Histórias Íntimas - Sexualidade e Erotismo na História do Brasil por Mary Del Priore - Versão HTML
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MARY DEL PRIORE
Copyright © Mary del Priore, 2011
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(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
del Priore, Mary
Histórias íntimas / Mary del Priore : sexualidade e erotismo na história do Brasil /
Mary del Priore – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2011.
ISBN 978-85-7665-608-1
1. Brasil – usos e costumes alemão 2. Erotismo – Brasil – História 3. História Social
4. Sexualidade – Brasil – História I. Título.
11-01949 CDD-302.30981
Prefácio
Há diferentes maneiras de fazer história. O historiador pode listar exaustivamente nomes,
datas, lugares; ou pode, sem esquecer o aspecto factual, buscar o lado humano dos
acontecimentos. A este último grupo pertence Mary del Priore, que ocupa um lugar de
extraordinário destaque na historiografia contemporânea, resultado, aliás, de uma brilhante
trajetória.
Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil mostra a razão desse
sucesso. Com a coragem e a firmeza que lhe são peculiares, Mary del Priore aborda um tema
que durante muito tempo foi tabu em nosso país. E aborda-o de forma magistral. A erudição
não impede, contudo, que seu texto seja agradável, fascinante; pelo contrário, Mary del Priore
sabe como prender nossa atenção. Não conseguimos interromper a leitura, que nos leva aos
bastidores da história de nosso país, começando pelo período colonial, passando pelo
“hipócrita” século XIX, examinando o século XX e chegando aos nossos dias.
Nesse trajeto, a autora aborda uma variedade de assuntos: a relação entre colonizadores,
índios e escravos, a nudez e o pudor, os afrodisíacos, a repressão inquisitorial, a
homossexualidade, a prostituição, o uso da lingerie, o teatro de revista, a educação sexual, o
aborto, a folia carnavalesca, a pedofilia, a pílula anticoncepcional, a revolução sexual, a
erotização da publicidade, o movimento feminista, a censura ditatorial, remetendo-nos a
autores que vão de Gregório de Matos a Gilberto Freyre, a personagens famosos como d.
Pedro I, a filmes, a revistas, a anúncios publicitários.
Sua postura crítica, sobretudo em relação à repressão, fica evidente; Mary del Priore é uma
autora que se posiciona em relação às grandes questões ligadas à sexualidade. O resultado
final é um grande livro – e um livro que nos encanta.
MOACYR SCLIAR
Janeiro, 2011
Introdução
Século XXI: maior tolerância e quebra de tabus são a marca da primeira década. Bancas de
jornais exibem “mulheres frutas” de todos os tamanhos. Nas propagandas, casais seminus
lambem os beiços e trocam olhares açucarados. Nas novelas de televisão, em horário nobre,
nenhum personagem hesita em ratificar suas preferências sexuais, em expô-las e em expor-se.
Na frente das câmaras, segredos pessoais são revelados sem constrangimentos. Práticas antes
marginalizadas estão nas telas. A Internet abriu um universo de possibilidades para o sexo.
Da pedofilia à prostituição, tudo se encontra no mercado virtual. Nos sites , “ricos e famosos”
falam abertamente de sua vida particular. A privacidade entrou na rede social. Todo mundo
sabe onde está todo mundo, o que faz, com quem “ficou” ou dormiu. O paradeiro de cada
indivíduo é mostrado no Twitter, onde também aparecem as primeiras referências ao sexting
(contração de sex e testing ): prática de divulgação de conteúdos eróticos através de celulares.
Muitos iniciam relacionamentos por meio das redes sociais, como Facebook ou Orkut. Nelas
começam o flerte, namoram “virtualmente”, e um número crescente desses relacionamentos
virtuais acaba no encontro físico das partes, na igreja. O costume iniciou-se através das
mensagens de texto SMS, mas, com o avanço tecnológico, incluiu-se o envio de fotografias e de
vídeos, inclusive pornôs. Ao mesmo tempo, a gravidez na adolescência aumentou. Segundo
pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de casamentos
caiu. Além disso, aumentou a quantidade de mulheres mais velhas que se unem a homens mais
jovens e elas procriam mais tarde, também.
Se a ideia de interioridade dava consistência à vida dos indivíduos no passado, hoje,
vivemos apenas o instantâneo. Em toda a parte, maior dose de superexposição é possível por
meio das redes e da mídia, e o exibicionismo é uma das motivações para seu uso. Expõe-se o
ego, sem meios-termos. Habitamos uma sociedade narcisista e confessional. Como mudamos
através dos tempos! A atenção que damos ao corpo, à nudez e ao sexo é cada vez maior.
Outrora era diferente, homens e mulheres tiveram que se dobrar às chamadas “boas
maneiras”. Andar nu, fazer sexo, defecar ou urinar publicamente eram hábitos – ainda
presentes em várias culturas ou grupos – que foram lentamente banidos de nosso convívio. A
educação do corpo trilhou sendas variadas e obrigou o cumprimento de fórmulas de
contenção, contrariando o desejo e os apelos da “natureza”. Antes, malcheirosos e sujos;
hoje, perfumados. Ontem, marcados por cicatrizes. Atualmente, cauterizados. No passado,
castos e cobertos. Agora, desnudos e exibidos. Evolução? Não... Um longo processo de
transformações ao sabor de vários dados: técnicos, econômicos e educacionais. Este livro é
uma exploração histórica da sensibilidade em relação a alguns componentes de nossa vida
íntima, que sofreram tremendas alterações. Para sintetizar quinhentos anos de história, a
autora recorreu a muitas de suas pesquisas, algumas já conhecidas na Academia.
As relações com a intimidade refletem como os processos civilizatórios modelaram
gradualmente as sensações corporais, acentuando seu refinamento, desenrolando suas
sutilezas e proibindo o que não parecia decente. A história que vamos contar inscreve-se
nesse quadro. É aquela do polimento das condutas e do crescimento do espaço privado e da
autorrepressão. Do peso progressivo da cultura no mundo das sensações imediatas, do prazer
e do sexo. Do cuidado de si e do trabalho permanente para definir as fronteiras entre o íntimo
e o social. De como esse complexo mecanismo migrou do Velho para o Novo Mundo,
atravessando séculos. E de como, hoje, a relação entre os sexos, na intimidade ou fora dela,
está em plena transformação. Resta saber aonde ela nos levará...
1.
Da Colônia ao Império
O CORPO, A IGREJA E O PECADO
Podemos olhar pelo buraco da fechadura para ver como nossos antepassados se
relacionavam?! De fechaduras, não! Elas custavam caro e o Brasil, na época da colonização,
era pobre. Podemos, sim, enxergar através das frestas dos muros, das rachaduras das portas.
Por ali se via que a noção de privacidade estava sendo “construída”, estava em gestação. E
construída em meio a um ambiente de extrema precariedade e instabilidade. Em terras
brasileiras, colonos tiveram que lutar, durante quase três séculos, contra o provisório: o
material, o físico, o político e o econômico. “Viver em colônias” – como se dizia então – era o
que faziam. Sobreviviam... E sobreviviam sob o signo do desconforto e da pobreza. Habitavam
casas de meias paredes cobertas de telhas ou sapê, com divisão interna que pouco ensejava a
intimidade. Nelas faltavam móveis que oferecessem algum conforto, ou boa iluminação,
devido à falta de vidros. Instaladas em vilarejos sem arruamento, ali os animais domésticos
pastavam à solta e havia lixo em toda parte. A água, esse bem mais precioso em nossos dias,
só aquela de rios e poços ou a vendida em lombo de burro ou de escravos. Privacidade,
portanto, zero.
A noção de intimidade no mundo dos homens entre os séculos XVI e XVIII se diferencia
profundamente daquela que é a nossa no início do século XXI. A vida quotidiana naquela época
era regulada por leis imperativas. Fazer sexo, andar nu ou ter reações eróticas eram práticas
que correspondiam a ritos estabelecidos pelo grupo no qual se estava inserido. Regras,
portanto, regulavam condutas. Leis eram interiorizadas. E o sentimento de coletividade
sobrepunha-se ao de individualidade.
Mas falar nesse assunto quando a América ainda era portuguesa implica compreender o
que se entendia por privacidade há quase trezentos anos. Apenas em 1718 o conceito fará sua
aparição. E foi o dicionarista jesuíta Raphael Bluteau quem, pioneiramente, esclareceu:
“Privado: uma pessoa que trata só de sua pessoa, de sua família e de seus interesses
domésticos.” Mais tarde, em 1798, no seu Elucidário de palavras e termos, frei Joaquim de
Santa Rosa de Viterbo definia que o verbete “privido” – palavra mais tarde substituída por
“privado” – designava o que pertencia a uma particular pessoa. Quase cem anos foram
necessários para que “privado” deixasse de significar o que fosse familiar e coletivo para se
centrar no pessoal. Mas como fazer tal passagem em terras de escravidão e de pobreza
material, onde, contrariamente à Europa ocidental, não havia muita separação entre privado e
público? Como, num lugar onde todos sabiam de tudo e de todos?
Era diferente. Aqui, muitas pessoas andavam seminuas: sobretudo índios e escravos. As
regras e os ritos vindos da Europa não se tinham consolidado entre índios e africanos. Palavras
c o m o vergonha e pudor, recém-dicionarizadas no século XVI, continuavam ausentes dos
“vocabulários” – nome que então se dava aos glossários –, até entre portugueses. Para os
etimologistas, a palavra nasceu à época da chegada dos lusitanos às nossas costas. Antes,
pudenda designava os órgãos sexuais, “vergonhosos”. Inicialmente associados à pudicícia,
pudor e castidade eram sinônimos. Os primeiros dicionários deram o sentido atual ao termo,
ligando-o à modéstia, decência e civilidade. Considerado natural nas mulheres, o pudor
permitia afirmar que uma mulher nua podia ser mais pudica do que uma vestida. Isso, pois
acreditava-se que, ao despir-se, ela se cobria com as vestes da vergonha.
O pudor que se definia nos dicionários não era um conceito espalhado na sociedade.
Enquanto Isabel de Castela, em 1504, morria de uma ferida que não quis mostrar aos médicos,
recebendo a extrema-unção sob os cobertores para não exibir nem os pés, muitos moradores da
América portuguesa vestiam-se apenas com um minúsculo pedaço de tecido. Descobria-se,
então, que existiam povos obedientes a diferentes noções de pudor.
Ora, tais noções foram pioneiras em esboçar a história do polimento das condutas, do
crescimento do espaço privado e dos autoconstrangimentos que a modernidade foi trazendo.
Daquilo que Michel Foucault chamou de cuidado de si; uma esfera cada vez mais definida
entre o público e o privado. Esfera capaz de afastar, de forma progressiva e profunda, um do
outro. E que conta a história do peso da cultura sobre o mundo das sensações imediatas.
Cultura que nos levou da vida em grupo ou em família para o individualismo que é a marca de
nosso tempo.
NO INÍCIO, ERA O PARAÍSO
1500: Pleno desabrochar do Renascimento na Europa e chegada dos “alfacinhas” ao Brasil.
Em 1566, é dicionarizada na França, pela primeira vez, a palavra erótico. Designava, então, “o
que tiver relação com o amor ou proceder dele”. Na pintura, o humanismo colocava o homem
no centro do mundo – e não mais Deus –, descobrindo-se os corpos e o nu. Nu que, hoje,
associamos ao erotismo. Mas era ele, então, sinônimo de erotismo? Não. Isso significa que as
palavras, os conceitos e seus conteúdos mudam, no tempo e no espaço; o que hoje é erótico,
não o era para os nossos avós.
Comecemos por um exemplo bastante conhecido. Ao desembarcar na então chamada Terra
de Santa Cruz, os recém-chegados portugueses se impressionaram com a beleza de nossas
índias: pardas, bem dispostas, “suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência assim
descobertas, que não havia nisso desvergonha alguma”. A Pero Vaz de Caminha não passaram
despercebidas as “moças bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos compridos pelas
espáduas”. Os corpos, segundo ele, “limpos e tão gordos e tão formosos que não pode mais
ser”. Os cânones da beleza europeia se transferiam para cá, no olhar guloso dos primeiros
colonizadores. Durante o Renascimento, graças à teoria neoplatônica, amor e beleza
caminhavam juntos. Vários autores, como Petrarca, trataram desse tema para discutir a
correspondência entre belo e bom, entre o visível e o invisível. Não à toa, nossas indígenas
eram consideradas, pelos cronistas seiscentistas, criaturas inocentes. Sua nudez e despudor
eram lidos numa chave de desconhecimento do mal, ligando, portanto, a “formosura” à ideia
de pureza. Até suas “vergonhas depiladas” remetiam a uma imagem sem sensualidade. As
estátuas e pinturas que revelavam mulheres nuas, o faziam sem pelos púbicos. A penugem
cabeluda era o símbolo máximo do erotismo feminino. A questão da sensualidade não estava
posta aí.
Nuas em pelo, as “americanas” exibiam-se, também, nas múltiplas gravuras que
circulavam sobre o Novo Mundo, com seus seios pequenos, os quadris estreitos, a cabeça
coroada por plumagens ou frutas tropicais. Os gravadores do Renascimento as representavam
montadas ou sentadas sobre animais que os europeus desconheciam: o tatu, o jacaré, a
tartaruga. Mas, aí, a nudez não era mais símbolo de inocência, mas de pobreza: pobreza de
artefatos, de bens materiais, de conhecimentos que pudessem gerar riquezas. Comparadas com
as mulheres que nas gravuras representavam o continente asiático ou a Europa, nossa América
era nua, não porque sensual, mas porque despojada, singela, miserável. As outras alegorias – a
Ásia e a Europa – mostravam-se ornamentadas com tecidos finos, joias e tesouros de todo
tipo. Mesmo a África, parte do mundo mais conhecida no Ocidente cristão do que a América,
trazia aparatos, expondo a gordura. Gordura, então, sinônimo de beleza.
O retrato das americanas, além da magreza e da nudez, ostentava sempre um signo temido:
os ossos daqueles que tinham sido devorados nos banquetes antropofágicos. Nudez, pobreza e
antropofagia andavam de mãos dadas. As interpretações, então, se sobrepunham: passou-se da
pureza à pobreza. E daí ao horror por essa gente que comia gente. Pior. À medida que os índios
resistiam à chegada dos estrangeiros, aprofundava-se sua satanização. Para combatê-los ou
afastá-los do litoral, nada melhor do que compará-los a demônios. A nudez das índias estava,
pois, longe de ser erótica.
Desde o início da colonização lutou-se contra a nudez e aquilo que ela simbolizava. Os
padres jesuítas, por exemplo, mandavam buscar tecidos de algodão, em Portugal, para vestir as
crianças indígenas que frequentavam suas escolas: “Mandem pano para que se vistam”, pedia
padre Manoel da Nóbrega em carta aos seus superiores. Aos olhos dos colonizadores, a nudez
do índio era semelhante à dos animais; afinal, como as bestas, ele não tinha vergonha ou pudor
natural. Vesti-lo era afastá-lo do mal e do pecado. O corpo nu era concebido como foco de
problemas duramente combatidos pela Igreja nesses tempos: a luxúria, a lascívia, os pecados
da carne. Afinal, como se queixava padre Anchieta, além de andar peladas, as indígenas não se
negavam a ninguém.
A associação entre nudez e luxúria provocava os castigos divinos. Ameaçavam-se as
pecadoras que usavam decotes. Eis por que a luxúria foi associada a uma profusão de animais
imundos: sapos, serpentes ou ratos que se agarravam aos seios ou ao sexo das mulheres
lascivas. Nas igrejas, pinturas demonstravam os diabos que recebiam as almas pecadoras, nuas
em pelo, com golpes de pá e tridentes. Nos livros de oração com imagens, o justo morria
sempre de camisola. O pecador, despido! Enterravam-se as pessoas vestidas, para
ressuscitarem com roupas que as identificassem.
Mas que significado teria o nu, na Idade Moderna? A nudez era erótica? Havia, então, uma
grande diferença entre nudez e nu. A nudez se referia àqueles que fossem despojados de suas
vestes. O nu remetia não à imagem de um corpo transido e sem defesa, mas ao corpo
equilibrado e seguro de si mesmo. O vocábulo foi incorporado, no século xviii, às academias
de ciências artísticas, onde a pintura e a escultura faziam do nu o motivo essencial de suas
obras.
A realidade, porém, era menos “artística”. Viajantes estrangeiros que passavam pelo
Brasil, nessa época, ficavam chocados com a nudez dos escravos nas ruas. As poucas blusas
que escorregavam pelo ombro, os seios nus, magros e caídos, escorrendo peito abaixo. E,
contrariamente aos nossos dias, não havia lugar do corpo feminino menos erótico ou atrativo
do que os seios. As chamadas “tetas”, descritas nos tratados médicos como membros
esponjosos próximos ao coração, tinham uma só função: produzir alimento. Acreditava-se que
o sangue materno cozinhava com o calor do coração, tornando-se branco e leitoso.
Os seios jamais eram vistos como sensuais, mas como instrumentos de trabalho de um
sexo que devia recolher-se ao pudor e à maternidade. O colo alvo, o pescoço como “torre de
marfim” cantado pelos poetas, pouco a pouco começa a cobrir-se. E isso até nas imagens
sacras. Estátuas da Virgem Maria em estilo barroco, antes decotadas, ou a própria Virgem do
Leite – que no Renascimento expunha os bicos –, desaparecem de oratórios e igrejas. Nossa
Senhora passa a cobrir-se até o queixo, quando não era vestida pelas próprias devotas.
E DEPOIS, O INFERNO...
Bem diferente também era a noção de pudor que as viagens ultramarinas revelaram aos
europeus. Singrando mares e chegando a terras que lhes eram desconhecidas, encontraram
povos que tinham outras noções quanto à nudez, às funções corporais ou à sexualidade. Aos
olhos dos europeus, os “selvagens” não tinham sido ungidos pela Graça divina. E seria
considerado ofensivo colocar em dúvida os comportamentos cristãos para seguir o exemplo de
índios. Mas a diferença não estava só entre cristãos e bárbaros. Mesmo na Europa, pudor de
sentimentos & pudor corporal tinham significados diferentes entre os diferentes grupos: ricos
ou pobres, homens ou mulheres.
O banho, por exemplo. Ele gozou de grande prestígio entre as civilizações antigas e estava
associado ao prazer: vide as termas romanas. Durante o Império, os banhos públicos
multiplicaram-se e muitos se tornaram locais de prostituição. Eram os chamados “banhos
bordéis”, onde as “filhas do banho” ofereciam seus serviços. Os primeiros cristãos, indignados
com a má frequentação, consideravam que uma mulher que fosse aos banhos poderia ser
repudiada. O código Justiniano deu respaldo à ação. Concílio após concílio, tentava-se acabar
com eles. Proibidos aos religiosos, sobretudo quando jovens, abster-se de banho se tornou
sinônimo de santidade. Santa Agnes privou-se deles toda a vida. Ordens monásticas os
proibiam aos seus monges. O batismo cristão, antes uma cerimônia comunitária de imersão,
transformou-se numa simples aspersão.
Contudo, é importante lembrar que, apesar dos prazeres oferecidos pela água, gestos de
pudor estavam sempre presentes. Durante a Idade Média, homens e mulheres não se banhavam
juntos, salvo nos prostíbulos. Ambos cobriam as partes pudendas. Eles, com um tipo de
calção. Elas, com um vestido fino e comprido. Regulamentos austeros coibiam horários e
orientavam o uso das estufas. Era terminantemente proibido, por exemplo, que homens
entrassem nos banhos femininos e vice-versa. Não faltam ilustrações – em miniaturas e
gravuras – sobre o voyeurismo, capaz de quebrar as severas regras que controlavam tais
espaços.
Segundo alguns autores, enquanto nossos índios davam exemplo de higiene, banhando-se
nos rios, os europeus eram perseguidos pelas leis das reformas católica e protestante que lhes
interditavam nadar nus. A visão de rapazes dentro dos rios, mergulhando ou nadando em trajes
de Adão, causava escândalo, quando não penalidades e multas.
A nudez e a poligamia dos índios ajudavam a demonizar sua imagem. Considerados não
civilizados, a tentativa dos jesuítas em cobri-los resultou, muitas vezes, em situações cômicas,
como a relatada por padre Anchieta:
“Os índios da terra de ordinário andam nus e quando muito vestem alguma roupa de
algodão ou de pano baixo e nisto usam de primores a seu modo, porque um dia saem com
gorro, carapuça ou chapéu na cabeça e o mais nu; outro dia saem com seus sapatos ou botas e
o mais nu.[...] e se vão passear somente com o gorro na cabeça sem outra roupa e lhes parece
que vão assim mui galantes.”
A discussão sobre a nudez dos selvagens alimentava outra: o que teria vindo antes: a roupa
ou o pudor? Adão que o dissesse... Teve que se cobrir com uma folha de parreira, assim que
foi expulso do paraíso. Eis por que os missionários impunham roupas aos índios. Inspirados
pelas “descobertas”, vários tratados sobre indumentária e costumes foram então escritos na
Europa. A ideia era a de que se cobrissem os nus, retirando-lhes as armas da sedução. Mas
que, também, se atacasse os que se cobriam com tecidos caros, perucas pomposas e
maquilagem, sinônimo de luxúria e vaidade. Daí a importância da modéstia como sinônimo de
pudor.
O CHEIRO DO PRAZER
Hábitos de higiene, hoje associados ao prazer físico, eram inexistentes. Entre os habitantes
da América portuguesa, a sujeira esteve mais presente do que a limpeza. E isso, durante
séculos. O viajante inglês John Luccock, no início do século XIX, ainda afirmava que as
abluções frequentes não eram “nada apreciadas pelos homens. Os pés são geralmente a parte
mais limpa das pessoas. Os rostos, mãos, braços, peitos e pernas que, todos eles andam muito
expostos em ambos os sexos, raramente recebem a bênção de uma lavada [...] os cubículos em
que se acham os leitos raramente são abertos à influência purificadora do ar livre, nem
tampouco expostas ao sol as camas, embora úmidas de suor”.
A sensibilidade olfativa dos colonos estava longe daquela que já se instalara na Europa,
que tinha a preocupação de “oxigenar os ares” e de banir definitivamente o mau cheiro. Tal
movimento suscitava a intolerância em relação aos odores do corpo, que entre nós ainda eram
plenamente admitidos. Teóricos já advertiam para os riscos de a gordura tapar os poros,
retendo “humores maléficos e imundícies”, das quais a pele já estava carregada. A película
nauseabunda, que os antigos acreditavam funcionar como um verniz protetor contra doenças,
na verdade bloqueava as trocas “aéreas” necessárias ao organismo.
Essa mudança provocou uma passagem da natureza ao artifício. Os perfumes que
remetiam aos odores animais – âmbar, almíscar – saíram de moda por sua violência. Antes, as
mulheres os utilizavam, não para mascarar seu cheiro, mas para sublinhá-lo. Havia nele um
papel sexual que acentuava a ligação entre as partes íntimas e o odor. Na Europa “civilizada”,
a emergência de uma nova forma de pudor, porém, ameaçava essa tradição, substituindo-a por
exalações delicadas à base de lavanda e rosas. O bidet foi então introduzido na França,
tornando-se o auxiliar do prazer. As abluções femininas se revestiam de erotismo. Os talcos
perfumados e outros pós, à base de íris, flor de laranjeira e canela, cobriam as partes íntimas.
Um simples perfume aguçava a consciência de si, aumentando o espaço entre o próprio cheiro
e o dos outros, a multidão fedorenta. O odor forte, considerado um arcaísmo, se tornou coisa
de roceiras e prostitutas velhas.
Entre nós, o âmbito da higiene íntima feminina, de difícil pesquisa histórica, foi
brevemente abordado pelo poeta baiano Gregório de Matos. No fim do século XVII, ele
escreveu sobre a carga erótica do “cheiro de mulher”. Sim, cheiros íntimos agradavam: o do
almíscar era um deles. O poeta criticou uma mulher que seduzira por lavar a vagina antes do
ato sexual, maldizendo as que queriam ser “lavandeiras do seu cu”. Certa carga de erotismo
dependia do equilíbrio entre odor e abluções, embora houvesse muitos, como Gregório de
Matos, o Boca do Inferno, que preferissem o sexo feminino recendendo a “olha” e sabendo o
“sainete”. “Lavai-vos, minha Babu, cada vez que vós quiseres”, cantava o poeta, “já que aqui
são as mulheres lavandeiras do seu cu”.
“Lavai-vos quando o sujeis
E porque vos fique o ensaio
Depois de foder lavai-o
Mas antes não o laveis.”
E reclamava:
“Lavar a carne é desgraça
Em toda a parte do Norte
Porque diz, que dessa sorte
Perde a carne o sal, a graça;
E se vós por essa traça
Lhe tirais o passarete
O sal, a graça, o cheirete,
Em pouco a dúvida topa
Se me quereis dar a sopa
Dai-ma com todo o sainete.”
O cheiro de almíscar ainda agradava por estes lados do Atlântico, onde o bidet só aportou
no século XIX.
Mas lavar o corpo, com quê? Um pedaço de sabão era bem inestimável. Que o diga certo
Baltasar Dias, em 1618. Ao ver que fora roubado do seu, trazido com dificuldade na caravela
que o levara da cidade do Porto para Pernambuco, deu de “dizer palavras de cólera e que o
Diabo o levasse de seu corpo”, numa explosão de rara fúria. Conclusão? Foi denunciado à
Inquisição por blasfêmia.
Embora longe da higienização de nossos dias, certa sensibilidade ao cheiro do corpo ia se
instalando. Os processos de divórcio apresentados à Igreja Católica revelam traços da
intolerância de certos cônjuges em função do odor. O mau cheiro impedia suas relações
sexuais. Em São Paulo, na segunda metade do século XVIII, por exemplo, Ana Luísa Meneses
acusava o cônjuge de “pitar tabaco de fumo”, que lhe conferia um “terrível hálito que se faz
insuportável a quem dele participa”. E Maria Leite Conceição reclamava dos “pés e pernas
inchadas” do seu, “das quais exalava um mau cheiro insuportável”. Como se vê, o embate
conjugal não passava longe de alguns critérios de sensibilidade feminina.
DEITAR ONDE?
E onde se exerciam os rituais de intimidade? Um viajante inglês responde: “As casas têm
em geral três ou quatro andares. Internamente, essas residências são muito mal mobiliadas,
ainda que muitas delas tenham quartos adornados com bonitas pinturas.”
As moradas até podiam ser belas, mas seu interior raramente era limpo. Os aposentos, por
vezes, eram varridos com uma espécie de vassoura feita com bambu. Água no chão? Nunca.
As paredes das casas, raramente pintadas uma segunda vez depois da caiação original,
tornavam-se amarelas. Os cubículos dos quartos quase nunca eram abertos à “ação
purificadora do ar livre, nem tampouco expostas as camas, embora úmidas de suor. A fim de
tornar os quartos toleráveis e deles expulsar os miasmas de que se acham penetrados,
costumam se queimar substâncias odoríferas logo antes da hora de se recolher”. Tais odores
também mantinham afastados, por curto espaço de tempo, os “atacantes invisíveis”:
mosquitos, baratas, percevejos e outras imundícies. Os detritos só eram removidos uma vez
por semana. Os penicos estavam em toda a parte e seu conteúdo, sempre fresco, era jogado nas
ruas e praias. Decididamente, não era esse o ambiente ideal para encontros eróticos, como os
concebemos hoje.
Nas classes populares, a privacidade era um luxo que ninguém tinha. Dormia-se em redes,
esteiras ou em raríssimos catres compartilhados por muitos membros da família. Os cômodos
serviam para tudo: ali recebiam-se os amigos, realizavam-se os trabalhos manuais, rezava-se,
cozinhava-se e dormia-se. A precariedade não dava espaço para o leito conjugal, essa
encruzilhada do sono, do amor e da morte. Entre os poderosos, a multiplicação de quartos nas
residências não significava garantia de privacidade. Todos davam para o mesmo corredor e
raramente tinham janelas. Ouvidos indiscretos estavam em toda a parte. Frestas nas paredes
permitiam espiar. Chaves eram artefatos caríssimos e as portas, portanto, não se trancavam.
Na alcova podia haver uma cama coberta por mosquiteiro, colchão rijo, travesseiros
redondos e chumaços, e “excelentes lençóis”. Elemento de ostentação nas casas ricas, a cama
traduzia um nível de vida: a conquista do tempo e da liberdade. Mas, para suas intimidades, os
casais sentiam-se mais à vontade “pelos matos”, nas praias, nos campos, na relva. Longe dos
olhos e ouvidos dos outros.
Nessa época, na Europa, as camas com baldaquino, com as cortinas fechadas, ofereciam a
possibilidade de isolamento. Aqui, só chegaram mais tarde, aparecendo nos ex-votos de
madeira dos finais do século XVIII. Respeitava-se a regra: ao trocar de roupa, ninguém olhava.
Na Europa, graças à criação da sala de banhos e do boudoir, se reuniram as condições de
exercício de uma nova forma de erotismo. Entre nós, porém, o penico vigorou até os fins do
século XIX, empestando o ambiente.
Quanto ao asseio e às regras de civilidade, contudo, havia muito que aprender. Os
moradores da Colônia ainda estavam muito próximos de comportamentos julgados selvagens
na Europa. Lá, desde a Idade Moderna, já se desaconselhava arrotar ou peidar em público. Na
época das reformas religiosas, no século XVI, nos vários manuais de civilidade publicados
graças ao aparecimento da imprensa, se recomendava apertar os glúteos com força, “não
deixando escapar nada de mau gosto”. Ou que os ruídos fossem abafados pelos de uma falsa
tosse. Às senhoras que sofriam de gases, era sugerido ter sempre cachorrinhos como
companhia. Aos pobres quadrúpedes eram atribuídos os maus cheiros ou os ruídos anormais.
Entre nós, os flatos eram combatidos, segundo o cirurgião barbeiro Luís Gomes Ferreira,
atuante em Minas Gerais, em 1735, com copinhos ou dedais de aguardente.
Aqui, os limites para suportar o mau cheiro corporal não só ficavam evidentes no
cotidiano, como eram tolerados. O melhor narrador sobre o tema é Gregório de Matos. Sua
obra poética está recheada de fatos do dia a dia. Muitos de seus poemas foram oferecidos, por
exemplo, “A uma mulher que se borrou na igreja em quinta-feira de Endoenças”, “A uma
mulher corpulenta que em noite de Natal soltou um traque para chegar ao confessionário”, etc.
O tímido desgosto frente à nudez e ao mau cheiro reforçava, contudo, as normas culturais
do início dos tempos modernos. Apesar de a sujeira estar em toda parte, as pessoas
apontavam-na com o dedo e começavam a se incomodar. Os maus modos também começaram
a ser notados. Sobretudo, defecar e urinar em público, expondo as partes íntimas, chocava.
Que o diga John Barrow, que, em seu relato A Voyage to Conchinchina in the Years of 1792 and
1793, registrou o hábito das mulheres de urinar “descaradamente” nas ruas do Rio. O certo era
fazê-lo contra um muro, cobrindo o sexo, na tentativa de proteger-se dos olhares alheios.
Se a intimidade não era regra para todos, cobrir o sexo era lei. O Renascimento, apesar de
seu amor pela beleza física, jamais discutiu a questão da nudez. Deu-lhe apenas outro sentido.
Ver uma mulher nua, segundo o filósofo francês Montaigne, esfriava mais o ardor sexual do
que incitava à tentação. No reino de Pegu, atual Birmânia, explicava ele, os homens preferiam
ter prazer uns com os outros. Isso, pois o uso de vestidos fendidos, que nada escondiam, os fez
desgostar profundamente das mulheres. Viva o pudor feminino – alimento ao desejo
masculino!
ONDE SE ESCONDE O DESEJO
Frente a tal noção de privacidade, que atenção se dava aos corpos? O que agradava ou
desagradava? Gilberto Freyre foi pioneiro em captar o interesse dos portugueses pela “moura
encantada”: tipo delicioso de mulher morena de olhos pretos, segundo ele, envolta em
misticismo sexual – sempre de encarnado, sempre penteando os cabelos ou banhando-se nos
rios ou nas águas de fontes mal-assombradas – que os lusos vieram reencontrar nas índias nuas
e de cabelos soltos. “Que estas tinham também os olhos e os cabelos pretos, o corpo pardo
pintado de vermelho e, tanto quanto as nereidas mouriscas, eram doidas por um banho de rio
onde se refrescasse sua ardente nudez e um pente para pentear o cabelo. Além do que, eram
gordas como as mouras.”
Morenice e robustez eram, então, padrões de beleza. Não apenas na pluma dos poetas, mas
também na pena de viajantes estrangeiros de passagem pelo Brasil, sensíveis, eles também, às
nossas Vênus. Coube-lhes deixar o registro do que era percebido e apreciado. Eis as
impressões de um dos fundadores da Austrália, de passagem pelo Rio de Janeiro, em 1787:
“As mulheres, antes da idade de casar, são magras, pálidas e delicadas. Depois de casadas,
tornam-se robustas, sem, contudo, perder a palidez, ou melhor, certa cor esverdeada. Elas têm
os dentes muito bonitos e melhor tratados do que a maioria das mulheres que habita países
quentes, onde o consumo de açúcar é elevado. Seus olhos são negros e vivos e elas sabem
como ninguém utilizá-los para cativar os cavalheiros que lhes agradam. Em geral elas são
muito atraentes e suas maneiras livres enriquecem suas graças naturais. Tanto os homens
quanto as mulheres deixam crescer prodigiosamente os seus cabelos negros: as damas em
forma de grossas tranças que não combinam com a delicadeza dos traços. Mas o hábito torna
familiares as mais estranhas modas. Estando um dia na casa de um rico particular do país,
comentei com ele minha surpresa relativa à grande quantidade de cabelos das damas e
acrescentei que me era impossível acreditar que tais cabelos fossem naturais. Esse homem,
para demonstrar que eu estava errado, chamou sua mulher, desfez seu penteado e, diante de
meus olhos, puxou duas longas tranças que iam até o chão. Ofereci-me, em seguida, para
rearranjá-los, o que foi aceito com simpatia.”
No passado, os cabelos femininos – ou as chamadas “crinas” – eram altamente
valorizados, aliás, como o são hoje, em nossa cultura. Mas quais critérios inspiravam erotismo
e atração física na Idade Moderna? É bem verdade que as características físicas de nossas
belas estavam um tanto distantes das do modelo renascentista europeu de beleza e
sensualidade. Os grandes pintores do período, como Veronese, o veneziano, preferiam
mulheres de cabelos claros, ondulados ou anelados, com rosto e colo leitoso como pérola,
bochechas largas, fronte alta, sobrancelhas finas e bem separadas. O corpo devia ser “entre o
magro e o gordo, carnudo e cheio de suco”, segundo um literato francês. Como se dizia então,
a “construção” tinha que ser de boa carnadura. A metáfora servia para descrever ombros e
peito forte, suporte para seios redondos e costas em que não se visse um sinal de ossos. Até os
dedos afuselados eram cantados em prosa e verso, dedos de unhas rosadas, finalizadas em
pequenos arcos brancos. Joias e pedrarias, bem diversas dos ramais de contas e da tinta de
jenipapo que recobriam nossas índias, reafirmavam o esplendor da união entre elementos
anatômicos e erotismo.
Mas o que se via dessa beleza? Nada. Os olhares masculinos brilhavam ao passar uma
mulher... Coberta de cima a baixo!
“A imaginação sente-se singularmente excitada quando a gente vê essas figuras
semelhantes às freiras, envoltas totalmente num manto preto, das quais mal se percebem o
pezinho delicado e elegantemente calçado, um braço torneado e furtivo, carregado de
braceletes e um par de olhos, cujo vivo fulgor as rendas não conseguem cobrir, movendo-se
com leveza e graça sob os trajes pesados”, confessava um viajante estrangeiro.
Era a velha fórmula: o que mais se esconde mais se quer ver. O fascínio de um olhar
camuflado ou do pezinho da misteriosa criatura funcionava como uma isca para o desejo.
Mulheres cobertas por véus aguçavam a curiosidade e o apetite masculino. Não à toa, os
poetas cantavam apenas o que era possível enxergar, como Bocage: “porém vendo sair d’entre
o vestido/ um lascivo pezinho torneado...”.
Apesar da pobreza material que caracterizava a vida diária no Brasil colônia, a
preocupação feminina com a aparência não era pequena. Mas vivia sob o controle da Igreja. A
mulher, perigosa por sua beleza e sexualidade, inspirava toda sorte de preocupações dos
pregadores católicos. Não foram poucos os que fustigaram o corpo feminino, associando-o a
um instrumento do pecado e das forças diabólicas que ele representava na teologia cristã.
“Quem ama sua mulher por ser formosa, cedo lhe converterá o amor em ódio; e muitas
vezes não será necessário perder-se a formosura para perder-se também o amor, porque como
o que se emprega nas perfeições e partes do corpo não é o verdadeiro amor, se não apetite, e a
nossa natureza é sempre inclinada a variedades, em muitos não durará”, admoestava um
pregador resmungão.
QUERIDA SERPENTE
Era preciso enfear o corpo para castigá-lo. Os vícios e as “fervenças da carne”, ou seja, o
desejo erótico, tinham como alvo o que a Igreja considerava ser “barro, lodo e sangue
imundo”. Onde tudo era feio porque pecado. Isso, porque a mulher – a velha amiga da serpente
e do Diabo – era considerada, nesses tempos, como um veículo de perdição da saúde e da alma
dos homens. Aquela “bem aparecida”, sinônimo no século XVII para formosa, era a pior!
Logo, modificar a aparência ou melhorá-la com artifícios implicava aumentar essa
inclinação pecaminosa. Mais: significava, também, alterar a obra do Criador, que modelara
seus filhos à sua imagem e semelhança. Interferência impensável, diga-se de passagem. Vários
opúsculos circulavam tentando impedir as vaidades femininas. Os padres confessores, por
exemplo, ameaçavam com penas infernais: “Estar à janela cheia de bisuntos, tingir o sobrolho
com certo ingrediente e fazer o mesmo à cara com tintas brancas e vermelhas, trazer boas
meias e fingir um descuido para as mostrar, rir de manso para esconder a podridão ou a falta
dos dentes e comer mal para vestir bem.”
Apesar de tantas advertências, a mulher sempre quis seduzir, fazendo-se bela. Se a Igreja
não lhe permitia tal investimento, a cultura a incentivará a forjar os meios para transformar-
se. Os dispositivos de embelezamento, assim como o cortejo de sonhos e ilusões que os
acompanhava, eram de conhecimento geral. O investimento maior concentrava-se no rosto,
lugar por excelência da beleza. As outras partes do corpo, com exceção dos pés, eram menos
valorizadas. Consequência direta dessa valorização, o embelezamento facial recorria a certa
incipiente técnica cosmética. A preocupação maior era, em primeiro lugar, tratar a pele com
remédios. Seguia-se a maquilagem com pós, “bisuntos” e “tintas vermelhas e brancas”, como
já se viu.
Não faltaram marcas do apetite masculino em relação à morena ou mulata na literatura dos
séculos XVIII e XIX. O riso de pérolas e corais, os olhos de jabuticaba, as negras franjas e a cor
do buriti são os signos sedutores dessa fêmea que convida ao paladar, à deglutição, ao tato.
São elas as verdadeiras presas do desejo masculino, mulheres-caça, que o homem persegue e
devora sexualmente. Morenice e robustez eram, então, padrões de erotismo velado e de beleza.
Aos cuidados com a beleza do rosto somaram-se outros, relativos à roupa. O caráter
ambivalente dessa última, desvelando ao cobrir as partes mais cobiçadas da anatomia,
constituía, ao mesmo tempo, um instrumento decisivo e um obstáculo à sedução. Montaigne
protestava: “por que será que as mulheres cobrem com tantos impedimentos as partes onde
habita nosso desejo? Para que servem tais bastiões com os quais elas armam seus quadris, se
não a enganar nosso apetite, e a nos atrair ao mesmo tempo em que nos afastam?”. O pudor
aumentava a cobiça que deveria atenuar. E essa obsessão de ver o que não se mostrava durou.
Anos mais tarde, o escritor francês Anatole France criou também uma parábola sobre o tema
em seu A ilha dos pinguins. Um missionário, disposto a cobrir a nudez das aves que
convertera, resolve vestir uma delas, e como esta passa a ser perseguida pelo conjunto de seus
semelhantes, loucos de desejo, conclui: “o pudor comunica às mulheres uma atração
irresistível”.
Mas desejar ardentemente uma mulher trazia riscos. Acreditava-se que o desequilíbrio ou
a corrupção dos humores, graças à secreção da bile negra, explicasse uma desatinada
erotização. Dela provinham os piores crimes e os mais violentos casos amorosos. Apesar do
medo de castigos divinos, a razão não conseguia, muitas vezes, controlar o calor vindo do
coração. Mas sem o controle de suas paixões físicas, homens e mulheres se perdiam. Pois foi o
sentimento fora de controle, dando em erotismo desenfreado, que consolidou a ideia do desejo
sexual como enfermidade.
Ao final do Renascimento, longos tratados médicos são escritos sobre o tema: O antídoto
do amor, de 1599, ou A genealogia do amor, de 1609, são bons exemplos desse tipo de literatura.
Seus autores tanto se interessam pelas definições filosóficas do amor quanto pelos
diagnósticos e tratamentos envolvidos na sua cura. Todos, também, recorrem a observações
misturadas a alusões literárias, históricas e científicas para concluir que o amor erótico, amor-
hereos ou melancolia erótica, era o resultado dos humores queimados pela paixão. E mais: que
todos os sintomas observados poderiam ser explicados em termos de patologia. De doença.
Entre as causas externas do desejo erótico estariam o ar e os alimentos. E entre as internas,
a falta de repouso e de sono. Em 1540, em Portugal, João de Barros dizia que a paixão física
“abreviava a vida do homem”. Incapazes de conter nutrientes, os membros enfraqueciam-se,
minguando ou secando. Muitos males decorreriam daí, entre eles a ciática, as dores de cabeça,
os problemas de estômago ou dos olhos. A relação sexual, por sua vez, emburrecia, além de
abreviar a vida. E ele concluía: só os “ castos vivem muito ”.
E como combater tal problema? Os remédios poderiam ser dietéticos, cirúrgicos ou
farmacêuticos. Ao “regime de viver”, que se esperava fosse tranquilo, somavam-se sangrias
nas veias de braços e pernas. E, ainda, remédios frios e úmidos, como caldos de alface, grãos
de cânfora e cicuta, que deviam ser regularmente ingeridos. Contra o calor do desejo sexual,
tomavam-se sopas e infusões frias, recomendando-se, também, massagear os rins, pênis e
períneo com um “unguento refrigerador feito de ervas”. Comer muito era sinal de perigo. Os
chamados “manjares suculentos” eram coisa a evitar. Além disso, recomendava-se “Dormir,
só de lado, nunca de costas, porque a concentração de calor na região lombar desenvolve
excitabilidade aos órgãos sexuais”.
O OBSCURO OBJETO DE DESEJO
Cobrindo totalmente o corpo da mulher, a Reforma Católica acentuou o pudor, afastando-a
de seu próprio corpo. Eis por que dirigir o olhar ao sexo feminino prenunciava um caráter
debochado, bem representado nos poemas de Gregório de Matos, que, ao despir a mulher,
encontrava seu “cono”, “o cricalhão”, “a fechadura” ou “Vênus”. Os pregadores barrocos
preferiam descrevê-lo como a “porta do inferno e entrada do Diabo, pela qual os luxuriosos
gulosos de seus mais ardentes e libidinosos desejos descem ao inferno”.
A vagina só podia ser reconhecida como órgão de reprodução, como espaço sagrado dos
“tesouros da natureza” relativos à maternidade. Nada de prazer. As pessoas consideradas
“decentes” costumavam se depilar ou raspar as partes pudendas para destituí-las de qualquer
valor erótico. Frisar, pentear ou cachear os pelos púbicos eram apanágios das prostitutas. Tal
lugar geográfico só podia estar associado a uma coisa: à procriação.
Em 1559, outro Colombo – não Cristovão –, mas Renaldus, descobria outra América. Ou
melhor, outro continente: o “amor Veneris dulcedo appeletur ” ou clitóris feminino. Como
Adão, ele reclamou o direito de nomear o que tivera o privilégio de ver pela primeira vez e
que era, segundo sua descrição, “a fonte do prazer feminino”. A descoberta, digerida com
discrição nos meios científicos, não mudou a percepção que existia, há milênios, sobre a
menoridade física da mulher. O clitóris não passava de um pênis miniaturado, capaz, tão
somente, de uma curta ejaculação. Sua existência apenas endossava a tese, comum entre
médicos, de que as mulheres tinham as mesmas partes genitais que os homens, porém –
segundo Nemésius, bispo de Emésia no século IV – “elas as possuíam no interior do corpo e
não no exterior”. Galeno, que, no século II de nossa era, esforçara-se por elaborar a mais
poderosa doutrina de identidade dos órgãos de reprodução, empenhou-se com afinco em
demonstrar que a mulher não passava, no fundo, de um homem a quem a falta de perfeição
conservara os órgãos escondidos.
Nessa linhagem de ideias, a vagina era considerada um pênis interior; o útero, uma bolsa
escrotal; os ovários, testículos, e assim por diante. Ademais, Galeno invocava as dissecações
realizadas por Herófilo, anatomista de Alexandria, provando que uma mulher possuía
testículos e canais seminais iguais aos do homem, um de cada lado do útero. Os do macho
ficavam expostos e os da fêmea eram protegidos. A linguagem consagrava essa ambígua visão
da diferença sexual. Alberto, o Grande, por exemplo, revelava que tanto o útero quanto o saco
escrotal eram associados à mesma palavra de origem: “bolsa”, “bursa”, “bource”, “purse”. Só
que, no caso do órgão masculino, a palavra tinha também um significado social e econômico,
pois remetia à bolsa, lugar de congraçamento de comerciantes e banqueiros. Lugar, por
conseguinte, de trocas e ação. No caso das mulheres, o útero, no entanto, era chamado “madre
ou matriz” e associado ao lugar de produção: “as montanhas são matrizes de ouro”! Logo,
espaço de espera, imobilidade e gestação.
UM “ANIMAL” PERIGOSO
Em sua grande maioria, os médicos portugueses desconheciam as descobertas científicas
que começavam a delinear-se pelo restante da Europa. Eles se limitavam a repetir os mestres
antigos (Aristóteles, Plínio, Galeno e Alberto, o Grande), dizendo que a matriz ou madre “é o
lugar em cujo fundo se acham aqueles corpos vesiculares que os antigos chamavam testículos
e os modernos chamam ovários”. Herdeiros da tradição medieval, tais doutores insistiam em
sublinhar a função reprodutiva da madre, excluindo o prazer. A função do “amor Veneris dulce
apellatur” nem era lembrada. Não lhes interessava se a mulher gozava ou não. A entranha, mal
descrita e mal estudada – comparada às peras, ventosas e testículos –, acabava por reduzir a
mulher à sua bestialidade.
Repetiam igualmente, de mestres antigos como Platão, que, tal como um animal vivo e
irrequieto – “animal errabundo”, segundo Bernardo Pereira –, o útero era capaz de deslocar-se
no interior do corpo da mulher, subindo até a sua garganta e causando-lhe asfixia. Quando não
se movimentava, emitia vapores ou “fumos” capazes de infectar “o cérebro, o coração, o
fígado”. Acreditava-se, ainda, que o útero se alimentava de sangue e “pneuma” e que o espírito
vital, emitido pelo homem, encarregado da fecundação, chegava-lhe através de uma grande
artéria que desceria do coração ao longo da coluna vertebral. No processo de fecundação, a
fêmea era um elemento passivo. Comparada por alguns médicos à galinha, tinha por exclusiva
função portar os “ovos”.
Uma das características do útero era a sua capacidade de amar apaixonadamente alguma
coisa e de aproximar-se do membro masculino por um movimento precipitado, para dele
extrair o seu prazer. Porém, o aspecto mais tocante de sua personalidade, segundo um médico,
seria “o desejo inacreditável de conceber e procriar”. Enfim, era como se as mulheres
portassem algo de vivo e incontrolável dentro delas!
Ser assexuado, embora tivesse clitóris, à mulher só cabia uma função: ser mãe. Ela
carregou por quinze séculos a pecha imposta pelo cristianismo: herdeira direta de Eva, foi
responsável pela expulsão do paraíso e pela queda dos homens. Para pagar seu pecado, só
dando à luz entre dores. Os médicos, no século XVI, acabaram por definir o desejo sexual como
algo negativo e mais feminino do que masculino. O coito não era necessário ao homem para a
conservação da saúde, diziam. Mas, se a mulher fosse privada de companhia masculina, ela se
expunha a graves riscos. A prova era a “sufocação da madre”, nas viúvas, freiras e solteironas:
“É uma fome ou sede desta tal parte. Doença que só cessa com o socorro do macho”.
Um grande médico renascentista, o francês Ambroise Paré, ao diferenciar animais e
humanos, afirmava: “As fêmeas dos animais fogem dos machos tão logo são fecundadas; o
contrário acontece às mulheres; pois elas os desejam para a deleitação, e não somente para a
multiplicação da espécie”. Enfim, o prazer feminino era considerado tão maldito que, no dia
do Julgamento Final, as mulheres ressuscitariam como homens: dessa forma, no “santo
estado” masculino, não seriam tentados pela “carne funesta”, reclamava santo Agostinho. Com
essa pá de cal, as mulheres foram condenadas por padres e médicos a ignorar, durante séculos,
o prazer.
Entre os séculos XII e XVIII, a Igreja identificava, nas mulheres, uma das formas do mal
sobre a terra. Quer na filosofia, quer na moral ou na ética do período, a mulher era considerada
um ninho de pecados. Os mistérios da fisiologia feminina, ligados aos ciclos da Lua, ao
mesmo tempo em que seduziam os homens, os repugnavam. O fluxo menstrual, os odores, o
líquido amniótico, as expulsões do parto e as secreções de sua parceira os repeliam. O corpo
feminino era considerado impuro.
Venenosa e traiçoeira, a mulher era acusada pelo outro sexo de ter introduzido sobre a
terra o pecado, a infelicidade e a morte. Eva cometera o pecado original ao comer o fruto
proibido. O homem procurava uma responsável pelo sofrimento, o fracasso, o
desaparecimento do paraíso terrestre, e encontrou a mulher. Como não desconfiar de um ser
cujo maior perigo consistia num sorriso? Nesse retrato, a caverna sexual tornava-se uma fenda
viscosa do inferno.
AFRODISIA OU COMO DESPERTAR O APETITE
Se as mulheres não podiam ter prazer, para os homens ele era obrigatório! E apesar do
controle da Igreja sobre a sexualidade, mais lenha foi posta na fogueira do erotismo com as
viagens ultramarinas. E a razão? O convívio pioneiro com as culturas de além-mar apimentou
a Europa, e em particular Portugal, com sabores, odores e sensualidades novas. No momento
em que uma avalanche de textos moralizantes sobre o sexo se abate sobre as populações,
ocorre também a expansão de uma gastronomia à base de afrodisíacos. Uma resposta
silenciosa à repressão sensual? O que se sabe é que, cada vez mais, consomem-se sopas de
testículos de ovelhas, omeletes de testículos de galo, cebolas cruas, pinhões, trufas, entre
outros ingredientes usados nessa culinária encarregada de estimular o desejo.
Sim, pois a impotência era considerada verdadeira maldição. Desde sempre, ela promoveu
profundo sofrimento, quando não situações de humilhação entre os homens. Ao longo de
séculos, na literatura e na poesia, não faltaram indicações do sonho de ereções permanentes e
infatigáveis. Isso porque a obrigação da virilidade já estava profundamente arraigada em nossa
cultura. Para melhorar o desempenho, nada melhor do que os afrodisíacos importados da Ásia.
Mas por que tanta ansiedade para restaurar o arsenal sexual do amante e excitar o apetite viril?
Porque o “crescei e multiplicai-vos” era obrigatório. Estava na Bíblia. Era papel do homem
garantir essa operação. Um breve papal, datado de 1587, definia a impotência masculina como
um impedimento público ao sacramento do matrimônio. Processos contra “maridos frígidos”
foram legião na Europa entre os séculos XVI e XVIII, e não faltaram julgamentos públicos nos
quais os homens tinham que fazer, seminus, “exames de elasticidade” ou ereção.
Na América portuguesa, as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, impressas
e m 1720, fonte de regulamentação moral no período colonial, não deixavam dúvidas: a
impotência era causa de anulação matrimonial. Daí a importância dos chamados “filtros de
amor”, poção mágica que levou Isolda aos braços de Tristão, e que tinham por objetivo evitar
as falhas. Eis por que especiarias estimulantes, reconfortantes, tonificantes e revigorantes vão
ampliar a gama erótica dos prazeres – proibidos – da carne.
O estímulo renovado dos sentidos foi uma das facetas mais exuberantes do Renascimento,
não apenas na expressão artística, mas também no desenvolvimento de uma sensualização dos
costumes. Portugal era a porta de entrada desses produtos. Se, por um lado, o reino não
conheceu a exaltação pictórica, poética, gastronômica e luxuriosa do corpo, ele constituiu-se
na placa giratória que distribuía especiarias de luxo vindas do Oriente para as cortes da França
e das ricas cidades italianas.
REMÉDIOS PARA OS “JOGOS DE AMOR”
Um dos cronistas a perceber o desbravamento sensorial vivido pelos portugueses foi
Garcia da Orta. De origem hebraica e amigo de Camões, ele dedicou-se ao estudo da
farmacopeia oriental. A descoberta de novas faunas e floras permitiu-lhe saudar, com
entusiasmo, os afrodisíacos largamente utilizados nesta parte do mundo. Ele não apenas
menciona a cannabis sativa, banguê ou maconha, mas exalta também as virtudes do ópio.
Fundamentado em sua convivência com os indianos, Orta sabia que o ópio era usado como
excitante sexual capaz de duas funções: agilizar a “virtude imaginativa” e retardar a “virtude
expulsiva”, ou seja, controlar o orgasmo e a ejaculação. Além desses dois produtos, Orta
menciona o bétel, uma piperácea cuja folha se masca em muitas regiões do oceano Índico,
lembrando sobre o seu uso que “a mulher que há de tratar amores nunca fala com o homem
sem que o traga mastigado na boca primeiro”.
O primeiro observador encarregado de fazer um relatório de história natural do Brasil, o
holandês Guilherme Piso, registrou também, embora mais discretamente, algumas plantas
afrodisíacas. Segundo ele, tanto “ a bacopa quanto a banana são consideradas plantas que
excitam o venéreo adormecido”. Sobre o amendoim, registrou: “os portugueses vendem
diariamente o ano todo, afirmando que podem tornar o homem mais forte e mais capaz para os
deveres conjugais”.
Obras publicadas na Europa sobre plantas vindas dos Novos Mundos – Ásia, África e
América – apresentam espécimes sob a rubrica “amor, para incitá-lo”. Dentre tantas
conhecidas destacam-se a hortelã, o alho-poró e a urtiga. Outras, ainda, aparecem sob rubricas
como “jogos de amor” ou “para fortificação da semente”, leia-se, do sêmen. Em 1697, um
desses livros menciona dezenove substâncias, muitas delas extraídas do reino animal: genital
de galo, cérebro de leopardo, formigas voadoras. Entre as substâncias vegetais encontram-se a
jaca, as orquídeas e os pinhões. Já para diminuir os “ardores de Vênus”, menciona-se do
chumbo ao mármore e deste ao pórfiro, cuja frigidez, quando aplicada sobre o períneo ou os
testículos, diminuía o desejo.
No sumário de alguns herbários existem entradas que bem mostram os efeitos dessas
descobertas: “induzir a fazer amor”, “incitar a jogos de amores”, “fazer perder o apetite para
jogos de amores”, “sonhos venéreos quando se polui sonhando” e “substâncias úteis para
excitar o jogo do amor ou para as partes vergonhosas”. No item de receitas próprias para
“engendrar e facilitar a ereção e o coito ” , as ostras, o chocolate e a cebola eram
apreciadíssimos, assim como alcachofra, pera, cogumelos e trufas.
Mas a Igreja vigiava. O chocolate, vindo do México, anteriormente usado até durante o
jejum católico, começou a ser condenado por provocar excesso de calor. Em seu lugar, surgiu
a louvação antierótica do café. A bebida refletia o contrário do luxo representado pelo
chocolate, evidenciando um novo espírito burguês: casto, econômico e produtivista. Junto com
a ingestão do café, veio a preocupação com a economia do esperma, reservado à sua exclusiva
função reprodutiva. Os portugueses estiveram cara a cara com uma ars erotica que usava e
abusava de afrodisíacos. Dela, contudo, só levaram para Portugal a possibilidade de se
enxergar pecado ou doença!
Se, antes do século XVII, o coito era recomendado quando praticado com regularidade e sem
exageros, a partir desse período, o quadro muda e intensifica-se uma censura ao sexo,
considerado causa de perturbações de saúde e mesmo de moléstia contagiosa. Torna-se
consensual a noção de que o prazer é a pior fonte dos males do corpo, conforme vinha
afirmando a moral cristã, havia mais de um século.
O mundo barroco do chocolate, dos aromas importados, do almíscar e do âmbar, das
comidas “adubadas” de condimentos quentes, da obsessão afrodisíaca que enxergava essa
virtude em diversos vegetais e animais, é substituído pelo mundo industrial, em que o
desempenho do trabalho seria movido a excitantes: o café e o tabaco. Ambos elogiados como
“dessecativos e antieróticos”. A mensagem era uma só: não havia mais tempo para o prazer, só
para o trabalho. Logo, abaixo a sensualidade!
PECADOS ABAIXO DO EQUADOR
Uma vez que, na Idade Moderna, erótico designava “o que tivesse relação com o amor”,
como essa definição se materializaria em práticas? Há registros de estratégias de sedução que
soariam pouco familiares e mesmo pueris aos olhos de hoje. É o caso do “namoro de
bufarinheiro”, descrito por Júlio Dantas, corrente em Portugal e no Brasil, ao menos nas
cidades. Consistia em passarem os homens a distribuir piscadelas de olhos e a fazerem gestos
sutis com as mãos e bocas para as mulheres que se postavam à janela, em dias de procissão,
como se fossem eles bufarinheiros a anunciar seus produtos. É também o caso do “namoro de
escarrinho”, costume luso-brasileiro dos séculos XVII e XVIII, no qual o enamorado punha-se
embaixo da janela da moça e não dizia nada, limitando-se a fungar à maneira de gente
resfriada. Caso a declaração fosse correspondida, seguia-se uma cadeia de tosses, assoar de