Contos Libertinos por Marquês de Sade - Versão HTML
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- Retornemos - diz asperamente Esclaponville tendo sido
obrigado a acreditar, eu bem poderia matar esse maldito padre,
e acabariam fazendo com que eu pagasse mais do que ele vale;
retomemos, meu amigo, e guarda segredo, eu te peço.
Esclaponville torna a casa todo confuso, e, pouco depois, sua
benigna esposa vem se apresentar para jantar ao lado de tão
casta pessoa.
- Um momento, queridinha - diz o burguês furioso - desde
minha infância jurei a meu pai nunca jantar com putas.
- Com putas- responde complacentemente a Sra. Esclaponville
-, meu amigo, esse comentário me surpreende; que motivo tens
para tal censura?
- Como, sem-vergonha, que motivo tenho para te censurar?
Que foste fazer esta tarde no banho com o nosso vigário?
- Oh, meu Deus - responde a doce mulher -, é apenas isso,
meu filho? É apenas isso que tens a me dizer?
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- Como, por Deus, é apenas isso...
- Mas, meu amigo, eu segui teus conselhos; não me dissestes
que nada se arrisca quando se dorme com pessoas da Igreja?
Que depuramos nossa alma em tão santo romance? Que tal ato
equivalia a identificar-se ao Ser supremo, fazer entrar o Espírito
Santo em si, e abrir caminho, em resumo, à beatitude celeste...
Pois bem, meu filho, só fiz o que me disseste; sou, portanto, uma
santa, não uma meretriz! Ah! Respondo-te que se a alguma
dessas boas almas de Deus é dado um meio de abrir caminho,
como disseste, à beatitude celeste, esse meio é certamente o Sr.
vigário, pois nunca vi uma chave tão grande!
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O Professor Filósofo
De todas as ciências que se inculca na cabeça de uma criança
quando se trabalha em sua educação, os mistérios do
cristianismo, ainda que uma das mais sublimes matérias dessa
educação, sem dúvida não são, entretanto, aquelas que se
introjetam com mais facilidade no seu jovem espírito. Persuadir,
por exemplo, um jovem de catorze ou quinze anos de que Deus
pai e Deus filho são apenas um, de que o filho é consubstancial
com respeito ao pai e que o pai o é com respeito ao filho, etc,
tudo isso, por mais necessário à felicidade da vida, é, contudo,
mais difícil de fazer entender do que a álgebra, e quando
queremos obter êxito, somos obrigados a empregar certos
procedimentos físicos, certas explicações concretas que, por
mais que desproporcionais, facultam, todavia, a um jovem,
compreensão do objeto misterioso.
Ninguém estava mais profundamente afeito a esse método do
que o abade Du Parquet, preceptor do jovem conde de Nerceuil,
de mais ou menos quinze anos e com o mais belo rosto que é
possível ver.
- Senhor abade, - dizia diariamente o pequeno conde a seu
professor - na verdade, a consubstanciação é algo que está
além das minhas forças; é-me absolutamente impossível
compreender que duas pessoas possam formar uma só:
explicai-me esse mistério, rogo-vos, ou pelo menos colocai-o a
meu alcance.
O honesto abade, orgulhoso de obter êxito em sua educação,
contente de poder proporcionar ao aluno tudo o que poderia
fazer dele, um dia, uma pessoa de bem, imaginou um meio
bastante agradável de dirimir as dificuldades que embaraçavam
o conde, e esse meio, tomado à natureza, devia
necessariamente surtir efeito. Mandou que buscassem em sua
casa uma jovem de treze a catorze anos, e, tendo instruído bem
a mimosa, fez com que se unisse a seu jovem aluno.
- Pois bem, - disse-lhe o abade - agora, meu amigo, concebas
o mistério da consubstanciação: compreendes com menos
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dificuldade que é possível que duas pessoas constituam uma
só?
- Oh! meu Deus, sim, senhor abade, - diz o encantador
energúmeno - agora compreendo tudo com uma facilidade
surpreendente; não me admira esse mistério constituir, segundo
se diz, toda a alegria das pessoas celestiais, pois é bem
agradável quando se é dois a divertir-se em fazer um só.
Dias depois, o pequeno conde pediu ao professor que lhe
desse outra aula, porque, conforme afirmava, algo havia ainda
“no mistério” que ele não compreendia muito bem, e que só
poderia ser explicado celebrando-o uma vez mais, assim como
já o fizera. O complacente abade, a quem tal cena diverte tanto
quanto a seu aluno, manda trazer de volta a jovem, e a lição
recomeça, mas desta vez, o abade particularmente emocionado
com a deliciosa visão que lhe apresentava o belo pequeno de
Nerceuil consubstanciando-se com sua companheira, não pôde
evitar colocar-se como o terceiro na explicação da parábola
evangélica, e as belezas por que suas mãos haviam de deslizar
para tanto acabaram inflamando-o totalmente.
- Parece-me que vai demasiado rápido, - diz Du Parquet,
agarrando os quadris do pequeno conde muita elasticidade nos
movimentos, de onde resulta que a conjunção, não sendo mais
tão íntima, apresenta bem menos a imagem do mistério que se
procura aqui demonstrar... Se fixássemos, sim... dessa maneira,
diz o velhaco, devolvendo a seu aluno o que este empresta à
jovem.
- Ah! Oh! meu Deus, o senhor me faz mal - diz o jovem - mas
essa cerimônia parece-me inútil; o que ela me acrescenta com
relação ao mistério?
- Por Deus! - diz o abade, balbuciando de prazer - não vês,
caro amigo, que te ensino tudo ao mesmo tempo? É a trindade,
meu filho... É a trindade que hoje te explico; mais cinco ou seis
lições iguais a esta e serás doutor na Sorbornne.
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O Corno de si
Próprio, ou a
Reconciliação
Imprevista
Um dos maiores defeitos das pessoas mal-educadas é expor
uma porção de indiscrições, maledicências ou calúnias sobre
tudo o que respira, e isso diante das pessoas que não
conhecem; não se poderia imaginar a quantidade de casos que
se tornaram o fruto de semelhantes falatórios: qual é o homem
honesto, com efeito, que ouvirá falar mal do que o interessa sem
dar reparo aos malefícios a que o expõe? Não se faz com que
esse princípio de sábia moderação penetre o bastante a
educação dos jovens, não se lhes ensina o suficiente a conhecer
o mundo, os nomes, as qualidades, as atinências das pessoas
com as quais é-lhes dado conviver; coloca-se, no lugar desse
princípio, mil asneiras que só servem para a conspurcação, no
exato momento em que se alcança a idade da razão. Sempre faz
lembrar capuchinhos ensinando, a todo instante, beatices,
hipocrisias ou inutilidades, e nunca uma boa máxima de moral.
Ide mais longe, interrogar um jovem sobre seus verdadeiros
deveres para com a sociedade, perguntai-lhe o que deve a si
mesmo e aos outros, de que modo é preciso conduzir-se a fim
de ser feliz: ele vos responderá que se lhe ensinou a ir à missa e
rezar litanias, mas que nada compreende do que quereis dizer-
lhe; que se lhe ensinou a dançar, a cantar, mas não a viver entre
os homens. O caso que se tomou a conseqüência do
inconveniente que descrevemos não foi sério a ponto de causar
derramamento de sangue, disso não resultando senão um
gracejo; e é para esmiuçá-la que iremos abusar alguns minutos
da paciência de nossos leitores.
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O Sr. Raneville, de cinqüenta anos aproximadamente, tinha um
desses temperamentos fleumáticos que não deixam de exercer,
em absoluto, certo encanto no mundo: rindo pouco, mas fazendo
os outros rirem muito; pelas tiradas de seu espírito mordaz e
pela maneira frívola com que as proferia, amiúde encontrava,
unicamente por seu silêncio, ou pelas expressões burlescas de
sua fisionomia taciturna, o segredo de divertir mil vezes mais os
círculos em que era admitido do que esses tagarelas maçadores
sem vivacidade, monótonos, tendo sempre um conto a vos
narrar do qual riem uma hora antes, sem ser bastante felizes
para alegrar sequer um minuto quantos o escutam. Tinha ele um
importante emprego no departamento do fisco, e, para se
consolar de um péssimo casamento outrora contraído em
Orléans, após ter por lá deixado sua mulher desonesta, em Paris
despendia sem preocupação vinte ou vinte e cinco mil libras de
renda com uma mulher belíssima a quem sustentava, e com
alguns amigos tão amáveis quanto ele.
A amante do Sr. Raneville não era propriamente uma moça,
mas uma mulher casada e, por conseqüência, mais ardente,
pois, mesmo que se queira negar, essa pitada de sal do adultério
acrescenta com freqüência grande sabor a um gozo; era ela
muito bonita, com seus trinta anos, e tinha o mais belo corpo que
é possível achar; separada do marido, medíocre e desagradável,
viera da província em busca de fortuna em Paris, e não
demorara muito para a encontrar. Raneville, naturalmente
libertino, à espreita de todo bom pedaço, não deixara escapar
este e, havia três anos, por mui honesto tratamento, fineza e
dinheiro, fazia com que essa jovem esquecesse todas as
decepções que outrora aprouve ao himeneu disseminar em seu
caminho. Ambos, tendo aproximadamente o mesmo destino,
consolavam-se de maneira mútua, e se certificavam dessa
grande verdade que, entretanto, não corrige ninguém, segundo a
qual só há tantos casamentos maus e, em conseqüência, tanta
infelicidade no mundo, porque pais avaros ou imbecis unem
mais as fortunas do que os temperamentos: pois - dizia amiúde
Raneville à sua amante -, é bem certo que se o acaso nos
tivesse unido, em vez de nos dar, a vós, um marido tirano e
ridículo, e a mim, uma mulher prostituta, as rosas teriam nascido
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aos nossos pés em vez dos espinhos que por tanto tempo
colhemos.
Um acontecimento corriqueiro, do qual é bastante
desnecessário falar, levou certo dia o Sr. Raneville a essa aldeia
lamacenta e insalubre denominada Versalhes, onde reis feitos
para serem adorados em sua capital parecem fugir à presença
de súditos que os procuram, onde a ambição, a avareza, a
vingança, e o orgulho levam diariamente uma multidão de
infelizes nas asas do tormento a sacrificar ao ídolo do momento,
onde a elite da nobreza da França, que poderia desempenhar
um papel importante em suas terras, consente vir se humilhar
em antecâmaras, adular de modo vil porteiros, ou mendigar
humildemente uma refeição pior do que a sua para alguns
desses indivíduos que a sorte arranca, por uns momentos, às
nuvens do esquecimento, a fim de os recolocar lá pouco depois.
Tendo resolvido seus negócios, o Sr. Raneville monta num
desses coches da corte denominados “penicos”, e, lá se
encontra fortuitamente em companhia de um certo Dutour, muito
tagarela, bem gordo e pesado, grande trocista, também
empregado no departamento do fisco, só que em Orléans, sua
terra, a qual, conforme disse há pouco, é igualmente a do Sr.
Raneville. Trava-se a conversa, Raneville sempre lacônico e sem
jamais se revelar, já sabe o nome, o sobrenome, a cidade e a
ocupação do seu companheiro de estrada, antes de dizer sequer
uma palavra. Tendo informado esses detalhes, o Sr. Dutour
adentra um pouco mais naqueles da sociedade.
- Vós estivestes em Orléans, senhor - diz Dutour -, segundo
me parece, acabais de afirmar isso.
- Em tempos passados, lá residi alguns meses.
- E conhecestes, dizei-me, certa Sra. Raneville, uma das
maiores p. do mundo que já moraram em Orléans?
- Sra. Raneville, uma mulher bastante bonita.
- Exato.
- Sim, eu a conheci em certa ocasião.
Pois bem, eu vos direi confidencialmente que a possuí, por três
dias, como se faz com uma p. Com toda certeza, se há um
marido cornudo, pode-se dizer que ele é esse pobre Raneville.
- E o conheceis?
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- Não, só de nome; trata-se de pessoa má, que se arruína em
Paris, segundo dizem, com moças e devassos como ele.
- Nada vos direi sobre ele; não o conheço, mas compadeço-me
dos maridos cornos; não o sois, por acaso, senhor?
- A qual dos dois vos referis, ao marido ou ao corno?
- A um e outro; essas coisas estão de tal forma ligadas hoje em
dia que na verdade é muito difícil diferenciá-las.
- Sou casado, senhor; tive a infelicidade de desposar uma
mulher que comigo não se satisfez; e como seu temperamento
me conviesse muito pouco, nós nos separamos amigavelmente,
ela preferiu vir para Paris partilhar da solidão de uma de suas
parentas, religiosa do convento de Sainte-Aure, e reside nessa
casa, de onde me envia notícias suas de vez em quando, porém
de maneira nenhuma a vejo.
- Ela é devota?
- Não; mas talvez eu tivesse preferido isso.
- Ah! eu vos compreendo. E vós não tivestes sequer a
curiosidade de vos informar sobre sua saúde, nesta vossa
estada a que ora vos obrigam vossos negócios em Paris?
- Em verdade, não, não gosto dos conventos: amigo dos
prazeres, da alegria, criado para os entretenimentos, festejado
nos círculos sociais, não ouso em absoluto ir me arriscar num
locutório há pelo menos seis meses de vapores.*
- Mas uma mulher...
-... É um indivíduo que pode interessar quando dela nos
servimos, mas da qual devemos saber nos separar quando
sérias razões dela nos afastam.
- Há severidade no que dizeis.
- Absolutamente... Sabedoria... É o tom do presente, é a
linguagem da razão; devemos adotá-la, ou passar por idiotas.
- Isso supõe algum desvio em vossa mulher; explicai-me isso:
desvio de natureza, de complacência ou de conduta.
- Um pouco de tudo... Um pouco de tudo, senhor, mas
deixemos isso, rogo-vos, e retornemos a essa cara Sra.
Raneville: por Deus, não compreendo que, tendo estado em
Orléans, vós não tenhais vos divertido com essa criatura... Pois
todos a possuíram.
- Todos, não, pois bem vedes que eu não a possuí: não gosto
de mulheres casadas.
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- E sem querer ser por demais curioso: com quem passais
vosso tempo, senhor, eu vos pergunto?
- Primeiramente com meus negócios, e, em seguida, com uma
criatura bastante bonita, com quem janto de vez em quando.
- Não sois casado, senhor?
- Sou.
- E vossa mulher?
* Na medicina antiga (séculos XVII e XVIII), suposto mal-estar
provocado por emanações de corpos de pessoas em
determinado estado de espírito
- Ela se encontra na província, e deixo-a lá, assim como
deixais a vossa em Sainte-Aure.
- Casado, senhor, casado, e seríeis da confraria? Por favor,
respondei-me.
- Não vos disse que esposo e corno são sinônimos? A
depravação dos costumes, o luxo... Tantas coisas que fazem
uma mulher decair.
- Oh! É bem verdade, senhor, é bem verdade.
- Respondeis como homem sábio.
- Não, absolutamente; se bem que, senhor, uma belíssima
pessoa vos consola à ausência da esposa abandonada.
- Sim, na verdade, uma belíssima pessoa; quero que a
conheceis.
- Senhor, eu ficaria muito honrado.
- Oh! Nada de cerimônias, senhor; eis-nos ao nosso destino;
deixo-vos livre esta noite, por causa de vossos negócios, mas
amanhã sem falta espero-vos para jantar no endereço que vos
entrego.
E Raneville tem o cuidado de dar um endereço falso, no qual
pronto adverte, a fim de que os que vierem perguntar por ele
chamando-o por este nome o possam encontrar com facilidade.
No dia seguinte, o senhor Dutour por razão nenhuma falta ao
encontro, e, tendo sido tomadas as precauções, de modo a fazer
com que, com um nome fictício, a ele fosse dado encontrar
Raneville na residência, ele entra sem dificuldade. Aos primeiros
cumprimentos, Dutour parece inquieto por não vislumbrar ainda
a divindade que espera ver.
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- Homem impaciente - diz-lhe Raneville daqui vejo o que
procuram vossos olhos... Prometi-vos uma bela mulher; já
desejaríeis voltear em sua presença; acostumado a desonrar a
fronte dos maridos de Orléans, desejaríeis, estou bem certo
disso, tratar da mesma forma os amantes de Paris: aposto como
estaríeis bem contente de me colocardes na mesma condição
desse infeliz Raneville, de quem ontem me falastes de modo tão
divertido.
Dutour responde como homem galante, como pretensioso e,
conseqüentemente, como tolo, a conversação se torna divertida
por uns instantes e Raneville, tomando o amigo pela mão:
- Vinde - diz-lhe -, homem cruel! Vinde ao próprio templo onde
a divindade vos espera.
Dizendo isso, ele faz com que Dutour entre num gabinete
luxurioso, onde a amante de Raneville, preparada para o gracejo
e, tendo a palavra, encontrava-se no mais elegante déshabillé,
sobre uma otomana de veludo, porém velada: nada ocultava a
elegância e a exuberância de seu porte, apenas era impossível
ver-lhe o rosto.
- Eis uma pessoa belíssima - exclama Dutour - mas por que
me privar do prazer de admirar suas feições, estamos aqui,
portanto, no harém do grande Senhor?
- Não, não é preciso comentários; trata-se de pudor.
- Como, de pudor?
- Seguramente; acreditais que eu queira me limitar a vos
mostrar somente o porte ou o déshabillé de minha amante; meu
triunfo seria completo se, ao retirar todos esses véus, eu vos
convencesse do quanto devo estar feliz pela posse de tão fartos
encantos. Como essa jovem fosse singularmente modesta,
enrubesceria com tais detalhes; ela bem quis concordar com
isso, mas sob a cláusula expressa de estar coberta. Sabeis o
que é o pudor e as delicadezas das mulheres, Sr. Dutour; não é
a um homem elegante com trajes da moda como vós que se
prescreveria acerca de tais coisas!
- Como, por Deus, ireis me mostrar?
- Tudo, já vos disse; ninguém tem menos ciúme do que eu; a
felicidade que se experimenta sozinho me parece insípida; só
encontro satisfação junto à outra pessoa com quem compartilho.
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E para constatar suas máximas, Raneville começa por retirar
um lenço de gaze que revela nesse instante o mais belo pescoço
que é possível deslumbrar... Dutour se inflama.
- E então - diz Raneville -, o que achais disso?
- São os atributos da própria Vênus.
- Acreditai: seios tão alvos e firmes são feitos para incendiar...
Tocai-os, meu camarada! Os olhos algumas vezes nos
enganam; minha opinião é a de que, em matéria de volúpia, é
preciso valer-se de todos os sentidos.
Dutour estende a mão trêmula, apalpa, com êxtase, o mais
belo seio do mundo, e não deixa de se surpreender com a
incrível complacência de seu amigo.
- Vamos, mais para baixo! - diz Raneville, levantando até o
ventre uma saia leve de tafetá, sem que nada se oponha a essa
incursão - pois bem! O que dizeis dessas coxas? Acreditais que
o templo do amor possa ser sustentado por colunas mais belas
do que essas?
E o caro Dutour, continuando a apalpar tudo o que Raneville
lhe exibia:
- Patife! Adivinho vossos pensamentos - continua o
complacente amigo -, esse delicado templo, que as próprias
Graças cobriram de um musgo suave... Ardeis com desejos de
entreabri-lo, não é verdade? O que digo; com vontade de lá
colher um beijo, isso sim.
E Dutour transtornado... Balbuciando... Não respondia mais
senão pela violência das sensações das quais seus olhos eram
os instrumentos; encorajam-no... Seus dedos libertinos acariciam
os pórticos do templo que a própria volúpia descerra a seus
desejos: esse beijo divino permitido, ele o dá, e por uma hora o
saboreia.
- Amigo - diz ele -, não agüento mais! Expulsai-me de vossa
casa, ou permiti que eu siga em frente.
- Como? Em frente? E para que diabo de lugar desejas ir,
respondei-me?
- Pobre de mim; vós não me compreendeis de modo algum;
estou inebriado de amor, não posso mais me conter.
- E se essa mulher é feia?
- É impossível sê-lo com encantos tão divinos.
- Se ela é...
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- Que ela seja tudo o que quiser, eu vos digo, meu caro; não
posso mais resistir a isso.
- Segui em frente, portanto, terrível amigo, segui; satisfazei-
vos, pois que é preciso: sereis pelo menos grato por minha
complacência?
- Ah! Terei a maior gratidão, sem dúvida. E Dutour com a mão
afastava delicadamente o amigo, como que para deixá-lo a sós
com essa mulher.
- Oh! Para deixar-vos, não, não posso - diz Raneville -, mas
sois, assim, tão escrupuloso que não podeis vos contentar com
minha presença? Entre homens não se age absolutamente
desse modo: de resto, são minhas condições; ou diante de mim,
ou nada.
- Fosse diante do diabo - diz Dutour, não se contendo mais e
precipitando-se ao santuário onde seu incenso vai se queimar -,
se assim quereis, concordo com tudo...
- Pois bem - dizia de modo fleumático Raneville - as
aparências vos enganaram, e as delícias prometidas por tão
diversos encantos são ilusórias ou reais... Ah! Nunca, nunca vi
algo de tão voluptuoso.
- Mas esse maldito véu, amigo, esse véu pérfido: não me será
permitido retirá-lo?
- Sim... No último momento, naquele momento tão deleitável,
em que todos os nossos sentidos, seduzidos pela embriaguez
dos deuses, ela sabe nos tomar tão afortunados quanto eles
próprios, e amiúde bem superiores. Essa surpresa dobrará
vosso êxtase: ao encanto de usufruir a própria Vênus, vós
acrescentareis as inexprimíveis delícias de contemplar as
feições de Flore, e tudo isso se unindo a fim de aumentar vossa
felicidade; mergulhareis com bem mais facilidade nesse oceano
de prazeres, onde o homem encontra com tanta satisfação o
consolo de sua existência... Vós me fareis um sinal...
- Oh! Como podeis ver - diz Dutour -, sinto-me arrebatado
neste momento.
- Sim, estou vendo; sois fogoso.
- Mas fogoso a um ponto... Ó meu amigo! Atinjo este instante
celeste! Arrancai, arrancai esses véus, que eu contemple o
próprio firmamento.
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- Ei-lo - diz Raneville fazendo desaparecer o véu -, mas
cuidado para não encontrardes talvez, um Pouco perto desse
paraíso o inferno!
- Oh! Pelos céus - exclama Dutour, ao reconhecer sua mulher
-... O quê? Sois vós, senhora? ... Senhor, que estranho gracejo!
Vós mereceríeis... Essa celerada...
- Um momento, um momento, homem fogoso! Sois vós que
mereceis tudo; aprendei, meu amigo, que é preciso ser um
pouco mais cauto com as pessoas que não se conhece do que o
fostes comigo ontem. Esse infeliz Raneville que haveis tratado
tão mal em Orléans... Sou eu mesmo, senhor; como vedes, eu o
retribuo a vós em Paris; de resto, aqui estais, bem mais
avançado do que poderíeis crer; pensáveis ter feito corno de
mim e acabais de fazê-lo de vós mesmo.
Dutour aprendeu a lição, estendeu a mão ao amigo, e
concordou que recebera o que havia merecido.
- Mas essa pérfida...
- Pois bem, ela não vos imita? Qual é a lei bárbara que faz
acorrentar desumanamente esse sexo, concedendo-nos toda a
liberdade? É ela eqüitativa? E por que direito natural encerrais
vossa mulher em Sainte-Aure, enquanto, em Paris e em Orléans,
fazeis os maridos cornos? Meu amigo, isso não é justo, essa
encantadora criatura, cujo valor não soubesses reconhecer, veio
em busca de outras conquistas: ela teve razão; encontrou-me;
faço sua felicidade; fazei a da Sra. Raneville; concordo com isso,
vivamos felizes os quatro, e que as vítimas do destino não se
tornem as dos homens.
Dutour achou que seu amigo tinha razão, mas por uma
fatalidade inconcebível, tornou a se apaixonar com a mão
loucamente por sua mulher; Raneville, por mais cáustico, tinha a
alma bela demais para resistir aos pedidos de Dutour quanto a
recuperar sua mulher, a jovem concordou com isso, e houve
nesse acontecimento único, sem dúvida, um exemplo bem
singular dos golpes do destino e dos caprichos do amor.
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Augustine de
Villeblanche, ou O
Estratagema do
Amor
De todos os desvios da natureza, o que mais causou reflexão,
que pareceu mais estranho a esses pseudofilósofos que tudo
querem analisar sem nunca compreender algo -, dizia a uma de
suas melhores amigas, certo dia, a Srta. Villeblanche, da qual
falaremos oportunamente daqui a pouco -, é esse gosto bizarro
que mulheres de certa compleição, ou de certo temperamento,
desenvolveram com respeito a pessoas do seu sexo. Embora
bem anteriormente à imortal Safo, e depois dela, não tivesse
existido uma única região do universo, sequer uma cidade, que
não nos tivesse dado mulheres nascidas desse tipo de capricho,
e de acordo com provas tão cabais, fosse mais razoável acusar
a natureza de bizarria do que a essas mulheres de crime contra
a natureza, jamais, entretanto, deixou-se de as censurar, e, sem
a autoridade imperiosa que sempre teve o nosso sexo, quem
sabe se algum Cujas, algum Bartole, algum Luís IX, teriam
imaginado criar leis de fagots* , contra essas criaturas, do modo
como ousaram promulgar contra os homens que, formando o
mesmo gênero singular, e por tão boas razões, sem dúvida,
imaginaram, entre eles, poder se bastar a si próprios, e
pensaram que a mistura dos sexos, muito útil à propagação,
podia muito bem não ter essa mesma importância para os
prazeres. - Queira Deus que não tomemos nenhum partido sobre
isso... Não é, minha cara? - continuava a bela Augustine de
Villeblanche, lançando a essa amiga beijos que pareciam,
entretanto, no mínimo, suspeitos, mas em vez de fagots, em vez
de desprezo, em vez de sarcasmos - essas armas de todos e
embotadas em nossos dias -, não seria infinitamente mais
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*Fagot tem por tradução feixe de lenha; nesta passagem, Sade alude
à fogueira onde ardiam os hereges. (N. dos T.)
simples, num gesto totalmente indiferente à sociedade, tão ao
agrado de Deus, e, talvez mais útil à natureza do que se
imagina, que se permitisse a cada qual agir segundo a própria
vontade ... ? O que se pode temer dessa depravação? Aos olhos
de todo ser verdadeiramente sábio, parecerá que ela é capaz de
exercer influência sobre maiores depravações, mas nunca me
convencerão de que ela pode acarretar depravações perigosas...
Pelos céus! Receia-se que os caprichos dessas pessoas, de um
ou de outro sexo, sejam a causa do fim do mundo; que ponham
em risco a valiosa espécie humana, e que seu pretenso crime a
aniquile, por não se entregarem à sua multiplicação? Refleti bem
sobre isso, e vereis que todas essas perdas quiméricas são
inteiramente indiferentes à natureza; que não apenas ela não as
condena em absoluto, mas também prova a nós, de mil
maneiras, que as quer e deseja; e, contrariassem-na essas
perdas, ela haveria de as tolerar em mil casos; permitiria ela,
fosse-lhe a progenitura tão essencial, que uma mulher a isso não
pudesse servir senão durante um terço de sua vida, e que, ao
sair-lhe das mãos metade dos seres que ela gera, estes
tivessem inclinações contrárias a essa progênie, exigida,
todavia, por ela? Sendo mais preciso: ela permite que as
espécies se multipliquem, mas não exige isso de modo algum, e,
bem segura de que haverá sempre mais indivíduos do que lhe é
necessário, longe está de contrariar Os pendores de quantos
não se entregam à reprodução, e que se recusam a conformar-
se a isso. Ah! Deixemos que aja essa boa mãe; convençamo-nos
de que imensos são os seus recursos, de que nada do que
fazemos a ultraja e o crime que atentaria contra as suas leis
jamais nos há de sujar as mãos.
A Srta. Augustine de Villeblanche, de cuja parte da lógica
acabamos de tomar conhecimento, tendo se tornado senhora de
seus atos aos vinte anos de idade, podendo dispor de trinta mil
libras de renda, decidira-se, por gosto, nunca se casar; de boa
origem, sem ser ilustre, era ela filha de um homem que
enriquecera nas índias, que a tivera como única filha, e morrera
sem nunca a poder convencer de se casar. Não devemos
dissimulá-lo; essa repugnância que Augustine manifestava pelo
casamento em muito se devia a esse tipo de capricho do qual
ela acabara de fazer apologia; seja por conselhos, por educação,
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seja por disposição de órgão ou pelo calor do seu sangue
(nascera em Madras), seja por inspiração da natureza, enfim,
seja por tudo o que se quiser, a Srta. Villeblanche detestava os
homens, e de todo se entregava àquilo que ouvidos castos
entenderão com o termo safismo; não encontrava volúpia senão
nas pessoas de seu sexo, e só com as Graças se compensava
do desprezo que votava ao Amor.
Para os homens, Augustine era um verdadeiro desperdício;
alta, podendo servir de modelo a um pintor, com cabelos
castanhos os mais belos, nariz um pouco aquilino, dentes
extraordinários, e olhos de uma expressão, de uma vivacidade!
Pele tão fina, tão branca, o conjunto, numa palavra, evocando
tão ardente lascívia... Que bem certo era que vê-la assim,
perfeita para dar amor e tão determinada a não o receber de
maneira alguma, poderia arrancar a muitos homens infinitas
zombarias contra determinado gosto, por sinal, muito simples,
mas privando, contudo, os altares de Pafo* de uma das criaturas
do universo mais apropriadas a servi-los, - vê-la assim por força
havia de animar os sectários dos templos de Vênus. A srta.
Villeblanche ria prazerosamente dessas censuras todas, dessas
maledicências, e por isso não se dava menos a seus caprichos.
- A maior de todas as loucuras - dizia ela - é enrubescer por
causa de nossas inclinações naturais; e zombar de qualquer
indivíduo que possua gostos singulares é absolutamente tão
desumano quanto escarnecer de um homem ou de uma mulher
saída zarolha ou coxa do seio de sua mãe; mas convencer os
tolos sobre esses princípios racionais é tentar impedir o
movimento dos astros. Para o orgulho, há uma espécie de
prazer em zombar dos defeitos que se não tem, e essa
satisfação é tão doce ao homem e particularmente aos néscios,
que é muito raro vê-los renunciar a tal comportamento, este, por
sinal, fomenta a malvadez, as frívolas palavras de espírito, os
calembures vulgares, e, para a sociedade, isto é, para um grupo
de seres que o tédio reúne e a estupidez modifica, é tão doce
falar duas ou três horas sem nada dizer! tão delicioso brilhar às
custas dos outros, e proclamar, estigmatizando um vício, que se
está bem longe de o possuir... é uma espécie de elogio que se
faz tacitamente a si mesmo; por esse preço é lícito inclusive
associar-se aos outros, tracejar maquinações secretas a fim de
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pisar no indivíduo cujo grande erro é não pensar como a maioria
dos mortais; e a pessoa volta para casa toda entufada devido à
espirituosidade que não lhe faltou, embora com tal conduta só se
tenha demonstrado, essencialmente, pedantismo e estupidez.
Assim pensava a srta. Villeblanche; decidida de maneira muito
segura a nunca se reprimir, desdenhando as maledicências e
bastante rica para manter-se a si própria acima de sua
reputação, visava epicurianamente a uma vida voluptuosa, e de
maneira nenhuma a beatices celestiais em que acreditava muito
pouco, para não mencionar a idéia de uma imortalidade, por
demais quimérica aos seus sentidos; no centro de um pequeno
círculo de mulheres que pensavam como ela, a cara Augustine
entregava-se inocentemente a todos os prazeres que a
deleitavam. Tivera muitos pretendentes, mas todos haviam sido
tão maltratados, que quando já se estava prestes a se renunciar
a tal conquista, um jovem de nome Franville, de semelhante
condição social, ao menos tão rico quanto ela, tendo se
apaixonado como louco, não apenas não se revoltou de maneira
nenhuma com sua firmeza, como também decidiu com muita
seriedade não abandonar o posto enquanto ela não fosse
conquistada; comunicou o projeto a seus amigos, que dele
zombaram; asseverou-lhes que obteria êxito; eles o desafiaram
a obtê-lo, e ele se lançou à empresa. Franville, com dois anos
menos que a srta. Villeblanche, quase não tinha barba, mas boa
estatura, e feições as mais delicadas, e os cabelos mais bonitos
do mundo; quando o trajavam de mulher, ficava tão bem que
sempre enganava os dois sexos, e recebia amiúde, fugindo ao
assédio de uns, dos que demonstravam segurança em sua ação,
uma grande quantidade de declarações tão objetivas que no
mesmo dia seria capaz de se tornar o Antínoo de algum Adriano
ou o Adônis de alguma Psique. Foi com esse disfarce que
Franville imaginou seduzir srta. Villeblanche; veremos como
procedeu.
Um dos maiores prazeres de Augustine era, durante o
carnaval, vestir-se de homem, e participar de todos os bailes
com esse disfarce, tão análogo a suas inclinações; Franville, que
lhe mandava vigiar os passos, e que até aquele momento tivera
o cuidado de revelar-se-lhe bem pouco, soube, certa feita, que
essa a quem adorava na mesma noite iria a um baile organizado
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* Antiga cidade da ilha de Chipre, célebre por seu templo de Afrodite (N.dos
T.)
por associados do Ópera, onde todos os mascarados poderiam
entrar, e que, segundo costume dessa moça encantadora, ela se
apresentaria como capitã dos dragões. Ele se disfarça de
mulher, enfeita-se, veste-se com toda elegância e propriedade,
carrega a maquiagem, prescindindo da máscara, e,
acompanhado por uma de suas irmãs, muito menos bonita do
que ele próprio, apresenta-se assim no baile, para onde a
amável Augustine se dirigia em busca de aventura.
Menos de três voltas pelo salão bastaram para que Franville
fosse distinguido pelos olhos experientes de Augustine.
- Quem é aquela bela moça? - diz a srta. Villeblanche a uma
amiga que a acompanhava -... Creio nunca tê-la visto; como é
possível que tão deliciosa criatura tenha, pois, nos escapado?
Mal haviam sido pronunciadas essas palavras, e Augustine faz
quanto pode para encetar conversa com a falsa senhorita de
Franville, que a princípio foge, inquieta-se, esquiva-se, escapa, e
tudo isso a fim de fazer com que a desejem com mais ardor; por
fim, ela o aborda, frases banais travam inicialmente a conversa a
qual, a pouco e pouco, torna-se mais interessante.
- Está fazendo um calor insuportável no salão diz a srta.
Villeblanche -, deixemos nossas companhias juntas, e tomemos
um pouco de ar nesses aposentos onde nos divertimos e
refrescamos.
- Ah, senhor - diz Franville à srta. Villeblanche a qual ainda
finge confundir com um homem... - na verdade, não ouso fazer
isso: estou aqui apenas com minha irmã, mas sei que minha
mãe deverá vir com o esposo que me foi destinado, e se ambos
me vissem convosco, seria uma grande confusão...
- Bem, bem, é preciso pôr-se ao abrigo de todo esse medo
infantil... Qual a vossa idade, meu anjo?
- Dezoito anos, senhor.
- Ah! Digo-vos que aos dezoito já se deve ter adquirido o direito
de fazer tudo o que se quiser... Vamos, vamos, acompanhai-me,
e não tenhais nenhum medo... - E Franville se deixa levar.
- É verdade, encantadora criatura - continua Augustine,
conduzindo a pessoa a quem ainda toma aposentos contíguos
ao salão do baile... - é verdade, realmente vós vos unireis em
matrimônio... Como lamento por vós! e quem é ele, essa pessoa
a quem vos destinam? Um maçador, decerto... Ah, como será
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feliz, esse homem, e como eu gostaria de estar no lugar dele!
Consentiríeis desposar-me a mim, por exemplo? Dizei-me
francamente, jovem celestial.
- Ai de mim! Senhor, acaso não sabeis que, quando se é
jovem, segue-se os impulsos do coração?
- Pois bem; recusai-o, esse homem vil! tornar-nos-emos ambos
mais íntimos, e, se gostarmos... Por que não nos unir-nos? Não
preciso, graças a Deus, de permissão nenhuma; embora tenha
só vinte anos, sou senhor de minha vida, e se pudésseis
persuadir vossos pais em meu favor, antes de oito dias talvez
estivésseis, vós e eu, ligados pelos laços eternos.
Tagarelando, saíram do baile, e a astuta Augustine, que até lá
não conduzia sua presa para fugir ao perfeito amor, teve o
cuidado de a conduzir a um aposento muito isolado, do qual, por
meio de acordos acertados com os organizadores do baile, ela
sempre tinha o cuidado de se fazer senhora.
- Oh Deus! - diz Franville, tão logo vê Augustine fechar a porta
desse quarto e envolvê-lo nos seus braços -, oh pelos céus! Que
desejais fazer?... O quê? Convosco, frente a frente, senhor, e
num lugar tão retirado... Deixai-me, deixai-me, rogo-vos! Ou
chamo agora mesmo por socorro.
- Impedir-te-ei de fazê-lo, anjo divino - diz Augustine, apertando
a bela boca contra os lábios de Franville - grita agora, grita se
podes, e o puro sopro de teu hálito de rosas abrasará ainda mais
cedo o meu coração.
Franville defendia-se com bastante tibieza: é difícil encolerizar-
se muito quando se recebe de maneira tão terna o primeiro beijo
de quem se adora. Augustine, encorajada, investia com mais
força, nisso pondo essa veemência que só com efeito conhecem
as mulheres deliciosas, arrebatadas por essa fantasia. Em breve
as mãos se desgarram; Franville faz o papel da mulher que
cede, igualmente deixa que suas mãos explorem o corpo. Todas
as vestes são retiradas, e os dedos se dirigem quase ao mesmo
tempo para onde cada um crê encontrar o que lhe convém...
Então, Franville muda imediatamente de papel:
- Oh! Pelos céus - exclama ele -, o quê? Sois uma mulher...
- Horrível criatura - diz Augustine, pondo a mão em partes do
corpo que não dão margem à dúvida -, tanto trabalho para
encontrar um mísero homem... é preciso ter azar demais.
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- Na verdade, não mais do que eu - diz FranviIle, recompondo-
se, e dando mostras do mais profundo desprezo -, uso esse
disfarce para seduzir os homens; eu os amo, corro atrás deles, e
só encontro uma p...
- Oh, p.... Não - diz Augustine, com rancor nunca o fui em
minha vida; não é por se detestar os homens que se pode ser
tratada dessa maneira...
- Como, sois mulher, e detestais os homens?
- Sim, e isso pela mesma razão de serdes homem e
detestardes mulheres.
- Um encontro singular - eis tudo o que se pode dizer.
- E para mim muito triste - acrescenta Augustine, revelando
todos os sintomas de descontentamento mais acentuado.
- Em verdade, senhorita, tal encontro é ainda mais fastidioso
para mim - diz asperamente Franville -, desonrado por três
semanas: sabeis que em nossa ordem fazemos voto de nunca
tocar em mulheres?
- Parece-me que, sem se desonrar, é possível tocar numa
como eu.
- Com efeito, minha bela - continua Franville não vejo grande
motivo para a exceção, e não compreendo que um vício para
vós valha um mérito adicional.
- Um vício? Mas caberia a vós censurar-me pelos meus,
quando partilhais da mesma infâmia?
- Escutai - diz Franville -, não continuemos discutindo; o melhor
é nos separarmos e nunca mais nos vermos.
E, dizendo isso, Franville prepara-se para abrir a porta.
- Um momento, um momento - diz Augustine impedindo-o de
fazer isso -, ides espalhar nossa aventura pelo mundo todo,
aposto.
- Talvez venha a me divertir com isso.
- Que me importa, de resto, estou, graças a Deus, acima da
maledicência; retirai-vos, e dizei tudo o que vos aprouver... - e
impedindo-o de sair mais uma vez - sabei - diz ela sorrindo - que
essa história é extraordinária... Nós dois nos enganávamos.
- Ah! o erro é muito mais intolerável - diz Franville - a pessoas
de meu gosto, do que a pessoas do vosso... E esse vazio nos
repugna...
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- Por minha fé, meu caro! Sabei que o que nos ofereceis
desagrada ao menos tanto quanto a vós! Ora, o desencanto é
igual em cada um, mas a aventura é muito engraçada; não
deixemos de concordar com isso. Voltareis ao baile?
- Não sei.
- No que me diz respeito, não volto mais lá - diz Augustine -...
Vós me fizestes experimentar coisas... Contrariedade... Vou me
deitar.
- Perfeito.
- Mas vejamos se sereis bastante cortês para dardes o braço
até minha casa; minha residência fica a dois passos daqui; não
estou com minha carruagem; ireis me deixar aqui...
- Não, eu vos acompanharei de bom grado - diz Franville -,
nossas inclinações não nos impedem de sermos polidos...
Quereis minha mão?... Ei-la.
- Só me sirvo dela porque não encontro coisa melhor, pelo
menos.
- Ficai tranqüila; para mim, só vô-la ofereço por honestidade.
Chegam à porta da casa de Augustine, e Franville apresta-se a
se despedir.
- Em verdade, sois delicioso - diz a srta. Villeblanche -, o quê?
Deixar-me-eis na rua?
- Com mil desculpas - diz Franville -... Eu não pretendia...
- Ah, como são rudes esses homens que não amam as
mulheres!
- É que - diz Franville, dando, todavia, o braço à srta.
Villeblanche até sua residência -, vede, senhorita, eu gostaria de
retornar bem rápido ao baile e nele tentar reparar minha
estupidez.
- Vossa estupidez? Estais, pois, bem irritado por ter-me
encontrado?
- Eu não disse isso; mas não é verdade que podíamos os dois
ter um encontro infinitamente melhor?
- Sim, tendes razão - diz Augustine, entrando enfim eu seu
apartamento - tendes razão, senhor, eu, sobretudo... pois temo
que esse funesto encontro não me custe a felicidade de minha
vida.
- De que modo? Não estais, Portanto, bem segura de vossos
sentimentos?
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- Ainda ontem estava.
- Ah! Não sustentais vossas tácitas afirmações.
- Não sustento coisa alguma; vós me impacientais.
- Pois bem, eu me retiro, senhorita, me retiro... Deus me livre
de vos incomodar por mais tempo.
- Não! Permanecer, ordeno-vos! Seríeis capaz de vos esforçar
a fim de obedecer a uma mulher pelo menos uma vez em vossa
vida?
- Nada há que eu não faça - diz Franville, sentando-se por
complacência - já vos disse; sou honesto.
- Sabeis que, na vossa, é muito decente ter gostos tão
singulares?
- Oh! isso é muito diferente! no nosso caso, trata-se de
discrição, pudor... até mesmo orgulho, se quiserdes; medo de
entregar-se a um sexo que nos seduz somente para subjugar-
nos... Entretanto, os sentidos não mentem, e encontramos alívio
entre nós; conseguimos
ocultar-nos muito bem, e disso resulta um verniz de sabedoria
que freqüentes vezes engana; assim, a natureza se satisfaz, a
decência é observada e os costumes não são ultrajados.
- Eis o que se costuma chamar um bom e belo sofisma;
procedendo dessa maneira, justificar-se-ia tudo; e o que dizeis
em tudo isso que também não possamos alegar em favor
nosso?
- De maneira alguma! Com preconceitos muito diferentes, não
deveis ter medo que tais; vosso triunfo está em nossa derrota...
Mais multiplicais vossas conquistas, mais acrescentais à vossa
glória, e não vos podeis abster dos sentimentos que em vós
despertamos, senão pelo vício ou pela depravação.
- Na verdade, creio que me hás de converter.
- Eu o desejaria.
- O que ganharíeis com isso, enquanto vós mesma
continuaríeis em erro?
- É uma necessidade imposta pelo meu sexo, e, tal como as
mulheres, fico bem contente de trabalhar para elas.
- Se o milagre se realizasse, seus efeitos não seriam tão gerais
quanto imaginais; eu só desejaria me converter para uma única
mulher para pelo menos... Tentar.
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- O que dizeis é justo.
- O que é bem certo é que há certo preconceito, acredito, a
tomar partido antes de ter experimentado tudo.
- Como? Nunca tivestes uma mulher?
- Nunca; e vós... Possuiríeis por acaso primícias tão seguras?
- Oh, primícias, não... as mulheres que nós vemos são tão
hábeis e tão ciumentas que nada nos permitem... Mas nunca
conheci um homem em minha vida.
- E fizestes um juramento?
- Sim, jamais quero ver um, ou, pelo menos tão singular quanto
eu.
- Lamento não ter feito o mesmo voto.
- Não creio que seja possível ser mais impertinente...
E dizendo essas palavras, a srta. Villeblanche levanta-se e diz
a Franville que ele pode se retirar. Nosso jovem amante, sempre
frívolo, faz uma profunda reverência e se prepara para sair.
- Retornais ao baile - diz-lhe secamente a srta. Villeblanche,
observando-o com um despeito aliado ao mais ardente amor.
- Mas sim, eu vos disse; é o que me parece.
- Pelo visto, não sois capaz do sacrifício que vos faço.
- Que sacrifício me haveis feito?
- Só voltei para casa a fim de nada mais ver depois de ter tido
a infelicidade de vos conhecer.
- Infelicidade?
- Sois vós que me forçais a empregar essa expressão; só de
vós dependeria que eu lançasse mão de uma bem diferente .
- E como haveríeis de conciliar isso com vossos gostos?
- O que não se abandona quando se ama!
- É verdade; mas ser-vos-ia impossível amar-me.
- Concordo com isso; se conservásseis hábitos tão detestáveis
quanto esses que descobri em vós.
- E se eu renunciasse a eles?
- No mesmo instante, havia de imolar os meus nos altares do
amor... Ah! Criatura pérfida!, Que essa confissão custe a minha
glória, a qual acabas de arrancar-me - diz Augustine em lágrimas
-, deixando-se cair sobre uma poltrona.
- Da mais bonita boca do universo obtive a confissão mais
lisonjeira que me seria dado ouvir - diz Franville, lançando-se
aos joelhos de Augustine -... Ah! Caro objeto de meu mais terno
51
amor! Reconhecer meu ardil e condescender em não puni-lo de
modo algum; é aos vossos pés que vos imploro graça;
permanecerei aqui até obter meu perdão. Vedes próximo a vós,
senhorita, o amante mais constante e mais apaixonado; imaginei
necessário esse estratagema para sobrepujar um coração cujos
obstáculos eu conhecia. Obtive êxito, bela Augustine?
Recusareis, ao amor sem máculas, o que haveis condescendido
em dizer ao amante culpado... Culpado, eu... Culpado do que
haveis acreditado... Ah! Podíeis supor que uma paixão impura
pudesse existir na alma daquele que nunca ardeu de paixão
senão por vós.
- Traidor, tu me enganastes... Mas te perdôo... Contudo, nada
terás que me sacrificar, pérfido; e meu orgulho sentir-se-á até
mesmo lisonjeado por isso; pois bem, não importa; quanto a
mim, tudo te sacrifico... Está certo, renuncio com alegria para te
satisfazer as torpezas a que a vaidade nos arrasta quase tão
amiúde quanto nossos gostos. Sei que a natureza acaba por
triunfar, eu sufocava por desvios que agora abomino de todo
meu coração; não resistimos de modo nenhum a seu império;
ela não nos criou senão para vós; não vos formou senão para
nós; sigamos as leis dela, é pelo intermédio do próprio amor que
ela hoje mos inspira; elas se tornarão para mim mais sagradas.
Eis minha mão, senhor; eu vos tenho por homem de palavra, e
feito para aspirar a mim. Se eu por um instante fiz por merecer
perder vossa estima, por força de cuidados e ternura talvez
venha a recuperar minhas faltas, e forçar-vos-ei a reconhecer
que aquelas da imaginação nem sempre degradam uma alma
boa.
Franville, no cúmulo de seus votos, inundando de lágrimas de
sua alegria as belas mãos que as mantém coladas à sua boca,
levanta-se e precipitando-se nos braços que se lhe abrem:
- Oh, dia mais feliz de minha vida - ele exclama existe algo de
comparável a meu triunfo? Trago de volta ao seio das virtudes o
coração em que vou reinar para sempre.
Franville beija mil vezes o divino objeto de seu amor e dele se
separa; comunica, no dia seguinte, sua felicidade a todos os
seus amigos; a srta. Villeblanche era muito bom partido para que
seus pais lho recusassem; ele a desposa na mesma semana. A
ternura, a confiança, a discrição mais estrita, a modéstia mais
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severa, coroaram seu casamento, e se tornando o mais feliz dos
homens, foi bastante hábil para fazer da mais libertina das
moças a mais sábia e a mais virtuosa das mulheres.
53
A Crueldade
Fraterna
Nada é mais sagrado numa família do que a honra dos seus
membros, mas este tesouro chega a desbotar-se, por precioso
que possa ser, e os que estão interessados em preservá-lo
deverão fazê-lo encarregando-se eles próprios do papel
humilhante de perseguidores das infelizes criaturas que os
ofendem? Não seria razoável pôr em equação os horrores com
que atormentam a sua vítima e esta lesão tantas vezes
quimérica que se queixam de ter recebido? Qual, enfim, é mais
culpado aos olhos da razão, uma moça fraca e enganada ou um
parente qualquer que, para se erigir em vingador duma família,
se torna o carrasco desta infortunada? O acontecimento que
vamos pôr sob os olhos dos nossos leitores fará, talvez, decidir a
questão.
O conde de Luxeuil, tenente-general, homem de cerca de
cinqüenta e seis a cinqüenta e sete anos, regressava dum posto
situado numa das suas terras da Picardia quando, ao passar
pela floresta de Compiégne, por volta das seis duma tarde do fim
de Novembro, ouviu gritos de mulher que lhe pareceram provir
dos lados duma das estradas vizinhas da principal que
atravessava; detém-se e ordena ao criado de quarto que corria
ao lado da cadeirinha que fosse ver o que se passava.
Informam-no de que se trata duma moça de dezesseis a
dezessete anos, afogada em sangue, sem que fosse, todavia,
possível distinguir onde se encontravam os ferimentos e que
implorava socorro; o próprio conde logo se apeia, voa para junto
da desafortunada, sente igualmente dificuldade, por causa da
falta de luz, em distinguir donde pode vir o sangue que perde
mas, das respostas que recebe, vê por fim que é da veia dos
braços onde se costuma fazer a sangria.fffffffffffffffffffffffffffffffffffffff
- Menina - disse o conde, depois de ter assistido a criatura
dentro do que lhe era possível -, não estou aqui em situação de
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lhe perguntar as causas das suas infelicidades e a Menina não
está também em estado de mas contar; suba para a minha
viatura, peço-lhe, e que os nossos únicos cuidados sejam agora
para si, os de se tranqüilizar e, para mim, os de auxiliá-la.
Dizendo isto o Senhor de Luxeuil, ajudado pelo criado de
quarto, transporta a pobre moça para a cadeirinha, e partem.
Mal esta interessante pessoa se viu em segurança, quis
balbuciar algumas expressões de reconhecimento mas o conde,
suplicando-lhe para não falar, disse-lhe:11111111111111111111
- Amanhã, Menina, amanhã contar-me-á, espero, tudo a seu
respeito mas hoje, pela autoridade que me confere sobre si a
minha idade e a alegria que senti por lhe ser útil, peço-lhe
instantemente que apenas pense em acalmar-se.111111111111
Chegam; para evitar dar nas vistas, o conde manda envolver a
sua protegida num capote de homem e fá-la conduzir pelo criado
de quarto a um apartamento cômodo situado num dos extremos
do seu palácio, onde a vem ver, assim que acabou de receber as
efusões da mulher e do filho que o esperavam para cear nessa
noite.
O conde, ao vir visitar a sua doente, levou consigo um
cirurgião; a jovem é examinada, encontram-na num abatimento
indizível, a palidez do rosto quase parecia anunciar que lhe
restavam apenas alguns instantes de vida, embora não tivesse
qualquer ferimento; a sua fraqueza provinha, disse ela, da
enorme quantidade de sangue que diariamente perdera nos
últimos três meses mas, quando ia relatar ao conde a causa
sobrenatural desta perda prodigiosa, caiu de fraqueza e o
cirurgião declarou que deviam deixá-la tranqüila e contentarem-
se em lhe administrar reconstituintes e cordiais.11111111111111
A nossa jovem infortunada passou uma noite bastante boa mas
durante seis dias não se achou em condições de informar o seu
benfeitor dos acontecimentos que lhe diziam respeito; no sétimo
dia, ao fim da tarde, ignorando ainda toda a gente na casa do
conde que ela aí estivesse escondida, e não sabendo ela
mesma, devido às precauções tomadas, onde se encontrava,
suplicou ao conde que a ouvisse e que lhe concedesse,
sobretudo, a sua indulgência, quaisquer que fossem as faltas
que lhe confessasse. O Senhor de Luxeuil tomou assento,
garantiu à protegida que nunca lhe retiraria o interesse que ela
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nascera para despertar, e a nossa bela aventureira começou
assim a história das suas desgraças. 1111111111111111111111
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