Dos Delitos e das Penas por Cesare Beccaria - Versão HTML
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Apresenta
DOS DELITOS E DAS PENAS
Cesare Beccaria
APRESENTAÇÃO
Nélson Jahr Garcia (in memorian!)
"Dos delitos e das penas" é uma obra que se insere no
movimento filosófico e humanitário da segunda metade do século
XVIII, ao qual pertencem os trabalhos dos Enciclopedistas, como
Voltaire, Rousseau, Montesquieu e tantos outros.
Na época havia grassado a tese de que as penas constituíam
uma espécie de vingança coletiva; essa concepção havia
induzido à aplicação de punições de conseqüências muito
superiores e mais terríveis que os males produzidos pelos
delitos. Prodigalizara-se a prática de torturas, penas de morte,
prisões desumanas, banimentos, acusações secretas.
Foi contra essa situação que se insurgiu Beccaria. Sua obra foi
elogiada por intelectuais, religiosos e nobres (inclusive Catarina
da Rússia). As críticas foram poucas, geralmente resultantes de
interesses egoísticos de magistrados e clérigos. A humanidade
encontrava novos caminhos para garantir a igualdade e a justiça.
Estamos divulgando o texto por acreditarmos que deva ser
lido de novo, especialmente no Brasil. A prática de torturas, entre
nós, tem sido cada vez mais freqüente. A pena de morte, que vai
sendo abolida em países mais avançados, aqui tem sido proposta
por inúmeros políticos raivosos. Crianças ficam encarceradas
sob condições cruéis, às vezes bárbaras. Juizes corruptos vivem
no conforto de suas mansões. Assassinos frios, por serem
influentes, desfrutam de todas as mordomias.
Que o espírito de Beccaria nos ilumine.
BIOGRAFIA DO AUTOR
CESARE BONESANA, marquês de Beccaria, nasceu em Milão no
ano de 1738. Educado em Paris pelos jesuítas, entregou-se com
entusiasmo ao estudo da literatura e das matemáticas. Muita
influência exerceu na formação do seu espírito a leitura das
Lettres Persanes de Mostesquieu e de L'Esprit de Helvétius.
Desde então, todas as suas preocupações se voltaram para o
estudo da filosofia. Foi ele um dos fundadores da sociedade
literária que se formou em Milão e que, inspirando-se no exemplo
da de Helvétius, divulgou os novos princípios da filosofia
francesa. Além disso, a fim de divulgar na Itália as idéias novas,
Beccaria fez parte da redação do jornal II Caffè, que apareceu de
1764 a 1765.
Foi mais ou menos por essa época que, insurgindo-se contra
as injustiças dos processos criminais em voga, Beccaria
principiou a agitar com os seus amigos, entre os quais se
destacavam os irmãos Pietro e Alessandro Verri, os complexos
problemas relacionados com a matéria. Assim teve origem o seu
livro Dei Delitti e delle Pene. Receoso de perseguições, o autor
mandou imprimir sua obra secretamente, em Livorno, e ainda
assim velando muitos pensamentos com expressões vagas e
indecisas.
O tratado Dos Delitos e das Penas é a filosofia francesa
aplicada à legislação penal: contra a tradição jurídica, invoca a
razão e o sentimento; faz-se porta-voz dos protestos da
consciência pública contra os julgamentos secretos, o juramento
imposto aos acusados, a tortura, a confiscação, as penas
infamantes, a desigualdade ante o castigo, a atrocidade dos
suplícios; estabelece limites entre a justiça divina e a justiça
humana, entre os pecados e os delitos; condena o direito de
vingança e toma por base do direito de punir a utilidade social;
declara a pena de morte inútil e reclama a proporcionalidade das
penas aos delitos, assim como a separação do poder judiciário e
do poder legislativo. Nenhum livro fora tão oportuno e o seu
sucesso foi verdadeiramente extraordinário, sobretudo entre os
filósofos franceses. O abade Morellet traduziu-o, Diderot anotou-
o, Voltaire comentou-o. d'Alembert, Buffon, Hume, Helvétius, o
barão d'Holbach, em suma, todos os grandes homens da França
manifestaram desde logo a sua admiração e seu entusiasmo. Em
1766, indo a Paris, Beccaria foi alvo das mais vivas
demonstrações de simpatia. No entanto, tendo regressado a
Milão, cidade que ele não mais abandonou, teve de sofrer uma
campanha infamante por parte dos seus adversários, que ainda
se apegavam aos preconceitos e à rotina para acusá-lo de
heresia. A denúncia não teve conseqüências, mas Beccaria
ressentiu-se de tal forma que o receio de novas perseguições
levou-o a renunciar às dissertações filosóficas.
Em 1768, o governo austríaco, sabedor de que ele recusara as
ofertas de Catarina II, que procurara atraí-lo para São
Petersburgo, criou em seu favor uma cátedra de economia
política.
Beccaria
morreu
em
Milão,
em
1794.
PREFÁCIO DO AUTOR
ALGUNS fragmentos da legislação de um antigo povo
conquistador, compilados por ordem de um príncipe que reinou
há doze séculos em Constantinopla, combinados em seguida com
os costumes dos lombardos e amortalhados num volumoso
calhamaço de comentários obscuros, constituem o velho acervo
de opiniões que uma grande parte da Europa honrou com o nome
de leis; e, mesmo hoje, o preconceito da rotina, tão funesto
quanto generalizado, faz que uma opinião de Carpozow (1), uma
velha prática indicada por Claro (2), um suplício imaginado com bárbara complacência por Francisco (3), sejam as regras que
friamente seguem esses homens, que deveriam tremer quando
decidem da vida e fortuna dos seus concidadãos
É esse código informe, que não passa de produção
monstruosa dos séculos mais bárbaros, que eu quero examinar
nesta obra. Limitar-me-ei, porém, ao sistema criminal, cujos
abusos ousarei assinalar aos que estão encarregados de proteger
a felicidade pública, sem preocupação de dar ao meu estilo o
encanto que seduz a impaciência dos leitores vulgares.
Se pude investigar livremente a verdade, se me elevei acima
das opiniões comuns, devo tal independência à indulgência e às
luzes do governo sob o qual tenho a felicidade de viver. Os
grandes reis e príncipes que querem a felicidade dos homens que
governam são amigos da verdade, quando esta lhes é revelada
por um filósofo que, do fundo do seu retiro, mostra uma coragem
isenta de fanatismo e se contenta em combater com as armas da
razão as empresas da violência e da intriga.
De resto, examinando-se os abusos de que vamos falar,
verificar-se-á que os mesmos constituem a sátira e a vergonha
dos séculos passados, mas não do nosso século e dos seus
legisladores.
Se alguém quiser dar-me a honra de criticar meu livro, trate
antes de apreender bem o fim que me propus. Longe de pensar
em diminuir a autoridade legítima, ver-se-á que todos os meus
esforços só visam a engrandecê-la e esta se engrandecerá, de
fato, quando a opinião pública for mais poderosa do que a força,
quando a indulgência e a humanidade fizerem que se perdoe aos
príncipes o seu poder.
Críticos houve, cujas intenções não podiam ser honestas, que
atacaram esta obra alterando-a (4). Devo interromper-me um instante, para impor silêncio à mentira azoinada, aos furores do
fanatismo, às calúnias covardes do ódio.
Os princípios de moral e de política, aceitos entre os homens,
derivam em geral de três fontes: a revelação, a lei natural e as
convenções sociais. Não se pode estabelecer comparação entre a
primeira e as duas últimas, do ponto-de-vista dos seus fins
principais; completam-se, porém, ao tenderem igualmente para
tornar os homens felizes na terra. Discutir as relações das
convenções sociais não significa atacar as relações que podem
encontrar-se entre a revelação e a lei natural.
Uma vez que esses princípios divinos, embora imutáveis,
foram de mil modos desnaturados nos espíritos corruptos, ou
pela maldade humana, ou pelas falsas religiões, ou pelas idéias
arbitrárias da virtude e do vício, deve parecer necessário
examinar (pondo de lado quaisquer considerações estranhas) os
resultados das simples convenções humanas, quer essas
convenções tenham sido feitas realmente, quer se suponham
vantajosas para todos. Todas as opiniões, todos os sistemas de
moral devem reunir-se necessariamente nesse ponto, e nunca se
louvariam bastante os louváveis esforços tendentes a reconduzir
os mais obstinados e os mais incrédulos aos princípios que
levam os homens a viver em sociedade.
Podem, pois, distinguir-se três espécies de virtudes e de
vícios, cuja fonte está igualmente na religião, na lei natural e nas
convenções políticas. Jamais devem essas três espécies estar
em contradição entre si; não alcançam, contudo, os mesmos
resultados e não obrigam aos mesmos deveres. A lei natural
exige menos que a revelação, e as convenções sociais menos
que a lei natural. Assim, é muito importante distinguir bem os
efeitos dessas convenções, isto é, dos pactos expressos ou
tácitos que os homens se impuseram, porque nisso deve residir o
exercício legítimo da força, nessas relações de homem a homem,
que não exigem a missão especial do Ser supremo.
Pode dizer-se, portanto, com razão, que as idéias da virtude
política são variáveis. As da virtude natural seriam sempre claras
e precisas se as fraquezas e as paixões humanas não
empanassem a sua pureza. As idéias da virtude religiosa são
imutáveis e constantes, porque foram imediatamente reveladas
pelo próprio Deus, que as conserva inalteráveis.
Pode, pois, aquele que fala das convenções sociais e dos seus
resultados ser acusado de mostrar princípios contrários, à lei
natural ou à revelação, por nada dizer a respeito?... Se diz que o
estado de guerra precedeu a reunião dos homens em sociedade,
é o caso de compará-lo a Hobbes (5), que não supõe para o homem isolado nenhum dever, nenhuma obrigação natural?...
Não se pode ao - contrário, considerar o que ele diz como um
fato, que foi tão somente a conseqüência da corrupção humana e
da ausência das leis? Enfim, não é um erro censurar um escritor,
que examina os efeitos das convenções sociais, por não admitir
antes de tudo a existência mesma dessas convenções?.
A justiça divina e a justiça natural são, por sua essência,
constantes e invariáveis, porque as relações existentes entre dois
objetos da mesma natureza não podem mudar nunca. Mas, a
justiça humana, ou, se se quiser, a justiça política, não sendo
mais do que uma relação estabelecida entre uma ação e o estado
variável da sociedade, também pode variar, à medida que essa
ação se torne vantajosa ou necessária ao estado social. Só se
pode determinar bem a natureza dessa justiça examinando com
atenção as relações complicadas das inconstantes combinações
que governam os homens.
Se todos esses princípios, essencialmente distintos, chegam a
confundir-se, já não é possível raciocinar com clareza sobre os
assuntos políticos.
Cabe aos teólogos estabelecer os limites do justo e do injusto,
segundo a maldade ou a bondade interiores da ação. Ao
publicista cabe determinar tais limites em política, isto é, sob as
relações do bem e do mal que a ação possa fazer à sociedade.
Esse último objeto não pode acarretar nenhum prejuízo ao
outro, porque todos sabem quanto a virtude política está abaixo
das virtudes inalteráveis que emanam da Divindade.
Repito, pois, que, se quiserem dar ao meu livro a honra de uma
crítica, não comecem por me atribuir princípios contrários à
virtude ou à religião, pois tais princípios não são os meus; em
lugar de me assinalar como um ímpio ou um sedicioso,
contentem-se em mostrar que sou mau lógico ou ignorante
político; não tremam a cada proposição em que defendo os
interesses da humanidade; verifiquem a inutilidade de minhas
máximas e os perigos que podem ter minhas opiniões; façam-me
ver as vantagens das práticas recebidas.
Dei um testemunho público dos meus princípios religiosos e
da minha submissão ao soberano, ao responder às Notas e
Observações que se publicaram contra minha obra. Devo guardar
silêncio em relação aos escritores que doravante só me
opuserem as mesmas objeções. Mas, aquele que puser em sua
crítica a decência e o respeito que os homens honestos se devem
entre si, e quem tiver bastantes luzes para não me obrigar a
demonstrar-lhe os princípios mais simples, de qualquer natureza
que sejam, encontrará em mim um homem menos apressado a
defender suas opiniões particulares do que um tranqüilo amigo
da verdade, pronto a confessar os seus erros.
I. INTRODUÇÃO
As vantagens da sociedade devem ser igualmente repartidas
entre todos os seus membros.
No entanto, entre os homens reunidos, nota-se a tendência
contínua de acumular no menor número os privilégios, o poder e
a felicidade, para só deixar à maioria miséria e fraqueza.
Só com boas leis podem impedir-se tais abusos. Mas, de
ordinário, os homens abandonam a leis provisórias e à prudência
do momento o cuidado de regular os negócios mais importantes,
quando não os confiam à discrição daqueles mesmos cujo
interesse é oporem-se às melhores instituições e às leis mais
sábias.
Além disso, não é senão depois de terem vagado por muito
tempo no meio dos erros mais funestos, depois de terem exposto
mil vezes a própria liberdade e a própria existência, que,
cansados de sofrer, reduzidos aos últimos extremos, os homens
se determinam a remediar os males que os afligem.
Então, finalmente, abrem os olhos a essas verdades palpáveis
que, por sua simplicidade mesma, escapam aos espíritos
vulgares, incapazes de analisar os objetos e acostumados a
receber sem exame e sobre palavra todas as impressões que se
lhes queiram dar.
Abramos a história, veremos que as leis, que deveriam ser
convenções feitas livremente entre homens livres, não foram, o
mais das vezes, senão o instrumento das paixões da minoria, ou
o produto do acaso e do momento, e nunca a obra de um
prudente observador da natureza humana, que tenha sabido
dirigir todas as ações da sociedade com este único fim: todo o
bem-estar possível para a maioria.
Felizes as nações (se há algumas) que não esperaram que
revoluções lentas e vicissitudes incertas fizessem do excesso do
mal uma orientação para o bem, e que, mediante leis sábias.
apressaram a passagem de um para o outro. Como é digno de
todo o reconhecimento do gênero humano o filósofo (6) que, do
fundo do seu retiro obscuro e desprezado, teve a coragem de
lançar na sociedade as primeiras sementes por tanto tempo
infrutíferas das verdades úteis!
As verdades filosóficas, por toda parte divulgadas através da
imprensa, revelaram enfim as verdadeiras relações que unem os
soberanos aos súditos e os povos entre si. O comércio animou-
se e entre as nações elevou-se uma guerra industrial, a única
digna dos homens sábios e dos povos policiados.
Mas, se as luzes do nosso século já produziram alguns
resultados, longe estão de ter dissipado todos os preconceitos
que tínhamos. Ninguém se levantou, senão frouxamente, contra a
barbárie das penas em uso nos nossos tribunais. Ninguém se
ocupou com reformar a irregularidade dos processos criminais,
essa parte da legislação tão importante quanto descurada em
toda a Europa. Raramente se procurou destruir, em seus
fundamentos, as séries de erros acumulados desde vários
séculos; e muito poucas pessoas tentaram reprimir, pela força
das verdades imutáveis, os abusos de um poder sem limites, e
fazer cessar os exemplos bem freqüentes dessa fria atrocidade
que os homens poderosos encaram como um dos seus direitos.
Entretanto, os dolorosos gemidos do fraco, sacrificado à
ignorância cruel e aos opulentos covardes; os tormentos atrozes
que a barbárie inflige por crimes sem provas, ou por delitos
quiméricos; o aspecto abominável dos xadrezes e das
masmorras, cujo horror é ainda aumentado pelo suplício mais
insuportável para os infelizes, a incerteza; tantos métodos
odiosos, espalhados por toda parte, deveriam ter despertado a
atenção dos filósofos, essa espécie de magistrados que dirigem
as opiniões humanas.
O imortal Montesquieu (7) só ocasionalmente pode abordar essas importantes matérias. Se eu segui as pegadas luminosas
desse grande homem, é que a verdade é uma e a mesma em toda
parte. Mas, os que sabem pensar (e é somente para estes que
escrevo) saberão distinguir meus passos dos seus. Sentir-me-ei
feliz se, como ele, puder ser objeto do vosso secreto
reconhecimento, oh vós, discípulos obscuros e pacíficos da
razão! Sentir-me-ei feliz se puder excitar alguma vez esse frêmito
pelo qual as almas sensíveis respondem à. voz dos defensores da
humanidade!
Seria este, talvez, o momento de examinar e distinguir as
diferentes espécies de delitos e a maneira de puni-los; mas, o
número e a variedade dos crimes, segundo as diversas
circunstâncias de tempo e de lugar, nos lançariam num atalho
imenso e fatigante. Contentar-me-ei, pois, com indicar os
princípios mais gerais, as faltas mais comuns e os erros mais
funestos, evitando igualmente os excessos dos que, por um amor
mal entendido da liberdade, procuram introduzir a desordem, e
dos que desejariam submeter os homens à regularidade. dos
claustros.
Mas, qual é a origem das penas, e qual o fundamento do direito
de punir? Quais serão as punições aplicáveis aos diferentes
crimes? Será a pena de morte verdadeiramente útil, necessária,
indispensável para a segurança e a boa ordem da sociedade?
Serão justos os tormentos e as torturas? Conduzirão ao fim que
as leis se propõem? Quais os melhores meios de prevenir os
delitos? Serão as mesmas penas igualmente úteis em todos os
tempos? Que influência exercem sobre os costumes?
Todos esses problemas merecem que se procure resolvê-los
com essa precisão geométrica que triunfa da destreza dos
sofismas, das dúvidas tímidas e das seduções da eloqüência.
Sentir-me-ia feliz se não tivesse outro mérito além do de ter
sido o primeiro que apresentou na Itália, com maior clareza, o que
outras nações ousaram escrever e começam a praticar.
Mas, se, ao sustentar os direitos do gênero humano e da
verdade invencível, contribuí para salvar da morte atroz algumas
das trêmulas vítimas da tirania ou da ignorância igualmente
funesta, as bênçãos e as lágrimas de um único inocente
reconduzido aos sentimentos da alegria e da felicidade consolar-
me-iam do desprezo do resto dos homens.
II. ORIGEM DAS PENAS E DIREITO DE PUNIR
A MORAL política não pode proporcionar à sociedade nenhuma
vantagem durável, se não for fundada sobre sentimentos
indeléveis do coração do homem.
Toda lei que não for estabelecida sobre essa base encontrará
sempre uma resistência à qual será constrangida a ceder. Assim,
a menor força, continuamente aplicada, destrói por fim um corpo
que pareça sólido, porque lhe comunicou um movimento violento.
Consultemos, pois, o coração humano; acharemos nele os
princípios fundamentais do direito de punir.
Ninguém fez gratuitamente o sacrifício de uma porção de sua
liberdade visando unicamente ao bem público. Tais quimeras só
se encontram nos romances. Cada homem só por seus interesses
está ligado às diferentes combinações políticas deste globo; e
cada qual desejaria, se fosse possível, não estar ligado pelas
convenções que obrigam os outros homens. Sendo a
multiplicação do gênero humano, embora lenta e pouco
considerável, muito superior aos meios que apresentava a
natureza estéril e abandonada, para satisfazer necessidades que
se tornavam cada dia mais numerosas e se cruzavam de mil
maneiras, os primeiros homens, até então selvagens, se viram
forçados a reunir-se. Formadas algumas sociedades, logo se
estabeleceram novas, na necessidade em que se ficou de resistir
às primeiras, e assim viveram essas hordas, como tinham feito os
indivíduos, num contínuo estado de guerra entre si. As leis foram
as condições que reuniram os homens, a princípio independentes
e isolados sobre a superfície da terra.
Cansados de só viver no meio de temores e de encontrar
inimigos por toda parte, fatigados de uma liberdade que a
incerteza de conservá-la tornava inútil, sacrificaram uma parte
dela para gozar do resto com mais segurança. A soma de todas
essas porções de liberdade, sacrificadas assim ao bem geral,
formou a soberania da nação; e aquele que foi encarregado pelas
leis do depósito das liberdades e dos cuidados da administração
foi proclamado o soberano do povo.
Não bastava, porém, ter formado esse depósito; era preciso
protegê-lo contra as usurpações de cada particular, pois tal é a
tendência do homem para o despotismo, que ele procura sem
cessar, não só retirar da massa comum sua porção de liberdade,
mas ainda usurpar a dos outros.
Eram necessários meios sensíveis e bastante poderosos para
comprimir esse espírito despótico, que logo tornou a mergulhar a
sociedade no seu antigo caos. Esses meios foram as penas
estabelecidas contra os infratores das leis.
Disse eu que esses meios tiveram de ser sensíveis, porque a
experiência fez ver quanto a maioria está longe de adotar
princípios estáveis de conduta. Nota-se, em todas as partes do
mundo físico e moral, um princípio universal de dissolução, cuja
ação só pode ser obstada nos seus efeitos sobre a sociedade por
meios que impressionam imediatamente os sentidos e que se
fixam nos espíritos, para contrabalançar por impressões vivas a
força das paixões particulares, quase sempre opostas ao bem
geral. Qualquer outro meio seria insuficiente. Quando as paixões
são vivamente abaladas pelos objetos presentes, os mais sábios
discursos, a eloqüência mais arrebatadora, as verdades mais
sublimes, não passam, para elas, de um freio impotente que logo
despedaçam.
Por conseguinte, só a necessidade constrange os homens a
ceder uma parte de sua liberdade; daí resulta que cada um só
consente em pôr no depósito comum a menor porção possível
dela, isto é, precisamente o que era preciso para empenhar os
outros em mantê-lo na posse do resto.
O conjunto de todas essas pequenas porções de liberdade é o
fundamento do direito de punir. Todo exercício do poder que se
afastar dessa base é abuso e não justiça; é um poder de fato e
não de direito (8); é uma usurpação e não mais um poder legítimo.
As penas que ultrapassam a necessidade de conservar o
depósito da salvação pública são injustas por sua natureza; e
tanto mais justas serão quanto mais sagrada e inviolável for a
segurança e maior a liberdade que o soberano conservar aos
súditos.
III. CONSEQUÊNCIAS DESSES PRINCÍPIOS
A PRIMEIRA conseqüência desses princípios é que só as leis
podem fixar as penas de cada delito e que o direito de fazer leis
penais não pode residir senão na pessoa do legislador, que
representa toda a sociedade unida por um contrato social.
Ora, o magistrado, que também faz parte da sociedade, não
pode com justiça infligir a outro membro dessa sociedade uma
pena que não seja estatuída pela lei; e, do momento em que o juiz
é mais severo do que a lei, ele é injusto, pois acrescenta um
castigo novo ao que já está determinado. Segue-se que nenhum
magistrado pode, mesmo sob o pretexto do bem público,
aumentar a pena pronunciada contra o crime de um cidadão.
A segunda conseqüência é que o soberano, que representa a
própria sociedade, só pode fazer leis gerais, às quais todos
devem submeter-se; não lhe compete, porém, julgar se alguém
violou essas leis.
Com efeito, no caso de um delito, há duas partes: o soberano,
que afirma que o contrato social foi violado, e o acusado, que
nega essa violação. É preciso, pois, que haja entre ambos um
terceiro que decida a contestação. Esse terceiro é o magistrado,
cujas sentenças devem ser sem apelo e que deve simplesmente
pronunciar se há um delito ou se não há.
Em terceiro lugar, mesmo que a atrocidade das mesmas não
fosse reprovada pela filosofia, mãe das virtudes benéficas e, por
essa razão, esclarecida, que prefere governar homens felizes e
livres a dominar covardemente um rebanho de tímidos escravos;
mesmo que os castigos cruéis não se opusessem diretamente ao
bem público e ao fim que se lhes atribui, o de impedir os crimes,
bastará provar que essa crueldade é inútil, para que se deva
considerá-la como odiosa, revoltante, contrária a toda justiça e à
própria natureza do contrato social.
IV. DA INTERPRETAÇÃO DAS LEIS
RESULTA ainda, dos princípios estabelecidos precedentemente,
que os juizes dos crimes não podem ter o direito de interpretar as
leis penais, pela razão mesma de que não são legisladores. Os
juizes não receberam as leis como uma tradição doméstica, ou
como um testamento dos nossos antepassados, que aos seus
descendentes deixaria apenas a missão de obedecer. Recebem-
nas da sociedade viva, ou do soberano, que é representante
dessa sociedade, como depositário legítimo do resultado atual da
vontade de todos.
Não se julgue que a autoridade das leis esteja fundada na
obrigação de executar antigas convenções (9); essas velhas
convenções são nulas, pois não puderam ligar vontades que não
existiam. Não se pode sem injustiça exigir sua execução; seria
reduzir os homens a não passar de um vil rebanho sem vontade e
sem direitos. As leis emprestam sua força da necessidade de
orientar os interesses particulares para o bem geral e do
juramento formal ou tácito que os cidadãos vivos voluntariamente
fizeram ao rei.
Qual será, pois o legítimo intérprete das leis? O soberano, isto
é, o depositário das vontades atuais de todos; e não o juiz, cujo
dever consiste exclusivamente em examinar se tal homem
praticou ou não um ato contrário às leis.
O juiz deve fazer um silogismo perfeito. A maior deve ser a lei
geral; a menor, a ação conforme ou não à lei; a conseqüência, a
liberdade ou a pena. Se o juiz for constrangido a fazer um
raciocínio a mais, ou se o fizer por conta própria, tudo se torna
incerto e obscuro.
Nada mais perigoso do que o axioma comum, de que é preciso
consultar o espírito da lei. Adotar tal axioma é romper todos os
diques e abandonar as leis à torrente das opiniões. Essa verdade
me parece demonstrada, embora pareça um. paradoxo aos
espíritos vulgares que se impressionam mais fortemente com
uma pequena desordem atual do que com conseqüências
distantes, mas mil vezes mais funestas, de um só princípio falso
estabelecido numa nação.
Todos os nossos conhecimentos, todas as nossas idéias se
mantêm. Quanto mais complicadas, tanto maiores são as suas
relações e resultados.
Cada homem tem sua maneira própria de ver; e o mesmo
homem, em diferentes épocas, vê diversamente os mesmos
objetos. O espírito de uma lei seria, pois, o resultado da boa ou
má lógica de um juiz, de uma digestão fácil ou penosa, da
fraqueza do acusado, da violência das paixões do magistrado, de
suas relações com o ofendido, enfim, de todas as pequenas
causas que mudam as aparências e desnaturam os objetos no
espírito inconstante do homem.
Veríamos, assim, a sorte de um cidadão mudar de face ao
passar para outro tribunal, e a vida dos infelizes estaria à mercê
de um falso raciocínio, ou do mau humor do juiz. Veríamos o
magistrado interpretar apressadamente as leis, segundo as idéias
vagas e confusas que se apresentassem ao seu espírito.
Veríamos os mesmos delitos punidos diferentemente, em
diferentes tempos, pelo mesmo tribunal, porque, em lugar de
escutar a voz constante e invariável das leis, ele se entregaria à
instabilidade enganosa das interpretações arbitrárias.
Podem essas irregularidades funestas ser postas em paralelo
com os inconvenientes momentâneos que às vezes produz a
observação literal das leis?
Talvez
esses
inconvenientes passageiros obriguem o
legislador a fazer, no texto equívoco de uma lei, correções
necessárias e fáceis. Mas, seguindo a letra da lei, não se terá ao
menos que temer esses raciocínios perniciosos, nem essa
licença envenenada de tudo explicar de maneira arbitrária e
muitas vezes com intenção venal.
Quando as leis forem fixas e literais, quando só confiarem ao
magistrado a missão de examinar os atos dos cidadãos, para
decidir se tais atos são conformes ou contrários à lei escrita;
quando, enfim, a regra do justo e do injusto, que deve dirigir em
todos os seus atos o ignorante e o homem instruído, não for um
motivo de controvérsia, mas simples questão de fato, então não
mais se verão os cidadãos submetidos ao jugo de uma multidão
de pequenos tiranos, tanto mais insuportáveis quanto menor é a
distância entre o opressor e o oprimido; tanto mais cruéis quanto
maior resistência encontram, porque a crueldade dos tiranos é
proporcional, não às suas forças, mas aos obstáculos que se lhes
opõem; tanto mais funestos quanto ninguém pode livrar-se do
seu jugo senão submetendo-se ao despotismo de um só.
Com leis penais executadas à letra, cada cidadão pode
calcular exatamente os inconvenientes de uma ação reprovável; e
isso é útil, porque tal conhecimento poderá desviá-lo do crime.
Gozará com segurança de sua liberdade e dos seus bens; e isso é
justo, porque é esse o fim da reunião dos homens em sociedade.
É verdade, também, que os cidadãos adquirirão assim um certo
espírito de independência e serão menos escravos dos que
ousaram dar o nome sagrado de virtude à covardia, às fraquezas
e às complacências cegas; estarão, porém, menos submetidos às
leis e à autoridade dos magistrados.
Tais princípios desagradarão sem dúvida aos déspotas
subalternos que se arrogaram o direito de esmagar seus
inferiores com o peso da tirania que sustentam. Tudo eu poderia
recear, se esses pequenos tiranos se lembrassem um dia de ler o
meu livro e entendê-lo; mas, os tiranos não lêem.
V. DA OBSCURIDADE DAS LEIS
SE a interpretação arbitrária das leis é um mal, também o é a sua
obscuridade, pois precisam ser interpretadas. Esse inconveniente
é bem maior ainda quando as leis não são escritas em língua
vulgar
Enquanto o texto das leis não for um livro familiar, uma
espécie de catecismo, enquanto forem escritas numa língua
morta e ignorada do povo, e enquanto forem solenemente
conservadas como misteriosos oráculos, o cidadão, que não
puder julgar por si mesmo as conseqüências que devem ter os
seus próprios atos sobre a sua liberdade e sobre os seus bens,
ficará na dependência de um pequeno número de homens
depositários e intérpretes das leis.
Colocai o texto sagrado das leis nas mãos do povo, e, quanto
mais homens houver que o lerem, tanto menos delitos haverá;
pois não se pode duvidar que no espirito daquele que medita um
crime, o conhecimento e a certeza das penas ponham freio à
eloqüência das paixões.
Que pensar dos homens,, quando se reflete que as leis da
maior parte das nações estão escritas em línguas mortas e que
esse costume bárbaro ainda subsiste nos países mais
esclarecidos da Europa?
Dessas últimas reflexões resulta que, sem um corpo de leis
escritas, jamais uma sociedade poderá tomar uma forma de
governo fixo, em que a força resida no corpo político e não nos
membros desse corpo; em que as leis não possam alterar-se e
destruir-se pelo choque dos interesses particulares, nem
reformar-se senão pela vontade geral.
A razão e a experiência fizeram ver quantas tradições humanas
se tornam mais duvidosas e mais contestadas, à medida que a
gente se afasta de sua fonte. Ora, se não existe um momento
estável do pacto social, como resistirão as leis ao movimento
sempre vitorioso do tempo e das paixões?
Vê-se por aí, igualmente, a utilidade da imprensa, que pode, só
ela, tornar todo o público, e não alguns particulares, depositário
do código sagrado das leis.
Foi a imprensa que dissipou esse tenebroso espírito de cabala
e de intriga, que, não pode suportar a luz e que finge desprezar as