédia, drama, clássico,
moderno e tive um aprendizado nessas peças
que nenhuma escola poderia me dar. Eu não
parei para um dia de descanso. No TBC nós fazí-
amos de terça a domingo, dez sessões por se-
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mana (sábado três e domingo duas). Em 1955,
com Maria Stuart, foi abolida a terceira sessão
dos sábados, porque acabava à uma da manhã
e a gente entrava à uma da tarde. Tínhamos a
segunda de folga, mas às vezes éramos escala-
dos para o teatro experimental das segundas.
Ensaiávamos de uma, uma e meia até seis, seis
e meia no TBC. Mesmo que estivesse fazendo
um papel que entrava no terceiro ato, na últi-
ma fala, tinha que estar presente desde o pri-
meiro dia do ensaio. E ficavam todos atentos,
um assistindo ao ensaio do outro, não se podia
ter uma revista, um jornal, um crochê, um tricô.
Depois que fazíamos o espetáculo, ensaiávamos
os teleteatros das segundas, da meia-noite até
duas da manhã. E das sete ao meio-dia, para
ganhar mais, pois ganhávamos muito pouco, a
gente fazia dublagem. Então, era trabalho das
sete às duas da manhã, todos os dias. Nos meus
primeiros anos de TBC, estive em espetáculos
como Ralé, de Maximo Gorki, que retratava uma
hospedaria de indigentes. O meu papel era o
de uma tuberculosa, que era mulher do Luis
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Linhares, e ganhei prêmio de revelação.
Maria Stuart, com Walmor Chagas
Em 1953, depois de vários papéis pequenos, o
diretor Adolfo Celi me deu a protagonista de
Assim é Se Lhe Parece. Foi uma responsabilida-
de muito grande fazer essa peça do Pirandello.
Com apenas três anos de teatro e com menos
de trinta, fui fazer a Frola, uma velha de 80 anos, sogra do Paulo Autran. Celi foi formidável e disse: “Todo principiante fala: eu vou fazer um ve-
lho. Não faça. Não existe andar de velho, voz
de velho, não tem nada. Cada velho é um ve-
lho”. Ele marcou ensaios de manhã comigo, duas
horas antes do resto do elenco. Celi fazia labo-
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ratório comigo, foi o primeiro, claro que sem
Ralé, com Elizabeth Henreid
usar a palavra laboratório. Saíamos pelas ruas
do centro de São Paulo, eu vestida com as rou-
pas da personagem. Ele dizia “vamos passear,
você tem 80 anos, olhe uma vitrine. O que você
está vendo? Mostra pra mim se você está vendo
alguma coisa para eu perceber o que você está
vendo. Agora você cansou, senta, levanta, va-
mos tomar café”. Eu tinha que agir como uma
velha, atravessar a rua, quase ser atropelada,
ver cachorro, ver criança, rezar ir na igreja, tudo para ir criando a minha personagem.
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Assim é, Se lhe Parece
Celi também me fez recorrer à memória
emotiva, lembrei de minha avó Maria e usei
vários elementos dela. Minha avó morreu com
84 anos, começou a ter lapsos de memória e o
tato foi o sentido que nela ficou muito vivo. Ela primeiro punha a mão e depois dizia: “copo”.
Se as palavras não saiam, apelava para a mími-
ca. Foram esses achados, mais que a maquila-
gem, que me ajudaram a compor a Frola. A peça
foi um sucesso incrível. Eu era aplaudida toda
noite, numa cena muda em que contra-cenava
com o Paulo. Ele falava e a cena era só minha
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reação. Assim é Se lhe Parece é um momento
marcante em minha carreira e com ela ganhei o
prêmio Governador do Estado de melhor atriz.
Frola foi das primeiras velhas de uma grande
galeria. Sempre fiz personagens com mais ida-
de. Acho que pela minha compreensão. Sem-
pre fui introspectiva. Rio pouco, falo baixo, falo pouco. Não tive filhos por opção. Gosto de pessoas de idade, enquanto não tenho paciência
com criança. “Faz gracinha pra mamãe ver”, não
acho graça nenhuma.
Tenho paciência de ouvir uma velha me contar
a mesma história várias vezes. Acho que por isso eu fui uma boa filha. Tenho dois sobrinhos, a
Maria Clara e o Luiz Carlos, o Cuca, filhos da
Cacilda. E tenho um sobrinho-neto, o Luiz Gui-
lherme, que é filho do Cuca.
Depois de Assim é Se lhe Parece, vieram espetá-
culos, como Leonor de Mendonça, onde eu ga-
nhei Medalha de Ouro de atriz no Rio de Janei-
ro, Volpone e Maria Stuart, em que contracenei
com a Cacilda, ela fazendo a personagem título
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e eu a rainha Elizabeth, antagonistas e papéis
igualmente intensos. Ganhei o prêmio Saci e
contracenar com a Cacilda foi maravilhoso, uma
delícia. Toda aquela luta e a célebre cena do
jardim, onde nos degladiávamos num embate
feroz. E quem tinha vencido o embate - às ve-
zes eu, às vezes ela - virava nosso assunto nos
camarins. Era muito gostoso, como uma luta de
florete, um jogo entre duas pessoas que se ama-
vam. Maria Stuart era um espetáculo de três
horas: matinê das 4 às 7, das 8 às 11 e das 11:30
às 2. Era um massacre e para os atores agüenta-
rem, tinha enfermeiro de plantão dando inje-
ção de B12.
Leonor de Mendonça
Muito importante politicamente foi o Mortos
Sem Sepultura, do Jean Paul Sartre, que se pas-
sava no inferno com os personagens se digla-
diando o tempo todo, machucando uns aos ou-
tros. Santa Marta Fabril S/A foi a primeira que
teve temporada longa e permaneceu um ano
em cartaz. A formação do público paulista ti-
nha se concretizado. Na peça, eu interpretava
uma jovem casada com o Walmor Chagas, em
sua segunda peça no TBC. Walmor estreou no
TBC em Assassinato a Domicílio, comigo e com
o Jardel Filho. O Jardel saiu, voltou para o Rio, e 42
o Walmor entrou. No vastíssimo repertório do
TBC, a gente fazia ponta, papel grande, prota-
gonista. Em 1957, antes de sair do TBC, traba-
lhei nas peças A Rainha e os Rebeldes, com dire-
ção do Maurice Vaneau e Adorável Júlia, dire-
ção do Ziembinski, com ele, Cacilda e Walmor.
As peças têm importância naquele momento, o
que passou, passou. Estou sempre pensando na
próxima, na que vou ensaiar. Eu não sou saudo-
sista, eu não sou melosa, eu não sou romântica.
Não fico chorando pelas coisas. Tem gente que
chega no último espetáculo e chora na despedi-
da. Eu não, acabou, acabou. Não gosto de des-
pedidas. Tchau, tchau, acabou, acabou... Eu não
tenho nada de romantismo.
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Mortos sem Sepultura, com Paulo Autran
Faça Ver
O meu conhecimento de teatro, eu fui apren-
dendo aos poucos. Aí é que aprendi que tem
que estudar o personagem. Quando você pega
uma peça, tem que primeiro localizar o autor,
de onde ele veio, saber o que ele pretende,
como ele era, o que ele comia, a personalidade,
porque que ele escreveu aquela peça, o que
aquele texto quer dizer, o que o personagem
quer dizer. Aquilo que é letra de forma, que é
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texto, é que acaba se transformando numa pes-
soa. Você fala porque pensa. Não existe a fala
sem pensamento. Para representar, o funda-
mental é ouvir e pensar, pensar e ouvir. Você
ouve e registra, responde. Tem gente que estu-
da o texto. O texto é uma conseqüência de um
pensamento. O que tem que estudar é o que a
personagem pensa, porque daí ela fala. Ela não
fala e depois pensa. Ela pensa e depois fala. Aos poucos, e guiada por pessoas diferentes, fui
entendendo esse trabalho de construir um ser
humano, que sai da letra de forma e vira gente.
Comecei sendo dirigida pelos melhores direto-
res, quer dizer, os únicos. Dizem que O TBC só
contratou diretores estrangeiros. Ué, mas não
tinha diretor nacional. Foi durante esse perío-
do até 1957 que apareceram os brasileiros dire-
tores, como Flávio Rangel e Antunes Filho. O
Flávio Rangel tinha 22 anos quando dirigiu
Zimba. Com 18, 19, ele trazia café pros direto-
res e ficava na platéia do TBC aprendendo. O
Antunes também.
Adolfo Celi, Flamínio Bollini, Luciano Salce,
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Ruggero Jacobi, Ziembinski: os diretores do TBC
eram completamente diferentes. Cada um tinha
seu sistema, seu método. Isso é que é bom.
É como o ator. Eu não sou igual à Fernanda
Montenegro, a Fernanda não é igual a Cacilda...
Como os atores são diferentes, os diretores
também. Cada um vê o espetáculo de uma
maneira.
O diretor com quem mais trabalhei foi o Flávio
Rangel, a partir da fase anos 60 do TBC. Tam-
bém fiz muita coisa com o Ziembinski, que me
adorava. Era um diretor mestre, professor, pa-
ciente, ensinava um caminho para você procu-
rar. O Celi era instigante, ele te provocava, enquanto o Salce judiava muito do ator, era impa-
ciente. Um intelectual, o Ruggero Jacobi dava
muito intelectualmente o que era esse perso-
nagem. O Bollini, a gente chamava de “faça ver”
e conto daqui a pouco por quê.
O Celi se formou na Itália, em 1945, com 24 anos, chegou ao Brasil em 1948 e logo estava no TBC
dirigindo Nick Bar, que tinha 28 personagens.
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Acho que de todos eles foi o diretor mais
apaixonante. O Celi tinha uma velocidade inte-
rior maravilhosa e com ele aprendi duas coisas:
ouvir e pensar. Tinha uma análise de texto de
cada vírgula.
O polonês Ziembinski foi o grande mestre de
toda uma geração de teatro. A importância dele
é anterior ao TBC e graças ao grupo carioca Os
Comediantes, a atuação dele foi talvez o pri-
meiro estímulo dos paulistas. Por incrível que
pareça, o polonês foi o que mais perto chegou
do Nelson Rodrigues, que é o brasileiro carioca, com a histórica montagem de Vestido de Noiva, em 1943.
Era um mestre. Às vezes, numa cena difícil que
o ator não conseguia, ele tinha o método de
ensinar a fazer. O Celi explicava. Já o Ziembinski, como ele era um grande ator, fazia pra gente
ver. Mesmo que inicialmente a gente copiasse,
como uma criança copia. Ele tinha paciência de
explicar onde você devia acentuar a palavra,
qual era a palavra que tinha que ser acentua-
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da. Ele ensinava que dependendo do peso da
palavra você muda o sentido da frase, um outro
diretor não tinha essa paciência. Ele dizia “você está falando errado, está dizendo EU vou lá, não tô querendo saber quem vai, eu quero saber se
você vai. Ah, Eu VOU lá, é isso”.
O italiano Luciano Salce foi indicado para o TBC
pelo Ruggero e pelo Celi. Ele dirigiu Anjo de
Pedra, a primeira peça que eu participei, era um diretor extraordinário, mas para o ator já mais
formado. Ele era impaciente, queria ver um óti-
mo ator. Acho que um ator principiante fazen-
do a cena errada irritava, mexia com ele. Eu,
por exemplo, sofri. Era principiante e fui fazer uma peça com ele logo no primeiro ano, Convite ao Baile.
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Convite ao Baile, com Ruy Affonso
Sofri porque não sabia como fazer e sentia que
ele se irritava, porque não tinha aquela paciên-
cia de ensinar, era mais para corrigir. Quando a pessoa já está fazendo, ele burilava. Então, a
Cacilda, o Paulo, trabalhando com ele era uma
maravilha. Eu sofri com o Salce, embora ele fos-
se de um brilhantismo, acho que o diretor que
eu mais apreciei assistindo. Numa das minhas
idas para a Europa, eu o vi na Itália. Em Roma,
telefonei para ele e fui assistir A Gaivota.
O mais jovem dos diretores italianos do TBC,
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Flamínio Bollini devia ter uns 23 anos quando
chegou a São Paulo. Com ele fiz também meu
primeiro filme, Na Senda do Crime. Bollini era
muito interessante, principiante também como
diretor, com um grupo de gente que tinha mui-
tos novatos também. Nós fizemos Ralé, onde
Ziembinski, Paulo, Maria Della Costa, eram ato-
res mais tarimbados, mas tinha uma turma bem
principiante: eu, Elizabeth Henreid, Nydia Licia.
E nós o chamávamos “Faça Ver”. Por quê? Bom,
ele sabia o que queria, mas tinha muita dificul-
dade de pedir, orientar, pois era muito jovem.
Então, a gente dizia, será que a cena não é as-
sim, mais pro lado do humor. Ele dizia “Faça
Ver”. Vendo, ele dizia “não, não é isso, talvez
seja puxando mais pro lado dramático, aqui é
mais forte a cena”, coisas assim. “Faça ver”. Ele sabia como era a cena, mas não sabia orientar o
ator. A gente se esforçava para colaborar com
ele e o espetáculo foi feito junto. Bollini era
magro, nariz grande, um italiano interessante.
Bonito nenhum deles era. Jacobi era o contrá-
rio do Bollini. Era o que mais conhecia teatro
intelectualmente, mas como diretor não era tão
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bom. E tinha também o Maurice Vaneau, que
era belga.
O que é um bom diretor? É quando ele vai fun-
do no texto, na sua maneira de ver. Eu posso
até não concordar... O teatro é fantástico por-
que a mesma peça pode ser feita de dez mil
maneiras. Depende da visão de cada um. Os teus
valores não são os meus valores. Mas sejam quais forem os valores, o que faz um mau diretor é a
superficialidade. É ser superficial, é passar por cima. Eu posso assistir o espetáculo que é um
grande espetáculo, não concordar com a visão
do texto, mas não tem como negar que ele foi
fundo. O que faz um grande diretor é ele mer-
gulhar e não deixar nada de superficial. É isso que dá segurança, prazer ao autor. Um bom
diretor vai fundo, sem medo de errar. Um dire-
tor, como o ator, tem que arriscar.
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A Companhia da Cacilda
Em 1957, depois de Adorável Julia, me desliguei
do TBC, onde fiquei sete anos e aprendi a gos-
tar de fazer teatro. Depois começaram os ou-
tros grupos, com atores saídos de lá: a Cacilda
organizou seu grupo, Paulo Autran com a Tônia
Carrero também, o Sérgio Cardoso com a Nydia
Licia. Eu fui trabalhar com Cacilda, Walmor,
Ziembinski, Fredi Kleemann. Éramos sócios e
fundamos o Teatro Cacilda Becker (TCB).
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A Cacilda estava começando seu relacionamen-
to com o Walmor e eu, o meu com Stênio Garcia.
Fizemos um repertório de seis peças, e percor-
remos o Sul até o Uruguai, fazendo tudo quan-
to era cidade. Nós fomos de trem. Era um va-