Línguas e linguagens nos candomblés de nação Angola por Elizabete Umbelino de Barros - Versão HTML
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perdido o contato com um clã ou uma linhagem ancestral de seu
conhecimento. Entretanto, por estar enraizado em várias etnias, e mesmo não
tendo encontrado ambiente propício para prática tal qua l na África, esse culto
conservou importantes aspectos através de at itudes e co mportamentos dos
escravos diante da morte.
Essas (re)co nstruções do mundo africano não só permit iram aos povos
oriundos da área do grupo banto realizarem seus cultos, co mo també m
1 Inquice: divindades dos povos de línguas do grupo banto (ver cap.4)
12
possibilitaram a abertura de um caminho para outras etnias que chegaram ao
Brasil, um pouco mais tarde, poderem praticar a sua relig ião ancestral.
Essas etnias, sobretudo iorubas e fo ns, sofreram uma influência cultural e
lingüíst ica das línguas do grupo banto: cultural em relação ao sincret ismo
estabelecido com a religião cató lica e a indígena; lingüíst ica através da
utilização de palavras importantes para a ritualíst ica, co mo por exemplo, a
própria designação da religião: candomblé.
Assim, o cando mblé é uma parte da África transplantada para o Brasil e,
numa reprodução brasile ira, buscou uma organização hierárquica sócio-
religiosa, inserida num mundo afro-brasileiro, no qual a figura mais
importante é a da mãe ou pai-de-santo, caracterizando-se pela incorporação
das divindades ou ent idades em seus adeptos.
Nesse mundo afro-brasileiro, há u m repertório lingüíst ico diferenciando as
modalidades de cando mblé, às quais se dá o no me de nações e, embora as
cerimô nias públicas seja m muito simila res em sua estrutura, cada nação
cultua as suas divindades em sua língua, chamada de língua-de-santo, cujos
falantes se deno mina m povo-de-santo.
1.3.1 Nações de candomblé
No início do processo escravista, o termo nação era ut ilizado para agrupar
os escravos segundo a sua procedência (cf.Karasch, 2000 e Mattoso, 1989).
No século XIX, o termo nação servirá para ident ificar a população escrava,
genericamente, de acordo com o local de nascimento. A esse respeito, Mary
Karasch (2000:36-37), esclarece:
No s écul o XI X, as pr in cipais divis ões d os es cr avos n o Ri o estavam
bas eadas n o lugar de n ascimen to: Áfr ica ou Br asil /…/ Um cativ o
br asileir o pod er ia ser An tôn io cr ioulo ou M aria par da, en quan to os
afr ican os ser iam An tônio An gola ou Mar ia Moçambique. /.../ No Ri o d o
século XI X, as pr in cipais "n ações br asileiras" er am a cr ioula, a par da e a
cabr a; escr avos cr ioul os e par dos man tinham iden tidades e comun idades
tão separ adas umas das outras quan to das nações afr ican as.
Karasch aborda também as dificuldades de se ident ificar, de modo mais
preciso, as nações africanas dos escravos do Rio de Janeiro. Entretanto, os
senhores de escravos os classificavam empregando o termo nação. Nos
anúncio s de jornais para a venda de escravos, aparece m as mais variadas
13
expressões, relac io nadas a uma nacio nalidade; isso, de certa forma, segundo a
autora, tem ajudado na ident ificação de suas procedências étnicas.
Quan do os s en h or es n ão sabiam a n acion alidade de um escr avo,
empr egavam vár ios t er mos par a in dicar a or igem afr icana, sen do um dos
mais comun s o acr és cimo da expr es são "d e n ação" ao pr en ome cr istão,
como: "An tôn io de n ação An gola". Quan do o escr avo er a de n ação
des con h ecida, a expr essã o er a "n egr o de nação", ou "um afr ican o".
Kar asch, (2000:42-43)
Kat ia Mattoso, (1982:146-153) discute os seguint es po ntos sobre o termo
nação:
- o espaço urbano das grandes cidades irá facilitar a sociabilidade e a
so lidariedade cultura l e religio sa por nações ou etnias muito mais do que o
espaço rural;
- as prime iras co nfrarias formadas pelo s africanos ou descendentes se
caracterizam pela separação em nações. Por exemplo, a confraria dos
ango lanos não aceit ava pessoas de outras etnias. A part ir do século XVIII, elas
se tornam mais abertas, aceitando a mistura étnica;
- os jorna is anunciam a fuga de escravos, ident ificando-os através da nação:
“Fugiu da fazen da Timbo, p er ten cen te a Ign ácio Bor ges d e Bar r os, uma
es cr ava de n ome Maria, da n ação n agô /.../” ( Jornal da Bahia, 23-1-1855)
Mattos o, (1982:153)
“N o dia 31 de jan eir o fugiu o es cr avo min a /.../” ( Jornal da Bahia,
14.11.1857)
Mattos o, (1982:153)
Segundo Bast ide (1985:82), inúmeras co nfrarias surgiram no século XVIII,
principalmente devido ao incent ivo que era dado aos escravos, tanto pelo
governo quanto pelos padres da igreja católica, para cultuarem os santos e
virgens negros.
Uma das confrarias mais conhecidas é a de Nossa Senhora do Rosário. Ela
era dividida entre do is grupos dist intos: negros e brancos. A igualdade entre
negros e brancos era inibida pela própria estrutura patriarcal e escravista,
assim co mo acontecia co m a igualdade cristã. Há, então, uma divisão entre as
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confrarias e entre os fiéis: Confraria do Rosário dos Negros e Co nfraria do
Rosário dos Brancos. Isso provocava numerosas brigas entre as confrarias
pela disputa de poder e prestígio.
Essas confrarias const ituíam-se em formas de organização social,
permit indo a co nservação de valores africanos; entretanto, vão reproduzir não
só valores africanos co mo também católic os, uma vez que o indivíduo está em
dois espaços ao mesmo tempo.
Karasch (2000) cita algumas informações transmit idas pelos estrange iros
na ident ificação, no Rio de Janeiro, das origens da ma ioria dos escravos:
Cabinda, Congo, Benguela, Moçambique etc. E, em relação a esses lo cais de
procedência, a autora registra a sua preservação, justamente, nos locais o nde
se prat icam as religiõ es de origem africana, evidenciando uma passagem do
termo nação enquanto ent idade po lít ica para nação enquanto ent idade
religiosa.
Ao agr upar os or ixás n a sétima linh a, ou afr ican a, os umban distas
dividem ess es espír itos em set e gr upos, cada um com s eu ch efe: Povo da
Costa, Con go, An gola, Ben guela, Moçambiqu e, Loan da e Guin é. Em
outr as palavras, os n omes das n ações d o sécul o XI X tor n ar am-se agor a
n omes de falan ges de espír itos.
Kar asch (2000:44)
Essas sete linhas da Umbanda de que trata a autora enco ntram a sua orige m
principal nas festas, tanto do Rio de Janeiro co mo em São Paulo, em que se
faziam (e fazem) representações sobre a coroação do rei e da rainha do congo,
as conhecidas congadas, nas quais aparecem sete nações.
No que diz respeito aos Cando mblés, as confrarias servirão de núcleos para
a sua formação, pois seus me mbros eram os mesmo s que, mais tarde, irão
formar os prime iros terreiros, o que contribuirá para a difusão do termo
nação, definindo-o em diferentes mo dalidades de culto que podem ou não
possuir vínculo s ét nicos. Lima (1984:19) faz a dist inção entre etnia segundo a
modalidade de rito e etnia da qual descende a pessoa:
Daí a falecida ialorixá An inh a poder afir mar com or gulh o: “minh a seita
n agô é pur o”. E dizia iss o n o sen tido d e qu e a “n ação” de sua seita, d e
seu t er r eir o, e qu e er am os padr ões r eligios os em que ela, desd e men in a,
se for mar a, era n agô. Aí se deve en ten der nação-d e-san to, nação-de-
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can domblé. Por que, n o cas o de An inh a, ela mesmo er a e se sa bia,
etn icamente, descen den te de afr ican os gr un ces...
As nações de candomblé estão divid idas, principalmente, em: Angola,
Queto, Jeje-mahin, Ijexá, Caboclo. Entretanto, nenhuma delas é iso lada em s i
mesma; há muitas semelhanças e correspondências no culto às divindades,
além dos emprést imo s lingüíst icos, embora cada u ma possua a sua própria
ident idade cultual e lingüíst ica, buscando manter um léxico que as possa
ident ificar e diferenciar. Pessoa de Castro (1981:61) apresenta uma divisão
das nações mais co nhecidas:
... VODUM (étimo fon) entre as “nações” JEJE; de ORIXÁ (étimo
yorubá) entre as “nações”NAGÔ, QUETO, IJEXÁ; de INQUICE (étimo
banto) entre as “nações” CONGO, ANGOLA.
Essas nações de cando mblé passaram por processos de transformações ao
lo ngo do tempo. Pelo menos do is desses processos são bastante discut idos na
atualidade. Trata-se do “branqueamento” e da “(re)africanização”.
O “branqueamento” é um processo pelo qual, gradat iva mente, fo i
ocorrendo uma presença, nos Cando mblés, de pessoas que não possuem, ou
possuem em menor grau, uma ligação ou parentesco co m alguma etnia
africana. Esse processo acontece muito mais nos Estados do sul e sudeste do
Brasil, o que é co mpreensível, visto a grande mistura de descendentes de
europeus nessas regiões. Na cidade de São Paulo, por exemplo, pode-se
encontrar mães e pais-de-santo de origem européia, co mo portuguesa,
espanho la, italiana, alemã, dentre outras.
A “(re)africanização” é um processo bastante discut ido entre os adeptos do
cando mblé. Consiste na busca das origens ét nicas e, conseqüentemente,
lingüíst icas das co munidades, reivindicando, cada qual, uma “pureza” étnica.
Há alguns adeptos que se (re)inic iaram2 com babalaôs iorubanos; uns foram
até os países iorubas, nas regiões da Nigéria e do Benim; outros, os trouxera m
ao Brasil, especia lmente, para a realiz ação dos rituais. Trata-se de um
processo que tem uma ocorrência maior entre os adeptos dos Cando mblés de
2 Utilizei o termo (re)iniciar porque se refere a pessoas que já eram iniciadas no candomblé no Brasil e passaram por outra iniciação na
África.
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Nação Queto, mas adeptos de outras nações, de forma menos propagada tê m
buscado um retorno às origens africanas.
A (re)africanização coloca em co nfro nto dois mundos: o afro-brasileiro,
co m toda a sua história de luta para a preservação do culto às divindades, as
(re)significações e (re)int erpretações desde a época da escravidão, e o
africano, de regiões do minadas pelo s europeus, cujos cultos, lá mesmo, na
África, passaram por transformações e adaptações várias, co mo o fato de
muitos africanos do ant igo reino do Congo, terem entrado em contato com os
valores cristãos, no século XVII, antes de serem trazidos ao Brasil. Assim, a
pergunta que cabe é: será que existe pureza ét nica na África atual? (se é que
algum dia ela exist iu); ou ainda, será que existe pureza ét nica e m algum lugar
do mundo?
Assim, será essa diversidade histórica que poderá explicar o fato de os
adeptos dos Cando mblés reivindicarem pertencer a u ma nação, cujo termo
adquiriu seu sent ido atual de região africana de origem. O seu significado
permit e dist inguir algumas modalidades rituais, em relação a cada
co munidade de culto, sua história de fundação e de estruturação de acordo
co m sua raiz africana cultural e lingüíst ica.
O termo nação, de acordo com os meus informantes, é sinô nimo de raiz.
Pertencer a uma nação significa ter uma raiz na qual se apo iar para poder
transmit ir aos inic iados o que eles denomina m co mo fundamentos-da-nação
que, mesmo distante no tempo e no espaço, estão ligados a uma visão de
mundo africana.
1.3.2 Características gerais das nações de candomblé
Embora essas nações de candomblé possuam aspectos que as diferenciem,
sobretudo em sua língua ritual, cujas palavras estão ligadas a uma língua
negro-africana, observam-se muit as correspondências e se melhanças entre as
várias nações, tais co mo:
1. caracterizam-se pelo transe de possessão de divindades ou entidades em
seus adeptos, mesmo havendo algumas pessoas que não vivem a
experiência da incorporação;
2. as divindades são denominadas de santo;
3. são espaços, cujas denominações variam entre: barracão, roça,
terreiro, casa, comunidade;
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4. realização de festas públicas, também denominadas toques;
5. danças no sentido anti-horário;
6. o uso de roupas próprias para as festas;
7. instrumentos musicais, sobretudo, os de percussão acompanham as
cant igas ded icadas às divindades e às ent idades;
8. na entrada, há assentamentos da divindade ou divindades protetoras da
co munidade;
9. seus adeptos passam por um processo de iniciação para uma divindade
pessoal, durante o qual vive m um período de recolhimento, cumprindo
determinados preceitos, dando iníc io à sua formação religio sa;
10.após a iniciação, periodicamente, renovam as forças divinas e as suas
próprias através de novos reco lhimentos e cumprimento de preceitos, ao
qual se dá o nome de obrigação;
11.as d ivindades ou ent idades são ho menageadas através de o ferendas de
sacrifício anima l e de alimentos à base de cereais, tubérculo s e
vegetais;
12.o salão principal, lo cal o nde se realizam as festas, cujo no me mais
co mum é barracão, possui uma ligação, vis ível ou não, entre o chão e o
teto. No alto há um recipiente de barro, de louça ou de outro material
que contém certos ele mentos rituais; no chão, embaixo da terra, são
também co locados certos elementos rit uais. Esses do is espaços são
revest idos pelo sagrado, têm diferentes simbo logias e se co nst ituem e m
um dos fundamentos da casa;
13.os fundamentos se configuram em elementos utilizados nos rituais, mas
também significam os co nhecimentos adquiridos ao lo ngo das
experiências sacerdotais e que remetem à iniciação da mãe ou do pai-
de-santo;
14.os membros de uma co munidade são ligados pelos laços iniciát icos e se
const ituem na família-de-santo, co m avós, pais, t ios, primo s, so brinho s,
irmãos etc.;
15.seus textos se caracterizam pela transmissão oral;
16.o aprendizado é gradual e se dá na prát ica do dia-a-dia.
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a) O aprendi zado
O aprendizado acontece no dia-a-dia, na vivência socioreligio sa, co m base
na oralidade, através da repet ição sistemática de seus textos. Entretanto, pude
constatar a existência de textos organizados em apost ilas para a facilit ação do
aprendizado; essa prát ica já exist ia nas comunidades co m os seus ant igo s
cadernos-de-fundamento a que só tinham acesso os “mais velhos”.
A elaboração de apost ilas por parte de algumas co munidades está apo iada
em bibliografias de referência em que algumas pessoas das co munidades de
Cando mblé, sobretudo, os seus dirigentes adquirem: dicio nário s, gramát icas e
outros tipos de textos escritos por soció logos, antropólogos, etnólogos,
historiadores, lingüistas, referentes às suas origens mít icas. Um dos autores
mais conhecidos pe lo povo-de-santo é, sem dúvida, Pierre Verger.
No Inzó Dandaluna, por exemplo, o tateto Roxitalamim possui os
dicio nário s de quimbundo e quico ngo, além de outras obras.
A esse respeito, Lima (1984:18) apresenta o seu testemunho:
Em São Paulo mesmo, r ecen temen te, en con trei, n um terr eir o que eu
costumava fr eqü en tar , quan do estava lá, uma bibliogr afia in vejá vel sobr e
os can domblés da Bah ia.
A organização dos textos orais, alé m dos livros e textos publicados, está
apo iada também no int ercâmbio, so bretudo comercial, co m africanos de
diversas procedências: vendedores de objetos ritualíst icos, obras de arte,
roupas etc. e que costumam freqüentar as rodas-de-candomblé.
As formas de aprendizado, então, fazem parte de um sistema da
modernidade e algumas adaptações são realizadas, nas diferentes
co munidades, a part ir dos conhecimentos adquiridos através dessas fo ntes.
Apesar disso, prevalece, ainda, no seio de cada casa, a forma de aprendizado
ant iga, baseada na prát ica do cotidiano.
b) Os rituai s público s
No Cando mblé, os rituais ou cerimô nias possuem, pelo menos, duas
designações populares: festa ou toque.
Uma festa pública co meça a ser preparada alguns dias antes. Dependendo
dos fundamentos da casa e do t ipo de festa, há rit uais de preparação que, via
de regra, co meçam pelas o ferendas dedicadas à divindade guardiã da
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co munidade. E, somente após fazer as oferendas a essa divindade é que se
farão as o ferendas às dema is que serão homenageadas na festa.
Assim co mo as o ferendas, as saudações e cant igas sempre se inic iam pela
divindade guardiã e são encerradas pela divindade conhecida co mo “o pai de
todas as cabeças” ( Lemba, nos Cando mblés de Nação Ango la; Oxalá, nos
Cando mblés de Nação Queto).
Essas o ferendas caracterizam-se pelo sacrifíc io de anima is ded icados às
divindades e co midas preparadas para cada uma delas à base de cereais,
tubérculo s, farinhas, frutas, legumes etc. Durante os sacrifício s ritua is e
oferendas são proferidas palavras, executam-se cânt icos e preces, há
possessão das divindades.
De modo geral, as casas de cando mblé possuem um calendário anual de
festas. As ma is populares são aquelas dedicadas às divindades cult uadas e
conhecidas em âmbito nacio nal: festa de Ogum; festa do Congoluandê3, nos
cando mblés de nação ango la, do Olubajé4, nos cando mblés de nação queto;
festa de Erê, mais conhecida co mo festa de Cosme e Damião5; festa de
Iemanjá; bala io de Oxum; festa de Oxosse; festa de Exu6, dentre outras.
Há outras festas relacio nadas à organização própria de cada co munidade,
co mo por exemplo, aquelas dedicadas à d ivindade patrona da casa ou
ent idades especiais, geralmente, da mãe ou pai-de-santo.
Alguns t ipos de rituais são realizados conforme a necessidade dos filhos-
de-santo. São dois t ipos de rito: iniciação e obrigação.
c) Iniciaç ão
Uma iniciação imp lica mu itos dias de reco lhimento da pessoa que será
inic iada. Durante esse período, acontecem os rituais propiciatórios. Uma
pessoa pode ser iniciada sozinha ou junto com outras pessoas; quando esse
últ imo fato ocorre, dá-se o no me de barco: barco-de-muzenza, nos
Cando mblés Ango la e barco-de-iaô, nos Cando mblés Queto.
A inic iação de algué m, numa dada co munidade, envo lve a todos por sua
importância, po is representa o aumento da família-de-santo. Geralmente, o
inic iando terá, além da mãe ou pai-de-santo, também ligações mais próxima s
co m outras pessoas, tais co mo:
3 As festas dedicadas a Ogum e a do Congoluandê estão descritas no cap.2.
4 Olubajé: banquete do rei. Festa dedicada a Omolu (ver cap.4).
5 Festa dedicada às crianças.
6 Iemanjá, Oxum, Oxosse e Exu: divindades iorubas (ver cap.4).
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- a mãe-criadeira ou o pai-criador: pessoa designada para cuidar do
inic iando ;
- a mãe-pequena ou o pai-pequeno: pessoa que pode auxiliar o iniciando,
durante todo o seu período sacerdotal, na ausência da mãe ou pai-de-santo;
- a madrinha ou o padrinho-de-santo: pessoa que pode ou não ter uma ligação
co m a casa.
No dia da festa pública, para apresentação da noviça (ou noviço) à
co munidade, a mãe ou pai-de-santo esco lhe uma pessoa pertencente ao alto
clero dos Cando mblés, via de regra, uma outra mãe ou pai-de-santo de outra
co munidade e lhe o ferece a noviça co mo afilhada.
A madrinha ou padrinho-de-santo, então, tomará a noviça, incorporada de
sua divindade, pelo braço e passeará com ela pelo barracão, so licit ando-lhe
que revele o seu no me à co munidade.
Trata-se de um mo mento de suspense, po is tudo pode acontecer, como, por
exemplo, a divindade recusar-se a revelar o seu no me; o que será mu ito ruim
para a mãe ou o pai-de-santo que será bastante crit icado pelo povo-de-santo.
A int erpelação à divindade obedece a uma seqüênc ia, justamente, para
aumentar esse suspense, que consiste em se fazer o pedido por três vezes; na
primeira e segunda vez, a divindade diz o seu no me no ouvido da madrinha ou
padrinho que, ainda no contexto do suspense, pergunta ao público:
–Vocês escutaram? – todos gritam:
–Não! – então, diz be m alto:
–O povo não lavou o ouvido, hoje, meu pai... – e todos riem e faze m
co mentários descontraídos, embora haja certa tensão. E pede que a divindade
grite o seu no me para que todos ouçam7.
E a divindade, na terceira vez, dá três vo ltas sobre si mesma, co m as mãos
erguidas para o alto e grita o seu no me, desencadeando vários transes de
possessão em muzenzas e iaôs.
d) Obrigaç ão
Dá-se o no me de obrigação aos rituais realizados ao lo ngo da carreira
sacerdotal dos adeptos do cando mblé após terem passado pela iniciação.
7 Em várias comunidades de candomblé em que presenciei esse momento, escutei da madrinha ou padrinho, a seguinte expressão: “Em nome
de Zâmbi apongo, orucó, orixá!”
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A obrigação implica reco lhimento da pessoa, porém leva menos dias do
que a inic iação e tanto o tempo entre uma obrigação e outra quanto o número
de dias de reco lhimento dependem dos fundamentos da casa. As obrigações
fazem parte do processo de formação sacerdotal, pois cada uma significa uma
etapa que se caracteriza por intensific ar a aprendizagem e aquis ição de
conhecimentos e, sobretudo renovar as forças da pessoa e de suas divindades.
e) O sagra do e o profano: tênu e fio divisório
Nos cando mblés, os espaços sagrado e profano não podem ser tratados com
muit a rigidez, po is trata-se de um universo religio so diferenciado de outras
religiões, sobretudo do crist ianis mo, cujos espaços são, visive lmente,
dist intos, pois tem, via de regra, o sagrado como um espaço fechado.
Numa igreja católica tradicio nal, por exemplo, até a voz tem que ser
utilizada em tom bem baixo, po is pressupõe-se que falar um pouco mais alto
perturbará a paz reinante no ambiente. As religiõ es de origem africana não
têm essa mesma visão do espaço sagrado; ele é um espaço, antes de ma is
nada, aberto e não tão formal. Em sua liturgia são empregados cânt icos
aco mpanhados por instrumentos de percussão e outros instrumentos metálico s
(agogô, adjá) e t ipos diferentes de chocalhos (xequerê, maracás)8.
Os cânt icos desencade iam transes de po ssessão, havendo a co municação
das divindades através de seu grito característ ico, chamado ilá que ocorre no
iníc io, durante e no final das incorporações.
As cant igas são entoadas ao mesmo tempo em que se dança numa roda que
gira em sent ido ant i-horário. Nos Candomblés Ango la, essa roda possui o
no me de cassambe e nos Cando mblés Queto, xirê. Os cânt icos e danças
co mpõem uma construção da história mít ica de deuses e deusas, ora
chamando-as a descerem à terra, ora reverenciando a sua chegada, ora
prestando-lhes ho menagens, ora se despedindo.
Assim, acontece uma relação temporal entre os espaços do sagrado e do
profano, perfeitamente mutável, co nforme o rito e os fundamentos das casas.
Em alguns mo mentos, a mudança de um espaço para o outro pode ser bastante
sut il, quase impercept ível; em outros, bastante vis ível. E, algumas vezes, os
dois espaços podem aparecer mesclados, co mo por exemplo, nas festas de
caboclo que se caracterizam pela existência de mo mentos sagrados e pro fano s
8 Agogô, adjá, xequerê, maracá: instrumentos musicais.
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a um só tempo: sagrados porque se trata de ent idades invest idas pelo sagrado,
que “descem na terra” através do transe de possessão imbuídas pelo divino ;
mas, profano, pois essas mesmas ent idades sagradas bebem bebidas alcoó licas
e fumam charutos. Isso não as torna menos divinas, apenas co m outra
característ ica divina, diferente do orixá ou do inquice.
1.4 Candomblés Angola e Queto: uma história de co-relação
Os Cando mblés de Nação Ango la e os Cando mblés de Nação Queto têm
uma história de ident idade, de co-relação, embora seja notória a influência da
segunda nação nas co munidades afro-brasile iras de mo do geral.
A questão do predomínio dos Cando mblés Queto sobre outras nações é
discut ível e se podem constatar elementos dos Cando mblés Ango la e m
Cando mblés Queto, como, a própria designação de Candomblé para definir as
práticas religio sas de ambo s os ritos. Há, pelo menos, do is outros aspectos
importantes dos Cando mblés Ango la adotados pelos Cando mblés Queto: o
culto aos caboclos, co mo ancestral e dono das terras brasileiras e o
sincret ismo católico.
O culto aos caboclos fo i incorporado à lit urgia de muitos Cando mblés
Queto, mesmo os mais ortodoxos e, somente na atualidade, co m o processo de
(re)africanização é que algumas co munidades deixaram de prat icá-lo, mas não
todas.
O sincret ismo católico é um outro aspecto bastante evidente em muitas
Casas de Queto. O emprego do termo santo co mo sinô nimo de orixá e a
lavagem das escadarias do Senhor do Bonfim, em Salvador, atestam essas
afirmações.
Na II Conferência Mundial da Tradição Orixá e Cultura, realizada em
Salvador, em 1983, as matriarcas dos cando mblés baianos se reuniram em
torno da discussão do sincret ismo, dispostas a excluir o sincret ismo do seio
das Nações Queto e a primeira proposição fo i, justamente, se acabar co m a
lavagem das escadarias do Senhor do Bonfim. A po lêmica, então, fo i
instaurada, po is essa lavagem das escadarias da igreja, alé m de fazer parte de
um ritual bastante ant igo, apresenta-se também co mo um cartão postal de
Salvador (Consorte, 1999:74).
23
Assim, farei um breve estudo histórico, para levantar alguns pontos e
verificar co mo se dá a co-relação entre os Cando mblés Ango la e Queto e
quais são as suas origens.
1.4.1 Origens
Do século XVI ao XIX, vieram para o Brasil, co mo escravos, cerca de 4
milhõ es de africanos. Alguns autores, como Edison Carneiro (1991:29-30),
dividem os povos vindos da África para o Brasil, generica mente, em do is
grandes grupos: sudaneses e bantos.
Os povos do grupo lingüíst ico banto foram trazidos através do tráfico de
escravos de uma vasta extensão territorial, conhecida e citada pelo s
historiadores, co mo sendo os ant igos reinos de Ango la e do Congo, e també m
de Moçambique. Esses povos foram levados, princ ipalmente, para o
Maranhão, Pernambuco e Rio de Janeiro.
Os sudaneses foram trazidos das regiões mais conhecidas co mo Costa do
Ouro e Costa dos Escravos, no Golfo da Guiné. Genericamente, essas regiões
ficaram conhecidas co mo Costa da Mina.
A Costa do Ouro compreende as regiões onde ho je se situam os países
Togo e Benim. Dessa área foram trazidos os fant is, moradores do litoral e
axant is, do interior. Esses povos foram levados para os Estados de Minas
Gerais e da Bahia, recebendo, a deno mina ção genérica de minas.
A Costa dos Escravos co mpreende as regiões também do Benim e da
Nigéria. Dessa área foram traz idos os iorubas (chamados de nagôs). Os
iorubas foram levados para a Bahia; os fo ns (chamados de jejes) e eves fora m
levados para a Bahia, Recife e São Luís (cf.Carneiro, 1964:44).
Esses povos sudaneses foram trazidos, maciça mente, já ao fina l do tráfico
de escravos em 1850. Por essa época, os iorubas eram ma joritário s na cidade
de São Salvador, na Bahia, conforme atesta Mattoso (1988:104):
De on de pr ocedem es ses a fr ican os? As in for mações con tidas n os
testamen tos e in ven tár ios são fr eqüen temen te muito gen ér icas: “Costa
d’Áfr ica” ou “C osta Ociden tal”, típicas impr ecisões g eogr áficas. É cer to,
por ém, que os a fr ican os captur ados n a Áfr ica Ociden tal ao n or te do
Equador são n a Bah ia mais n umer os os d os qu e os pr oven ien tes da costa
sul, que cor r espon de, h oje, ao C on go e a An gola. Os ch amados
“sudan eses” super am em n úmer o os “ban tus” que r epr esen tam cer ca de ¼
da população escr ava.
24
Então, conforme as afirmações da autora, é provável que, devido à chegada
mais recente e por serem mais numerosos, em Salvador/BA, os africanos
oriundos da África Ocidental tenham conservado mais as suas característ icas
ancestrais e lingüíst icas, além do fato de não haver, por essa época, uma
separação dos núc leos familiares tão acentuada co mo no iníc io da escravidão.
A esse respeito, Pierre Verger (2000:23) argumenta:
O r itual cer imonial nago (e, em men or gr au, o dos djèjè) é aquele qu e,
n a Bah ia, melh or con ser vou seu car áter afr ican o e in fluen ciou for temen te
o de outr as “n ações”.
Historicamente, a divulgação dessas característ icas ancestrais e
lingüíst icas pode ser observada em relação a alguns fatores relevantes.
A primeira casa de cando mblé fo i fundada no século XIX por três mulheres
nagôs: Iadetá, Iacalá e Ianassô, na cidade de Salvador/BA; trata-se da Casa
Branca do Engenho Velho, que existe até ho je co m o no me de Ilê Axé Ianassô
(cf. Bast ide, 1961, Gonçalves Silva, 1994).
A estrutura das casas de cando mblé seguiu, desde essa primeira, o modelo
ioruba de organização e se co nst ituem em co munidades hierarquizadas em que
a liderança religio sa está centrada na figura da mãe ou pai-de-santo.
A sucessão, nessas casas, só acontece após a morte de seu dirigente. E ne m
sempre acontece co m tranqüilidade, podendo ocorrer desacordos quanto ao
esco lhido para dir igir o terreiro. Por ocasião da sucessão no Ilê Axé Ianassô,
houve diss idências que culminaram co m a abertura de do is outros terreiros
em Salvador: o terreiro do Gantois e o Ilê Axé do Opô Afonjá.
Antes mesmo da fundação ofic ial da Casa Branca do Engenho Velho, há
informações, através dos relatos de velho s iorubas, sobre a presença de
africanos vindos da África, por vo lta de 1830, especialmente, para a
realização de cerimô nias em Salvador/BA (cf.Mattoso,1982:150).
Esses relatos vêm co mprovar a existência de cultos afr icanos, já na época
citada por Mattoso, vinte anos antes da proibição do tráfico no Brasil. Isso é
mais um dado importante na análise dos fatos históricos de uma “supremacia”
dos cultos iorubas, na Bahia, principalme nte.
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Em meados da década de 60, houve um processo cultural e social muito
int enso em todo o país, cujo s valores se vo ltaram para a cult ura popular: o
bo m e o belo era prest igiar a nossa cultura, a cultura negra.
Nessa época, o cando mblé encontra prest ígio através da divu lgação de
obras literárias, so bretudo os livros de Jorge Amado e as músicas dos cantores
baianos, ho menageando as casas de cando mblés mais ant igas da Bahia,
tornando-as conhecidas de norte a sul do Brasil. Caetano Veloso, compositor
brasileiro, co mpõe a música "Oração a Mãe Menininha", em ho menagem à
ialorixá do terreiro do Gantois, dando a Maria Esco lást ica da Co nceição
Nazaré uma popularidade até ho je não superada por outra mãe-de-santo.
Assim, devido aos fatores históricos abordados, a part ir da década de 60, é
possível atestar muitos termos do ioruba se tornarem de do mínio público,
principalmente, através das cant igas que revelavam a mito logia dos orixás nos
Cando mblés Queto, como por exemplo, a seguinte cant iga:
Nes sa cidade t od o mun do é d e Oxum / Hom em, men in o, men ina, mulh er /
... / Pr esen tes n a água doce, pr esen tes n a água salgada e toda a cidade é
d'Oxum /.../
(Calazan s, discos Ar iola)
Essa cant iga fala do mito de Oxum e de seu do mínio em um dos elementos
da natureza: a água. Assim co mo essa cant iga, há outras, abordando os mito s
dos orixás, focalizando seus do mínio s na natureza, suas característ icas e suas
relações co m os seres humano s.
Co m isso, o Cando mblé Queto ganhou prest ígio e visibilidade de norte a
sul do país e, conseqüentemente, acabou por influenciar outras nações de
cando mblé; uma delas é o Cando mblé Ango la que assumiu o seu panteão,
tendo muitos terreiros adquirido a no menclatura de Candomblé Angola-Queto.
Assim, da Bahia, o Cando mblé Queto, se expandiu em outras direções do
Brasil: outros estados do nordeste; estados do sul, do norte e do sudeste. E,
embora exerça influência so bre outros cultos afro-brasile iros, é possível notar
a presença da língua quimbundo e, até mesmo da quicongo, que são marcas de
ident idade lingüíst ica dos Cando mblé s Ango la, em co munidades de
Cando mblé Queto.
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A própria palavra que designa os ritos: candomblé é de ét imo qu imbundo e
significa "reza, louvação, pedir pela intercessão dos deuses e local onde se
realiza o culto" (cf.Pessoa de Castro, 2001:196).
O Cando mblé Queto recebe influências lingü íst icas também da língua fo m,
conforme atesta Lima (1984:16):
Nas casas-n agôs, p or exemplo, quan do s e dá o n ome da in iciação, os
n omes dof ona, dof onitinha, ga mo, gamutinha , essas palavr as n ão sã o
n agôs, mas são palavr as gen uin amen te fõ, de uma outr a lín gua, são
palavr as de n ação-jeje qu e os n agôs empr estaram e assimilar am n o seu
corpus r itual.
O culto ao inquice, no Brasil, é mais ant igo do que o culto ao orixá e, por
isso, algum léxico de línguas do grupo banto permaneceu no interior dos
cultos afro-brasile iros de modo geral.
Há algum tempo, teve iníc io um processo de “reafricanização” nas
co munidades de Cando mblé Queto, e muit as casas subst ituíram palavras
importantes de sua ritualíst ica, cuja origem era do quimbundo ou do quico ngo
pelo ioruba. É o caso de quizila (interdito) do quimbundo, subst ituída por euó
(interdito) do ioruba (cf.Póvoas, 1989:27).
A influência do Cando mblé de Nação Queto se torna mais presente em São
Paulo e Rio de Jane iro. Em São Luís, no Maranhão, onde vis itei três das casas
mais ant igas: a Casa das Minas, a Casa de Nagô e a Casa Fant i- Axant i, há
uma predo minância do tambor-de-mina.
Dessa forma, pode-se co nstatar que os iorubas assim co mo os bantos tanto
receberam quanto transmit ira m influências culturais e lingüíst icas, uma vez
que as duas nações de cando mblé, apesar da ant igüidade banto, são solidárias
em relação à reconstrução de suas ident idades em so lo brasile iro. Mas, aos
poucos, notar-se-ão influências, cada vez mais fortes, do Cando mblé Queto
sobre as outras nações. E essa influência, na verdade, se deve, além dos
fatores históricos, abordados anteriormente, também à divu lgação dos seus
ritos através dos livros publicados por antropólogos, soció logos,
historiadores, co mo: Verger, Bast ide, Carneiro, entre outros.
27
1.4.2 Candomblé de Nação Angola
As co munidades religio sas de Cando mblé de Nação Ango la são também
conhecidas co mo angola-congo ou congo-angola (doravante, Cando mblé
Ango la). Esse cando mblé chegou ao Brasil através dos primeiros povos
oriundos de algumas regiõ es da África Austral, os ant igos reino s de Ango la
( Ndongo), do Congo, de Loango, de Matamba, de Kakongo, dentre outros.
Para se co mpreender a formação dos Cando mblés Ango la, é preciso
considerar os grupos étnicos, lingüíst icos e as prát icas rit uais que fora m
trazidas por esses povos da área banto. Segundo Mattoso, ( apud Bo nvini &
Petter, 1998:72-73) esses povos pertencem ao "ciclo do Congo e de Ango la,
no sécu lo XVII". Ela registra os grupos étnicos e as línguas transplantadas:
a) quicongo: falada pelos bacongo, numa zona correspondente ao antigo
reino do Congo;
b) quimbundo: falada pelos ambundo, na região central de Angola,
correspondendo ao antigo reino de Ndongo;
c) umbundo: falada pelos ovimbundo, na região de Benguela, em Angola.
Essas línguas africanas eram, provavelmente, faladas nos rituais dos
primeiros tempos, ainda nos espaços contíguos às senzalas. Elas se
const ituíram, naqueles tempos, em u m dos elementos estruturadores da
recriação africana, co mo fator de reco nstrução do modus vivendi de povos que
vivia m uma situação de apagamento de sua ident idade através do processo
escravista.
a) Com plexo banto
Embora se considere, conforme atesta Mattoso, a predominância, entre os
povos trazidos, ao Brasil, da área banto: os ambundos, do reino de Ndongo; os
bacongos, do reino do Congo e os ovimbundos, do reino de Benguela, é
possível constatar a presença de outras etnias, po is muit as pessoas eram
capturadas mais para o int erior e levadas para a costa e para a principal
região do tráfico de escravos: Calumbo, no rio Cuanza.
A área dos povos do grupo banto correspondia a ant igos e grandes
impérios: Congo, Luba, Kuba, Lunda, dentre outros, cujas fronteiras
geográficas, lingüíst icas e cu lturais eram bastante próximas.
28
Os império s Luba e Lunda são estreitamente ligados, visto ter sido o
império Lunda fundado, no século XVI, por um grupo Luba exilado, sob a
liderança de Ilunga Tshibinda, um dos filhos do rei Luba, Kalala Ilunga.
O reino Kuba expand ia seus limites através da co nquista de territórios
viz inho s e possuía uma fronteira co mum, ao sul, co m os Lunda. E suas
relações nem sempre foram pacíficas, havendo muitas guerras entre os do is
reinos.
O reino do Co ngo do minava uma vasta região, formada por outros reinos:
Ndongo, Loango, Matamba, Mpemba, Kakongo, Mpanzu, Soyo, Dembos,
Quissama, dentre outros; alguns desses reinos eram seus vassa los e lhe
pagavam tributos.
Ao sul do reino do Congo se situavam os reinos de Ndongo e de Matamba,
sendo esse últ imo fundido ao primeiro através da sua conquista pela ra inha
Jinga no final do século XVI.
Todos esses império s e reino s possuía m diversas pro víncias e inúmeros
grupos étnicos. Os ambundos, por exemplo, const ituíam um grande e ant igo
grupo étnico, que se subdividia em outros grupos: Ndongo, Songo, Lenge,
Libolo, Hungu, Pende, Ndembu, Mbaka, Mbondo, Imbangala; todos esses
grupos ambundos pertenciam ao reino de Ndongo. Cada um desses grupos era
co mposto por clãs e as línguas faladas era m variantes do quimbundo
(cf.Coelho, 1987; Hagenbucher-Sacripant i, 1973; Randles, 1968).
29
A vasta extensão do reino do Congo, com os limites dos reino s que se
situavam em seu território, os limites das províncias e a fronteira lingüíst ica
quicongo-quimbundo podem ser observados no mapa de Randles, (1968:22):
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No século XVI, os portugueses encontraram esses reino s bem estruturados,
cujas fronteiras, observadas no mapa, na verdade, eram bastante elást icas. O
reino de Ndongo, por exemp lo, se loca lizava entre o reino do Congo e o
império Luba9, favorecendo as suas relações po lít icas e co mercia is, em alguns
mo mentos, e, em outros, provocando os conflitos interétnico s. As guerras
entre os reinos se sucediam, algumas vezes, buscando a expansão de seus
territórios, e, em outras, lutando pela ema ncipação.
Alguns desses reino s possuíam inst it uições governamentais bastante
avançadas e seus reis eram invest idos pe lo poder real através de um processo
elet ivo. A base da eco no mia era, so bretudo, a agricu ltura, havendo também a
caça, a pesca, a confecção de objetos de arte.
Os povos de línguas do grupo banto possuíam um co mplexo cult ural,
religioso e lingüíst ico aparentado e uma cosmogonia bastante similar. Do is
aspectos são considerados co mo elementos maiores do seu sistema religio so:
o culto aos ancestrais e a divindades ligadas à natureza.
Pode-se constatar, no Brasil, em diversas co munidades de Cando mblé
Ango la, termos e ele mentos mito lógicos oriundos não so mente dos povos
trazidos dos reinos de Ndongo e do Congo, mas também de outros povos,
co mo por exemplo, o mito do herói fundador do império Luba.
Esse império era um vasto território, cujas origens se referem ao mito de
Nkongolo, divindade cultuada nos Candomblés Ango la so b a deno minação de
Angorô.
b) Nkongolo: O m ito do herói civili zado r
Esse mito é uma epopéia das origens do Estado Luba e é narrado pelos
depositário s da palavra, sendo reproduzido e publicado por alguns
pesqu isadores.
Heusch (1972:19-39), acena para uma dezena de versões sobre o mito do
heró i civilizador Nkongolo, a part ir de narrativas co lhidas por pesquisadores.
Ele diz que, embora haja várias versões, elas concordam em mu itos pontos e
se co mplementam. A mais ant iga delas data de 1913, co lhida por Père Co lle e
as mais atuais datam de 1954, 1962 e 1964, recolhidas por Theeuws. E
apresenta a versão de 1950, reco lhida por Orjo de Marchovelette: A Epopéia
Nacional Luba co mo a mais detalhada. Segundo o autor, essa versão tem o
9 Os impérios Luba, Kuba e Lunda não aparecem no mapa que mostra somente do reino do Congo.
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mérito de ter sido narrada por um depositário qualificado das tradições orais
da chefia de Kabongo, Inabanza Kataba.
De acordo com essa narrat iva Nkongolo é o primeiro rei sagrado dos Luba ;
ele possuía o [ bulopwe] ‘poder sagrado’. Seus ancestrais são kiubaka-Ubaka
‘aquele que co nstrói inú meras casas’ e Kibumba-Bumba ‘aquela que faz mu ita
cerâmica’. De sua união, nasce um casal de gêmeos de sexos diferentes que se
unem incestuosamente. A part ir dessa união, vão acontecendo outras da
mesma forma incestuosas. Nkongolo é originário de uma dessas uniões
incestuosas e, ele próprio, une-se em inc esto com suas duas irmãs: Mabela e
Bulanda. Ele submete sua autoridade por todas as terras do Oeste, porém sem
herdeiros. Um dia, em seus do mínio s, aparece um estrangeiro, um caçador de
no me Ilunga Mbidi Kilu we que vem a desposar as duas irmãs de Nkongolo.
Após algum tempo de convívio, os dois se desentendem. O caçador desaprova
o comportamento primit ivo de seu cunhado, principalmente, sua maneira de se
alimentar, e seu riso aberto, mostrando os dentes, o que cons idera indigno de
um re i sagrado. O caçador parte dos domínio s de Nkongolo, deixando as duas
mulheres grávidas. Antes de partir, porém, encarrega o adivinho Mijibu de
olhar pelas mulheres e, conseqüentemente, pelas crianças. Elas deram à luz
dois meninos: o filho de Mabela se chamou Kisula e o de Bulanda, Kalala
Ilunga. Algumas tramas engendradas pelo adivinho, logo colocam Nkongolo e
Kalala Ilunga co mo inimigos. Kalala Ilunga, ajudado pelas tropas de seu pai,
invade a cidade e Nkongolo, vendo-se sem saída, refugia-se numa caverna
úmida, de onde sai, todas as manhãs, para tomar so l; por isso, é descoberto,
capturado e decapitado. Sua cabeça e as partes genit ais foram co locadas
dentro de um cesto em cima de um pequeno monte; na manhã seguinte, a
cabeça havia desaparecido sob a terra e seu corpo fo i lançado nu ma cova oca
no leito de um rio.
Baseando-se nas diferentes versões, Heusch analisa o mito da seguint e
forma:
1. Nkongolo funda seu império entre do is cursos d’água: o lago Lwembe a
Oeste e o rio Luabala a Leste. Assim, o trajeto percorrido entre o lago e o rio
remete, imediatamente, à imagem do arco-íris reunindo dois cursos d’água;
2. A oposição entre úmido/seco: a parte superior do corpo de Nkongolo é
co locada num pequeno mo nte, no alto; a parte inferior, enterrada de maneira
estranha, no leito de um rio ;
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3. A decapitação de Nkongolo separa o ele mento seco, o arco-íris (na
crença popular representa o fogo celeste) e o elemento úmido, associado às
águas terrestres. O arco-íris apresenta as oposições: ele é, ao mesmo tempo,
macho e fêmea; e une o fogo e a água;
4. A separação da cabeça do corpo de Nkongolo, o arco-íris, separa o fogo
e a água; o céu e a terra. Isso inaugura a dialét ica das estações, a alt ernância
das estações (estação das chuvas/estação das secas);
5. O arco-íris é associado também a uma enorme serpente de duas cabeças.
Segundo uma crença Luba-Hemba, o arco-íris não é outro senão o vapor, a
fumaça que sai da garganta de uma enorme serpente vermelha chamada
kongolo.
O autor analisa o mito também em relação às diferenças entre o prime iro
rei sagrado Nkongolo e o segundo, Kalala Ilunga da seguinte forma:
- Nkongolo: incesto / riso / maneiras alimentares primit ivas;
-Kalal a Ilung a: c asa me nt o hip ere xo gâ mic o / uso d iscret o da bo ca / ma ne ir a s
alimentares refinadas.
Assim, Heusch faz uma reco nstrução, através da narrat iva dos depositário s
da palavra, do passado histórico do império Luba. E as aventuras de