Na escola com os orixás: o ensino das religiões afro-brasileiras na aplicação da Lei 10.639 por Rachel Rua Baptista Bakke - Versão HTML
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Rachel Rua Baptista Bakke
Na escola com os orixás: o ensino das religiões afro-brasileiras na
aplicação da Lei 10.639
São Paulo
2011
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Na escola com os orixás: o ensino das religiões afro-brasileiras na
aplicação da Lei 10.639
Rachel Rua Baptista Bakke
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação
em
Antropologia
Social
do
Departamento de Antropologia da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, para a obtenção de
título de Doutora em Antropologia Social.
Orientador: Prof. Dr. Vagner Gonçalves da Silva
São Paulo
2011
2
Agradecimentos
Um trabalho de tanto tempo nunca se constrói sozinho, sempre contamos
com companheiros que nos ajudam a perseguir esse caminho, e, no meu caso,
foram mais que companheiros, amigos sem os quais jamais teria chegado até aqui.
Por isso, inicio esse agradecimento aos meus amigos e professores do
Departamento de Antropologia Social da USP, pela convivência, inspiração e ajuda,
fundamentais para meu desenvolvimento tanto profissional quanto pessoal.
Agradeço especialmente às professoras Lilia M. Schwarcz eque estiveram
presentes em minha banca de qualificação cujas leituras foram inspiradoras e
estimulantes, espero ter atingido, neste trabalho, um pouco das inúmeras questões
que me colocaram.
A Carla, Jayne e Helena, amigas inseparáveis, companheiras de trajetória,
que sempre estiveram do meu lado e nunca me deixaram desanimar.
Agradeço à Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo,
FAPESP, pela bolsa concedida.
A todos educadores que se dispuseram a participar desta pesquisa, em
especial a Elisabeth de Souza e a Antonio Carlos Malachias.
Aos meus pais, João e Sandra, pelo exemplo que sempre foram para mim,
por nunca me deixarem desistir, por nunca deixarem de acreditar em mim, mesmo
quando eu teimava em desacreditar. Nunca poderei agradecer por tudo que me
deram.
Aos meus sogros, Karin e Almério, pela paciência com que sempre me
trataram, e por toda atenção e ajuda que me deram.
Ao Carlos, meu companheiro, aquele que “aguentou” cada minuto deste
doutorado. Imagino o quanto devem ter sido infindáveis esses quatro anos e meio de
adiamentos, “abandonos”, distância e ansiedade. A fonte de esperança para aquela
a quem sempre faltou fé.
Ao Vagner, a melhor tradução do que é ser um orientador, você foi meu
amigo, meu professor, meu norte. Obrigado por ter me conduzido até aqui desde a
iniciação científica, por ter me apresentado esse mundo da cultura afro-brasileira e
despertado em mim o interesse pela antropologia.
Por fim, quero agradecer imensamente pela oportunidade de ter convivido
com uma das pessoas mais generosas que já conheci em minha vida, Rita Amaral,
que também me acompanhou desde a iniciação científica, incentivando, estimulando
orientando. E é a você, Rita, que dedico este trabalho.
3
Resumo
A Lei n° 10.639/2003 tornou obrigatório o ensino de História da África e Cultura Afro-
brasileira nos estabelecimentos escolares do país. A partir disso, as religiões afro-
brasileiras começaram a ser abordadas em sala de aula, como parte de um conjunto
de práticas e valores de origem africana importante no desenvolvimento da
população negra no Brasil. Este trabalho teve como objetivo estudar o modo como
essas manifestações religiosas aparecem nos materiais didáticos, cursos de
formação continuada de professores e, por vezes, na própria sala de aula a partir
dessa Lei, assim como procurou identificar as tensões e negociações verificadas
quando essas religiões saem de seus espaços de manifestação próprios, os
terreiros, e adentram a escola. As relações entre a visão de mundo religiosa e do
senso comum (presente nos discursos e práticas de professores e alunos
praticantes de diferentes denominações religiosas: como o catolicismo,
pentecostalismo etc.) com o ensino e aprendizado de valores vistos
simultaneamente como “religiosos” e “símbolos culturais étnicos” (a serem
mobilizados na constituição de identidades diferenciais) constituem, portanto, o foco
desta pesquisa.
Palavras-chave: cultura e religiões afro-brasileiras; educação; símbolos étnicos;
identidade cultural
Abstract
Law n. 10.639/2003 made the teaching of African and Afro-Brazilian Culture
obligatory in Brazilian schools. In this way, the African-Brazilian religions started to
be addressed in the classrooms as part of a set of practices and values of African
origin important in the historical development of the Brazilian black population. This
study aimed at analyzing how these religious expressions are approached in school
text books, in continuing education courses for teachers and, in some cases, in the
class room since the approval of this Law, as well as tried to identify the conflicts and
the negotiations occurring when these religions leave their own traditional places, the
“terreiros”, and move into the schools. The relations between the religious
environment and the common sense (present in the discourses and the practices of
teachers and students who are followers of different religions as Catholics,
Pentecostals and others) and the teaching and learning of values seen at the same
time as “religious” and “ethnical cultural symbols” (to be mobilized in the building up
of differential identities), are, therefore the focus of this research.
Key words: Afro-Brazilian culture and religions; education; ethnical symbols; cultural
identity.
4
Sumário
Introdução
7
Capítulo I
17
Modos de “ser”: religião, cultura e identidade
1.1 Diversidade, Igualdade e Diferença
17
1.2 Candomblé e Umbanda: caminhos para a construção de uma cultura afro-
brasileira
29
Capítulo II
42
Modos de “Fazer”: a Lei 10.639 e o ensino de história africana e afro-brasileira
2.1 Caminhos que levariam à Lei 10.639
42
2.2 Agora que é Lei, como implementar?
57
2.2.1 Ações no nível Federal
66
2.2.2 Ações no Plano Estadual – São Paulo
70
2.2.3 Ações no plano Municipal – São Paulo
75
2.3 Material Didático e Paradidático: proposta sobre como fazer
90
2.4 Onde entra as religiões afro-brasileiras nesse fazer?
112
Capítulo III
145
Modos de “Interagir”: cursos de formação de professores e as práticas
escolares
3.1 Mergulhando no Contexto
146
3.1.1 Cursos em contexto universitário
162
3.1.2 Cursos oferecidos por ONG
166
3.1.3 Cursos oferecidos pelo sistema público de ensino
169
3.2 Os orixás nas salas de aula
179
Considerações Finais
204
Referências
208
5
Índice de Figuras
Figura 1
104
Figura 2
106
Figura 3
131
Figura 4
131
Figura 5
114
Figura 6
115
Figura 7
118
Figura 8
119
Figura 9
119
Figura 10
120
Figura 11
120
Figura 12
122
Figura 13
122
Figura 14
123
Figura 15
125
Figura 16
126
Figura 17
127
Figura 18
127
Figura 19
129
Figura 20
129
Figura 21
129
Figura 22
130
Figura 23
130
Figura 24
130
Figura 25
130
Figura 26
132
Figura 27
132
Figura 28
133
Figura 29
134
Figura 30
139
Figura 31
140
Figura 32
140
Figura 33
140
Figura 34
142
Figura 35
190
Figura 36
190
Figura 37
191
Figura 38
191
Figura 39
192
Figura 40
193
Figura 41
194
Figura 42
194
Figura 43
195
Figura 44
195
Figura 45
196
Figura 46
196
Figura 47
198
Figura 48
199
Figura 49
199
Figura 50
200
Figura 51
200
6
Introdução
No início do século XXI, mais precisamente em janeiro de 2003, o então
presidente da República Luis Inácio Lula da Silva promulgou a Lei 10.639, alterando
a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB) e explicitando1 a
obrigatoriedade do ensino de história da África e da cultura afro-brasileira como
temas transversais do currículo das escolas de ensino básico, públicas ou privadas.
A promulgação dessa Lei representou, por um lado, uma vitória dos
movimentos sociais negros, que, desde a década de 1970, vêm se organizando e
reivindicando a adoção de políticas públicas de afirmação, em especial na área da
educação. Por outro lado, indicou uma mudança substancial do posicionamento do
Estado brasileiro em relação ao racismo, explicitando que entraríamos num novo
momento político no qual dois modelos de nação entrariam em debate no plano. O
primeiro, a partir de um discurso mais universalista, assume a existência do racismo
na sociedade brasileira, mas opta por saídas não racialistas, colocando-se, assim,
em oposição à adoção de políticas públicas que levem em consideração o termo
raça. O segundo, articulado pelos movimentos sociais negros e intelectuais, propõe
o combate ao racismo a partir de uma ressignificação do termo raça, desassociando
este de seu passado biológico, e o aproximando de seu caráter político. Nesse
contexto, o termo negro também é ressignificado, passando a abarcar as pessoas
que se autoclassificam como pretos e pardos, dividindo a população da nação em
dois grupos negros e não negros. Esse modelo, defendido pelos movimentos sociais
negros, passa a pautar a luta contra a desigualdade e o racismo a partir de um
discurso de valorização da diferença para a igualdade de condições de acesso a
bens e direitos. As políticas públicas de ação afirmativa são, nesse cenário,
instrumentos privilegiados de luta.
1 A Constituição de 1988 já determinava o ensino de história dos diversos povos que
contribuíram para a formação da Nação, a LDB de 1996 também definiu isso, assim como os
Parâmetros Curriculares Nacionais de 1998. Nesse sentido a lei vem para explicitar aquilo
que já estava determinado nas leis e orientações anteriores.
7
A promulgação da Lei 10.639 é mais um capítulo da disputa entre esses dois
modelos, assim como as políticas de cotas para o acesso à universidade pública.
Para entender o cenário de articulação e gestação dessa política pública, optamos
por retroceder na história até a década de 1970.
Os anos de 1970 compõem um período de ebulição no processo de
rediscussão de uma identidade negra. Inspirados nos movimentos de
descolonização de países africanos, na renascença cultural caribenha, na luta contra
o apartheid na África do Sul e nos movimentos de luta pelos direitos civis nos EUA
começa a se articular, na sociedade civil, um movimento político de conscientização
da identidade negra que culminará na fundação do MNU (Movimento Negro
Unificado) no ano de 1978.
Diferente de outros movimentos sociais negros que até então existiram em
nível nacional, como a Frente Negra Brasileira (FNB) e o Teatro Experimental do
Negro (TEN), os quadros do MNU eram formados, em sua maioria, por negros
egressos do ensino superior, mas que, mesmo assim, continuavam enfrentando
barreiras discriminatórias no processo de inserção no mercado de trabalho e
ascensão social.
Até então, tanto a FNB quanto o TEN possuíam um discurso de combate ao
racismo pautado na busca pela inclusão do negro na sociedade nacional como
brasileiros, a partir, principalmente, do acesso à educação. O discurso do MNU
caminhou para a tomada de consciência da negritude e, a partir da autoafirmação,
para a conquista da igualdade de direitos como afro-brasileiros.
Essa é uma mudança significativa em termos de posicionamento político e
marca o processo de gestação desse segundo projeto de nação que vem repercutir,
para além dos meios da militância nos dias de hoje.
Os anos 1960 e 1970, também são um período de efervescência cultural no
qual a identidade nacional será novamente questionada e reconstruída. Nesse
cenário, os símbolos da herança cultural africana também foram mobilizados, seja
para a reafirmação da ideia de miscigenação, seja para a valorização de uma
conscientização de negritude, ou de identidade regional2. Exemplos disso se
encontram na Música Popular Brasileira, com o Afro-samba de Vinícius e Baden
Powell, o Tropicalismo3 ou as obras de Clara Nunes4 e Martinho da Vila; na literatura
com os livros de Jorge Amado, Tenda dos Milagres (1969) e Dona Flor e Seus dois
Maridos (1966); nos blocos de carnaval de Salvador ( Ilê Aiyê, Araketu e Filhos de
2 Ver: Santos, 2005
3 Ver: Amaral e Silva, 2006
4 Ver: Bakke, 2007
8
Gandhi), no cinema com o filme Macunaíma5 (1969) e O amuleto de Ogum6 (1974),
entre outros.
Com o processo de distensão política e da redemocratização do país, já na
década de 1980, os movimentos sociais ganharam, através de sua mobilização,
mais espaço, e o movimento negro acabou conseguindo se fazer representar na
Constituição de 1988.
Mais tarde, em 1995, por ocasião das comemorações dos 300 anos da morte
de Zumbi dos Palmares, os movimentos sociais negros realizaram uma marcha – a
Marcha dos 300 anos de Zumbi dos Palmares – até Brasília, onde entregaram uma
reivindicação por políticas públicas de ações afirmativas ao então presidente da
república, Fernando Henrique Cardoso. Nessa comemoração, o presidente fez um
discurso no qual, pela primeira vez, o Estado brasileiro reconhecia oficialmente a
existência do racismo, mudando o posicionamento até então adotado, sem grandes
alterações, desde a década de 1930. No ano seguinte, a luta dos movimentos
sociais negros também aparece na promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação (LDB) que reafirma a orientação de que os currículos escolares deveriam
tratar da participação dos negros e indígenas na formação da sociedade brasileira.
Contudo, foi apenas após a participação do Brasil na Conferência de Durban,
em 2001, da qual resultou a assinatura de um documento no qual o governo
brasileiro assumia a responsabilidade por adotar políticas públicas de ação
afirmativa, que o debate ganhou força na opinião pública.
Em decorrência deste posicionamento, o debate público a respeito do
racismo e de seu combate foi fomentado e disto resultou a adoção de políticas de
cotas em Universidade Federais a partir de 20037, a promulgação da Lei 10.639, a
publicação das Diretrizes Curriculares Nacionais para o ensino das relações étnico-
raciais positivas de 2004, a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial na Câmara
Federal em 9 de setembro de 20098 e a elaboração do Plano Nacional de
Implantação da Lei 10.639, também deste ano.
Esta tese é resultante de uma pesquisa realizada entre 2007 e 2011, período
de mobilização para a efetivação da Lei 10.639. Debruçamo-nos sobre o ensino de
História e Cultura Africana e Afro-brasileira, buscando compreender a mobilização
das religiões afro-brasileiras, em especial o candomblé e a umbanda, como
5 Direção: Joaquim Pedro de Andrade.
6 Direção: Nelson Pereira do Santos.
7 Fonte: Carvalho, 2006
8 Vale a pena ressaltar que o texto aprovado na câmara dos deputados federais, no que diz
respeito à educação, reafirma a inclusão de disciplinas que estudem história da África e do
negro no Brasil no currículo escolar obrigatório.
9
símbolos de uma herança africana importantes para o processo de resistência
cultural dos afro-brasileiros e, portanto, elementos importantes para a construção de
sua identidade.
A partir de um tempo e local específico, a promulgação da Lei 10.639 e sua
aplicação, constrói-se uma análise a respeito do uso das religiões afro-brasileiras
como símbolo cultural e marcador de diferença, num momento em que as
representações coletivas sobre as relações raciais e sobre a própria nação brasileira
estão colocadas em questão.
No mundo atual, cada vez mais a diferença cultural ocupa lugar central nas
construções identitárias que visam à aquisição de direitos políticos, econômicos e
sociais. As religiões afro-brasileiras, em especial o candomblé, nesse universo,
apresentam-se como ícones poderosos, com capacidade de mobilizar laços de
continuidade entre África e Brasil, ocupando, nesse último, o papel de símbolo de
resistência e marca da diferença.
Essa força simbólica das religiões afro-brasileiras pode ser entendida dentro
do próprio processo de formação da antropologia como um campo do saber
acadêmico. Conforme Vagner Gonçalves da Silva (2002), o negro, em seus
aspectos raciais e religiosos, foi construído como “objeto de pesquisa” e formação
de uma “ciência do Brasil”, a partir do final do século XIX, nas obras de Sílvio
Romero, Nina Rodrigues, entre outros. Mais tarde, com Artur Ramos os aspectos
biologizantes e o paradigma racial da análise de Nina Rodrigues foram substituídos
pela concepção de cultura, e a religião se apresentou como via de acesso a essa
cultura negra. Nesse período, Ramos defendeu a introdução do negro e de sua
religiosidade como parte do currículo oficial da disciplina de antropologia na
universidade brasileira (Silva, 2002:89).
Foi com Gilberto Freyre que o estudo sobre as relações raciais entre negros
e brancos se tornou uma área de pesquisa autônoma, distanciando-se assim das
questões culturais e religiosas que acabaram por serem classificadas na chave da
etnografia, enquanto a primeira tratava da conversão de análises históricas,
sociológicas e antropológicas. Mas, apesar desse processo de separação, em
alguns trabalhos, como no de Donald Pierson ou no de René Ribeiro, raça e religião
aparecem novamente juntas explicitando vínculos entre o campo etnográfico das
religiões afro-brasileiras e as análises das relações raciais.
Vale ressaltar ainda aqui, que a construção dessas religiões como objeto de
análise etnográfica muitas vezes reforçou um olhar que valorizava muito mais
entender “as partes indissolúveis da África no Brasil” do que as “formas com que a
África se dissolveu no Brasil” (Silva, 2002:95). Esse tipo de valorização das
10
continuidades da África no Brasil pode ser encontrado tanto em Nina Rodrigues,
passando por Herskovits, e também em Roger Bastide, guardando-se, é claro, as
diferenças de concepção de raça e cultura que há entre as abordagens desses
autores. Fato é que, como apontam autores como Beatriz Góis Dantas (1988), esse
olhar valorizou um modelo específico de culto religioso, o nagô9, e teve
repercussões no campo religioso, como as disputas de legitimidade entre as casas
de culto que se afirmavam ressaltando a “pureza” de suas práticas e a sua
aproximação com a África, valendo-se muitas vezes das próprias pesquisas
antropológicas e a aproximação com esses pesquisadores.
Essa leitura das religiões afro-brasileiras, em especial do modelo nagô,
permite sua construção como símbolos da herança africana no Brasil. Indo além,
nos anos de 1980, com uma mudança de interpretação do papel da religião nos
movimentos sociais politicamente alinhados à esquerda10, observa-se a
aproximação entre de líderes religiosos do candomblé e representantes dos
movimentos sociais negros que “passam a tentar cooptar o candomblé como
elemento e afirmação da identidade negra, compreendido agora como símbolo de
resistência, associado a outros, como os quilombos” (Amaral e Silva, 1996:207)
O recorte religioso para a análise da Lei 10.639 possibilita a reflexão sobre o
momento atual, no qual raça e cultura de alguma forma aparecem novamente juntas
para a construção de uma identidade e, a partir dela, o acesso a direitos, a luz do
contexto de construção do negro e da religiosidade negra com o objeto de pesquisa
da própria antropologia brasileira.
O projeto de pesquisa previa o levantamento de dados para análise a partir
de três tipos de fonte:
a. Material didático e paradidático produzido tanto no âmbito dos três níveis
governamentais – federal, estadual e municipal – que desse sustentação
à implantação do ensino de História da África e Cultura Afro-brasileira na
região metropolitana da cidade e São Paulo11;
b. Observação participante dos cursos de formação e formação continuada
9 Vale ressaltar aqui que ioruba é utilizado como sinônimo de nagô quando se trata das
nações do candomblé.
10 Anteriormente, nos ano 1960 e 1970, movimentos sociais alinhados à esquerda, de cunho
marxista, como os movimentos negros, olhavam a religião como alienação e entrave para o
processo de transformação social.
11 Cabe reforçar aqui que não havia condições de empreender uma análise com um recorte
de delimitação nacional, portanto decidiu-se pelo recorte municipal, e nesse sentido, as
referencias às ações de nível federal e estadual são citadas na medida em que tocam a
realidade municipal.
11
voltados para professores, tanto organizados pelo Estado, quanto pelas
organizações da sociedade civil como ONG (Organizações Não
Governamentais), Sindicatos, Entidades ligadas aos movimentos sociais
negros, etc.;
c. Realização de observação participante nas escolas municipais e
estaduais de ensino fundamental e médio a fim de fechar o ciclo da
implantação da Lei e ter uma visão do processo de construção do
currículo escolar desde sua idealização, a partir da elaboração dos
materiais didáticos e da formação de professores para a aplicação da Lei,
até a sala de aula, local onde o ensino se concretiza.
Esse tipo de recorte, a priori, permitira acompanhar a construção do currículo
sobre ensino de história da África e cultura afro-brasileira, identificar o momento e o
contexto de utilização das religiões afro-brasileiras como símbolos de uma
identidade negra suis generis, e encontrar as tensões advindas disso, ou seja, tantos
os conflitos que surgem entre as escolhas religiosas individuais de cada um,
professores, alunos e seus pais, e o ensino, ainda que laico e não proselitista, de
elementos religiosos como símbolos culturais; como também a tensão entre as
representações de um “Brasil Mestiço” ou de um “Brasil Dividido”, ambas passíveis
de serem construídas a partir da mobilização dos mesmos símbolos culturais, entre
eles a religião, dependendo da ênfase que é dada aos elementos de negociação ou
de separação que eles possuem ao mesmo tempo.
Ao longo do desenvolvimento da pesquisa, foram surgindo vários obstáculos
para a concretização desse projeto inicial. A pesquisa de campo, então, teve que
passar por um projeto de reformulação provocada pelo fato de não haver um plano
estruturado, nem institucionalizado de implantação da Lei e de suas diretrizes.
Ir às escolas, muitas vezes nos mostrava que muitos professores não
conheciam a Lei, ou apenas “haviam ouvido falar dela” 12, outras que até era
possível encontrar estabelecimentos de ensino com a preocupação de debater a
questão das relações étnico-raciais, contudo os obstáculos para a efetivação do
debate eram grandes, e a mobilização para superá-los, pouca.
Acompanhar as atividades em sala de aula se mostrou um caminho pouco
viável, pois não se sabia quando os professores iriam abordar a temática de história
12 Vale ressaltar aqui que ao longo da pesquisa foi diminuindo sensivelmente as vezes em
que os professores demonstravam desconhecer a lei. Nos dois últimos anos de pesquisa, já
não encontrávamos nenhum que afirmava desconhecê-la, mas as dificuldades para incluí-la
em sala de aula persistiram.
12
da África e cultura afro-brasileira, uma vez que esta não constava no planejamento.
Por outro lado, a participação nos cursos de formação continuada de professores e o
contato maior com esses indicavam que, muitas vezes, era uma situação em sala de
aula – uma atitude expressa de racismo por parte de algum aluno – que provocava a
abordagem das relações étnico-raciais, outras vezes, era a participação do professor
nesses cursos que motivava a elaboração de alguma atividade a ser realizada em
alguma semana temática na escola, como evento comemorativo da cultura popular
ou mesmo, a semana da consciência negra, em novembro.
Não foi possível observar as abordagens improvisadas, ou motivadas por
eventos ocorridos em sala de aula, pois nenhum estabelecimento de ensino nos
permitiria observar todas as aulas de uma determinada turma à espera de um ato
racista que provocasse a discussão, assim, esses casos só foram apreendidos por
meio de relatos de professores. No entanto, as salas de aulas de cursos de
formação e os congressos, seminários, e demais eventos, mostram-se espaços
privilegiados de observação, nos quais era possível acompanhar a construção de
propostas curriculares e de conteúdos a serem abordados, assim como captar as
dificuldades que os professores tinham em trabalhar com as temáticas, os materiais
didáticos e fontes de informação a que recorriam, assim como descobrir alguns
eventos ocorridos em classe que pudessem ser observados.
Em todos os espaços circulados, em maior ou em menor grau, encontramos
certa resistência por parte dos professores da rede em relação à pesquisa. Os
posicionamentos sempre se revelavam defensivos, pois muitas vezes eu era vista
como uma espécie de “espiã” ou fiscal das ações de implantação da Lei. Em outros
momentos, me enxergavam como colega ou uma especialista, e, portanto, capaz de
oferecer formação para os professores daquele estabelecimento de ensino ou de
indicar material e formas de se trabalhar com a temática étnico-racial.
Em termos metodológicos, essas tensões tiveram impactos na captação dos
dados da pesquisa, não nos sendo foi possível circular por todos esses espaços,
alem de somente poucos atores se disponibilizaram a conceder entrevistas formais.
A negativa nunca era explícita, inicialmente diziam que sim, davam-me e.mails com
o contato, e depois nunca respondiam ao pedido. Alguns levaram-me nas escolas
para ver as atividades em momentos especiais, mostravam-me a atividade, mas se
esquivavam de falar sobre elas.
Mesmo formadores, ou pessoas ligadas à academia me concediam
entrevista, mas colocavam algum tipo de dificuldade para seu registro, havia pedidos
para que ela não fosse gravada, narravam-se atividades, mas sem identificar o local
onde elas haviam ocorrido, usando, por vezes o recurso de “agora não lembro o
13
nome da escola, mas me passa um e.mail que eu respondo” e nunca respondendo.
Nesse sentido, investiu-se em outros métodos de pesquisa, especialmente
na observação participante dos cursos de formação (fossem na academia, fossem
em ONGs, fossem em espaços da administração pública) das palestras13 e de
algumas práticas em escolas. A partir das reações da platéia, das questões que
eram levantadas em debates, dos discursos proferidos, da circulação desses
sujeitos nesses espaços, e principalmente nas conversas informais travadas nos
cafés, nos horários de intervalo, nas caronas concedidas, ou seja, nas interações
cotidianas é que atingimos grande parte das informações aqui apresentadas.
A informalidade neste campo foi o grande aliado que nos permitiu
estabelecer algum tipo de interação com esses sujeitos, pois, nesses momentos, eu
deixava de ser uma “espiã”, ou uma “avaliadora”, ou ainda uma “especialista” e
conseguia me transformar numa interlocutora e através desse diálogo ir me
inteirando desse universo.
Muitos dos meus interlocutores no campo solicitaram que não fossem
identificados, outros, não me fizeram esse pedido formal, mas apenas conversaram
comigo em situações informais, recusando-se a participar daquelas mais formais.
Portanto, recorremos ao uso de pseudônimos a fim de não identificar professor,
diretor, coordenador pedagógico ou escola frequentada, apenas citamos as
disciplinas que ministram e as regiões da cidade em que ficam as instituições na
medida em que essas informações fossem relevantes. No entanto, as pessoas que
concederam entrevista formal são identificadas, além daquelas que mesmo falando
apenas informalmente permitiram sua identificação. Esses casos envolvem mais
gestores, professores de cursos de formação e alguns professores e voluntários em
escolas.
Se a presença do antropólogo em campo nunca é neutra, no caso desta
pesquisa a interferência foi muito significativa, pois o fato de estar na escola alterou
o comportamento dos sujeitos, por exemplo, alguns professores incluíram aulas
sobre o tema depois de conversarem comigo, um diretor deu maior visibilidade à
atividade desenvolvida por uma classe para me dizer que a escola, como um todo,
estava implantando a Lei. Mais do que isso, muitas vezes esse professores
tentavam me transformar em fonte de informação, com perguntas sobre quais
conteúdos abordar, com e quando.
O problema da falta de institucionalização da implantação da Lei 10.639
também acarretou em outra reformulação do projeto inicial. Se antes, prevíamos
13 Fez-se uso da prática de gravar as falas dadas em palestras e seminários públicos para
uso como material da análise.
14
circunscrever a observação ao município de São Paulo, devido à falta de um projeto
claro de formação continuada por parte do governo municipal, e do governo estadual
entre 2007 e 200914, expandimos o campo ao município de Várzea Paulista, no qual
encontramos um curso oficial oferecido pela prefeitura.
Nesse sentido, as fontes de dados desta pesquisa se constituíram de:
a) Material Didático e paradidático produzido, tanto pelo governo em seus três
níveis, quanto pela iniciativa privada, para a implementação da Lei 10.639;
b) Observação de cursos de formação e formação continuada de professores
oferecidos tanto pelas secretarias de educação, quanto por entidades
privadas e organizações não governamentais;
c) Observação de Congressos, Seminários, Encontros e demais eventos cujo
intuito era discutir a Lei 10.639, ou o Ensino para as relações étnico-raciais;
d) Observação de atividades realizadas em escolas como semanas de cultura,
dia da consciência negra etc;
e) Levantamento e análise de documentos, projetos e avaliações produzidos
pelo Ministério da Educação (MEC), ou pela Secretaria de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) a respeito da educação das
relações étnico-raciais.
A tese está dividida em três capítulos. Em “Modos de Ser: religião, cultura e
identidade”, procura-se discutir os conceitos de diferença, desigualdade e igualdade,
como isso se articula com o multiculturalismo e as interpretações pós-modernas de
identidade, visando compreender seus impactos na educação, principalmente a
partir do momento em que a identidade cultural se torna elemento central na
articulação do movimento político em busca de acesso a direitos. Num segundo
momento, mostraremos como as religiões afro-brasileiras, em especial o candomblé,
assumem papel importante na construção do afro-brasileiro.
Já em “Modos de fazer: a Lei 10.639 e o ensino de história africana e afro-
brasileira”, exploraremos a construção de um saber afro-brasileiro para o ensino de
história e cultura africana e afro-brasileira. Quais são os materiais didáticos? Quem
os produz? Quais são as fontes de informação e os conceitos que estão por trás
dessas propostas pedagógicas?
14 Em 2010 foram pensados e organizados cursos de formação pela Secretaria Municipal de
Educação de São Paulo e pelo Centro Paula Souza, responsável pelas Escolas Técnicas
Estaduais. Apenas em 2011 esses cursos se efetivaram como será visto mais adiante em
detalhes.
15
Por fim, no último capítulo, “Modos de interagir: cursos de formação de
professores e as práticas escolares” apresentaremos as práticas em sala de aula,
seja nos cursos de formação de professores, seja nas escolas de ensino básico.,
como pensadores e articuladores da Lei e suas Diretrizes interagem com os
professores do ensino fundamental e médio e os conflitos advindos dessa
interação e da abordagem dos conteúdos sobre as religiões afro-brasileiras.
16
Capítulo I
Modos de “ser”: religião, cultura e identidade
1.1 Diversidade, Igualdade e Diferença
Nos últimos anos, tem-se observado um crescente uso político dos termos
diferença, diversidade e igualdade, principalmente em circunstâncias em que a
identidade é utilizada para acessar direitos. Muitas vezes, esses termos são usados
quase
como
sinônimos,
diferença
e
diversidade
são
frequentemente
intercambiáveis, e ambos são utilizados para produzir a igualdade entre os
diferentes.
Neste capítulo, buscaremos formular conceitualmente como esses termos
serão tratados neste trabalho e, numa segunda parte, entender como as religiões
afro-brasileiras foram mobilizadas em diferentes momentos para a construção de
diferenças, diversidades e, também, em certa medida, igualdades.
O dicionário da língua portuguesa Houaiss define diferença, diversidade e
igualdade, respectivamente, como:
s.f. 1 falta de semelhança, desigualdade <há d. entre os
desenhos>, < percebe-se uma leve d. na atenção que dá aos
filhos> antônimo de igualdade 2 alteração <d. de atitude na última
semana> antônimo de manutenção 3 fala de harmonia; divergência
<de opiniões> antônimo de concordância.
s.f. 1 qualidade do que é diferente, variado; variedade, antônimo de
uniformidade.
s.f. 1 fato de não apresentar diferença quantitativa <i. de salário>
antônimo de diferença 2 uniformidade; estabilidade <i. de pulso>
antônimo de inconstância.
As definições do dicionário nos ajudam a perceber porque muitas vezes
17
diferença e diversidade aparecem nos discursos de maneira intercambiável, ou
porque esses mesmos discursos “jogam” com a naturalização da oposição entre
“diferença”, como desigualdade, e “igualdade” para propor a construção de outra
forma de se produzir a última. Contudo, propomos voltar nossa atenção à
perspectiva dos estudos culturais e entender como estes articulam diversidade,
diferença e igualdade com o conceito de identidade.
Tomaz Tadeu da Silva em seu texto presente no livro Identidade e Diferença:
a perspectiva dos estudos culturais (2009) aponta que, nos últimos anos, questões
levantadas pelas discussões multiculturais e da diferença ganharam expressiva
importância na teoria educacional crítica e, mesmo na esfera pedagógica oficial,
onde ocupam o espaço de temas transversais e são reconhecidas como “legítimas
questões de conhecimento” (Silva, 2009:73).
O mesmo autor nos chama atenção para o fato de que essa discussão é feita
sem a elaboração de uma teoria da identidade e da diferença. Isso, em sua
argumentação, ocorre porque o multiculturalismo visto “apoia-se em um vago e
benevolente discurso à tolerância e ao respeito para com a diversidade e a
diferença” (Silva, 2009:73), limitando-se a explicitar a existência da diversidade, mas
sem realizar uma crítica política da identidade e da diferença.
O problema dessa abordagem, que se limita a reconhecer a necessidade de
se tolerar a diversidade, é que não explicita o jogo político e as disputas de poder
que estão por trás das construções identitárias e das diferenças. Trabalhar com o
multiculturalismo na pedagogia para o combate ao racismo só faz sentido e só
atingirá seus propósitos, se levarmos em conta que “Ver a identidade e a diferença
como uma questão de produção significa tratar as relações entre as diferentes
culturas não como uma questão de consenso, de dialogo ou comunicação, mas
como uma questão que envolve, fundamentalmente, relações de poder.” (Silva,
2009:96)
Silva afirma que a perspectiva da diversidade que vem sendo trabalhada, os
conceitos de identidade e diferença acabam se naturalizando, essencializando,
como dados da realidade “diante dos quais se deve tomar posição” (2009:73). E se
questiona se a adoção de uma atitude liberal diante da proposta de reconhecer e
celebrar a diferença e a diversidade são suficientes para a produção de uma
pedagogia crítica.
O autor parte, então, para a definição desses conceitos que gostaríamos de
recuperar em parte aqui.
Ao definir aquilo que é, em consequência, também anuncia aquilo que não é,
nesse sentido identidade e diferenças andam juntas. Contudo, como aponta Silva
18
(2009:76), na perspectiva em que são correntemente tratadas, a diferença ocupa
espaço da variável dependente, enquanto a identidade é tomada como referencial,
ou seja, aquilo que somos é visto como norma que serve de parâmetro para avaliar
o que não somos.
O autor propõe que olhemos para esses conceitos como variáveis
mutuamente determináveis, ou seja, que entendamos a diferenciação como um
processo a partir do qual tanto identidade quanto diferença são construídas.
Indo além, Silva, afirma que “além de serem interdependentes, identidade e
diferença partilham uma importante característica: elas são resultado de atos de
criação linguística” (2009:76). E ao dizer isso, nos chama atenção para o fato de
que, como criações linguísticas não são dados da natureza, fatos essenciais,
colocados na nossa frente, para serem vistos, reconhecidos, respeitados ou
tolerados. Identidade e diferença são ativamente produzidas nas relações sociais e
culturais.
Só que sua produção não se dá num ambiente de relações simétricas, suas
configurações são disputadas palmo a palmo por grupos sociais assimetricamente
situados que visam, através delas, atingir acesso privilegiado a bens e direitos.
Nessa disputa, muitas vezes, as representações identitárias hegemônicas se
colocam no lugar da norma, provocando uma hierarquização entre as diversas
identidades e diferenças. Não se pode esquecer, como aponta Silva (2009), que
normalizar é um processo de manifestação de poder no campo das identidades e
diferenças. Selecionar uma identidade “normal” significa elegê-la como parâmetro
positivo, a partir do qual, todas as outras estarão submetidas, geralmente de forma
negativa.
O processo de formação da identidade, e da diferença, oscila entre dois
polos, de um lado encontram-se forças que tendem a fixar e estabilizar a identidade,
e do outro, forças que tendem a desestabilizá-la.
Autores da teoria social, pós-estruturalista, como Babah (2007) e Hall (2006),
vêm buscando entender esses fenômenos que fixam e desestruturam a identidade
em diversas dimensões como a de Gênero, Étnico-raciais, Nacionais. Gostaríamos
de recuperar aqui a reflexão acerca das identidades nacionais e étnico-raciais.
A nação, como definiu Anderson, é uma comunidade política imaginada –
“imaginada porque mesmo os membros das mais minúsculas das nações jamais
conhecerão, encontrarão, ou sequer ouvirão falar da maioria de seus companheiros,
embora todos tenham em mente a imagem viva da comunhão entre eles” (2008:32).
As nações vão se diferenciar, então, pelo “estilo [em] que são imaginadas”
(Anderson, 2008:33). Essa imaginação da nação será sempre limitada porque as
19
fronteiras são finitas, e não há como uma nação abarcar toda a humanidade, a
nação é soberana porque foi pensada no contexto do iluminismo e da liberdade do
Estado Soberano, e ela é uma comunidade porque se pensa, em seu interior, “como
uma profunda camaradagem horizontal” (2008:34).
As identidades nacionais, nesse contexto, mobilizam mais aspectos
essencializantes do que destotalizantes da construção identitária. Na construção
dessas “comunidades imaginadas”, não raro, recorre-se a mitos fundadores para
produzir as ligações sentimentais afetivas que produzem a sensação de existir algo,
original e ancestral, que liga as pessoas e lhes dá sensação de pertença.
A língua é identificada por Anderson (2008) como um desses elementos, mas
a condição nacional também pode ser associada a outros como raça, cor de pele,
parentesco etc.
Raça, nos dizeres de Brah “atua como marcador aparentemente
inerradicável da diferença social” (2006:331). A experiência, para Brah (2006), não
reflete uma realidade pré-determinada, mas é uma construção social, um processo
de significação, é o lugar da formação do sujeito. O etnicismo define a experiência
dos grupos racializados pela diferença cultural e a coloca como instância privilegiada
de produção de significado a respeito da vida social.
No caso do Brasil, a ideia de raça é central para a construção da Nação. Não
é por acaso que o mito fundador de nossa nação é chamado de “Mito das três
raças”. Prevaleceu, entre nós, uma forma mestiça de imaginar a nação, como se
fôssemos resultantes biológica e culturalmente do encontro entre o português
colonizador, do negro africano escravizado e do, ora bom, ora mau “selvagem”,
indígena autóctone.
No campo das artes, os integrantes do movimento modernista, inspirados
pelo interesse do escritor suíço Blaise Cendrars, abandonariam o “puro
vanguardismo internacionalizante” e construiriam uma saída simbólica para a
questão da unidade nacional ao inventarem uma imagem do Brasil que incluísse
negros e indígenas. Assim, o Movimento Modernista ajudou a criar uma moda
naturista na alta sociedade paulistana que produziu um orgulho pela nossa
“excentricidade”, pelas “coisas brasileiras”. (Vianna, 1995)
No campo do pensamento social brasileiro, Gilberto Freyre não foi o primeiro,
nem o único a trabalhar com esse ideal de mestiçagem, no entanto, sua obra, em
especial Casa Grande e Senzala (1977) e Sobrados e Mucambos (1968), ficou
marcada como paradigmática da elaboração teórica desse ideal.
Antonio Sergio Guimarães sintetiza precisamente a abordagem de Freyre na
apresentação que faz do livro Tirando a máscara, organizado por ele e Lynn Huntley
20
(2000:21):
Para Freyre: (a) o negro foi um elemento constituinte e decisivo na
formação da civilização brasileira; (b) as relações entre brancos e
negros foram sempre íntimas, carregadas de afeições, ainda que
às vezes violentas e brutais; (c) nossa estrutura social, marcada
pelo paternalismo, ainda que tenha evoluído para um certo
aristocracismo político, permitiu a democratização das relações
raciais, justo ao contrário dos EUA, que evoluiu no sentido de uma
democracia política e de um aristocracismo racial. (2000:21)
A partir de Freyre, a mestiçagem se transforma no elemento que pacifica os
antagonismos nacionais; as singularidades de cada segmento que forma a
sociedade brasileira passam a conviver mediante o equilíbrio precário que nos
transforma em brasileiros, não em negros, brancos ou indígenas, pois misturados
seríamos um pouco de cada, e as diferenças deveriam ser procuradas em outras
esferas da vida social.
Pesquisas empreendidas por autores como Donald Pierson e Marvin Harris
entre os anos de 1940-60 reafirmaram a tese da democracia racial brasileira
afirmando que: “cor” e “aparência” (fenótipo) são mais importantes do que “raça”
(genótipo); que “cor” é de uma categoria nativa que se expressa através de um
continuo e é no interior desse contínuo, somado a outro de prestígio social, que se
organiza a polarização entre branco e negro; que embranquecimento está associado
à ideia de ascensão social e aculturação de negros e pardos; a discriminação racial,
quando existe, é uma manifestação individual e não coletiva, não se constituindo
assim em racismo; e que a variável classe seria mais significativa na produção de
discriminação do que raça (Guimarães e Huntley, 2000).
O castelo de areia da democracia racial brasileira foi logo questionado, nas
décadas de 1950-1960, quando pesquisas que procuravam entender a singularidade
brasileira, em busca de um antídoto universal contra o racismo, revelaram que ao
contrário, havia, sim, racismo no país, contudo ele possuía características diferentes
das então reconhecidas15.
Esse é o período de obras como as de Florestan Fernandes – Brancos e
Negros em São Paulo, em conjunto com Bastide (2008), e A Integração do negro na
sociedade de classes (2008), nas quais o autor tentou explicar o preconceito racial
como uma herança da ordem oligárquica escravocrata anterior, nos dizeres de
Guimarães, “Foi a partir da comparação entre as funções sociais de preconceito
racial, antes e depois da abolição que Florestan o explicou, no presente, como uma
15 Para maiores informações sobre o Projeto UNESCO ver Maio, 1999.
21
tentativa das oligarquias dominantes de preservarem os privilégios de uma ordem
social arcaica, baseada no prestígio de posições herdadas” (2005:83).
É dessa época também, o trabalho de Oracy Nogueira16 no qual o
preconceito racial brasileiro vai ser diferenciado do norte-americano por se
caracterizar como preconceito de “marca” e não de “origem”, ou seja, enquanto nos
EUA, o que valeria seria a regra one-drop rule, bastando uma gota de sangue negro
para ser considerado negro, no Brasil essa classificação variaria conforme maior ou
menor presença de traços fenotípicos atribuídos à raça negra, como a tonalidade da
pele, o tipo de cabelo, o formato do nariz.
Se, no plano intelectual, havia questionamento a respeito da noção de
brasilidade baseada numa suposta harmonia racial, não encontramos o mesmo no
plano do senso comum. O racismo brasileiro, quando não negado claramente, ao
menos é considerado “menos violento” que o norte-americano ou o sul-africano. Ou
seja, negação da existência do racismo, ou pelo menos a afirmação de que o Brasil
não seria um país tão discriminador quanto os EUA, ou a África do Sul, permanecia
forte no senso comum.
O senso comum, mais do que conclusões úteis a que qualquer um que
esteja em sã consciência pode chegar, é na verdade, segundo Geertz, “um corpo
organizado de pensamento deliberado” (2003:114), e este senso comum, e
especialmente o bom senso que deriva dele, não é aquilo que uma mente pode
apreender espontaneamente da experiência, desde que livre de artificialismo, mas
antes “aquilo que uma mente repleta de pressuposições conclui”(2003:127).
Não se pode ignorar a força que o senso comum possui de explicar os fatos
da vida em seu âmago, seu poder de construir verdades. Ele é outra instância
poderosíssima, como a ciência, de construção de verdades em nossa sociedade.
A saída simbólica para a inclusão dos negros e indígenas na nacionalidade
brasileira, elaborada pelo movimento modernista nos anos de 1930, permanece
ativa no senso comum da nação. O problema é que, essa saída, como bem aponta
Guimarães (2000), inclui negros e indígenas como marcos de brasilidade, mas não
como cidadãos.
No final da década de 1970, o Movimento Negro Unificado (MNU), com a
16 Nogueira, Oracy. “Atitude de alguns anunciantes de São Paulo em relação os empregados
de cor”. In: Sociologia. São Paulo, IV (1), 1942; Nogueira, Oracy. “Relações raciais no
município de Itapetininga”. In: Bastide, Roger e Fernandes, Florestan (orgs). Relações raciais
entre negros e brancos em São Paulo: ensaio sociológico sobre as origens, as
manifestações e os efeitos do preconceito de cor no município de São Paulo. Editora
Anhembi Limitada, 1995.
Esses conceitos de “preconceito de marca” e “preconceito de origem” foram aprofundados
mais tarde na obra Tanto preto quanto branco: estudos de relações raciais de 1985.
22
proposta de construir uma consciência negra, faz da contestação do “Mito da
Democracia Racial” uma de suas bandeiras.
O MNU não foi a primeira organização social negra de combate ao racismo e
inclusão do negro na sociedade brasileira. Antes dele podemos citar pelo menos
dois movimentos de âmbito nacional, a Frente Negra Brasileira (FNB), da década de
1930, e o Teatro Experimental do Negro (TEN), da década de 1940-50. Contudo,
esses movimentos não promoveram um processo de crítica à mestiçagem da
mesma ordem que o MNU fez nos anos 1970 e 1980.
Hofbauer (2006) aponta que a FNB construiu um discurso antirracista e
reivindicatório da plena integração do negro na sociedade brasileira afirmando a
brasilidade deste. O alvo eram os imigrantes estrangeiros que concorriam
diretamente com os negros, e muitas vezes em vantagem, pelos empregos.
A FNB via a si mesma como “(...) uma organização de autodefesa e de
autoajuda para um grupo social identificado como „raça negra‟” (Hofbauer,
2006:350). Porém, chama atenção que a FNB tinha uma proposta de ação
antidiscriminatória que não se mobilizava em torno de uma referência cultural negra
ou africana, tratava-se mais de um movimento que visava mudar a situação de
exclusão e marginalização do negro no mercado formal de trabalho. Por isso, como
aponta Santos (2005), a escolarização formal foi eleita por esse movimento como
uma espécie de “2ª abolição”, a que realmente permitiria sua ascensão social.
Hofbauer (2006) mostra que a construção da identidade negra elaborada
pelos frentenegrinos articulava os conceitos de raça e cultura de maneira
semelhante aos autores evolucionista do século XIX. Cultura era usada como
sinônimo de Civilização, algo desejável e possível de ser alcançado pela educação.
Ainda, como aponta Hofbauer (2006), os frentenegrinos admitiam a
existência de raças e uma hierarquização entre elas. Assumiam uma correlação
entre Raça e Cultura na qual raças inferiores corresponderiam a culturas mais
atrasada e vice-versa. A despeito disso, essa diferença do ponto de vista biológico
cultural não representava uma impossibilidade às raças inferiores de atingirem o
grau de civilização das superiores; pois a ideia de evolução também se fazia
presente, e essa, por meio do processo educativo formal, por exemplo, permitiria
que o negro atingisse o mesmo nível civilizatório que o branco, justificando por que o
acesso a escolarização podia ser entendido como uma 2ª abolição.
(...) A FNB apontava que em um processo de „aprendizado cultural‟
poderia elevar „a raça negra‟ ao nível das „raças adiantadas‟.
Manifestações como o samba, capoeira e as diferentes formas
religiosas de matriz africana não eram tidas como tradições
23
genuinamente negras, mas práticas a serem superadas com o
decorrer do tempo (Hofbauer, 2006:358)
A construção de uma identidade negra suis generis, baseada num passado
africano ou numa cultura negra não foi a saída proposta pela FNB. Visava-se a
“integralização absoluta completa do negro em toda vida brasileira – política, social,
religiosa, econômica, operária, militar, diplomática” (Santos, Arlindo Veiga Santos,
apud Hofbauer, 2006:355). E, nesse sentido, os frentenegrinos estavam
preocupados em “educar” os negros em relação às suas vestimentas, ao vocabulário
empregado, e a combater, denunciando como hábitos atrasados que deveriam ser
superados, as reuniões de samba, de capoeira e as expressões religiosas de matriz
africana – especificamente a umbanda em São Paulo, onde a FNB se formou e mais
atuava.
A escravidão foi reinterpretada pela FNB de forma a minimizar seus horrores.
Claramente se entendia que não havia o quê justificasse a sua existência no
passado recente da nação, mas o negro tinha, por seu lado, “passado por cima”
disso e desde o início atuou na construção do país. Palmares foi eleito o principal
símbolo dessa construção uma vez que a FNB enaltecia Zumbi e o Quilombo que
esse chefiou como o primeiro passo dado em direção à liberdade política do, então,
Brasil Colônia. E o dia 13 de maio era considerado pelos frentenegrinos como uma
vitória de toda nação brasileira, e não apenas do negro, já que a abolição da
escravidão representava o progresso da nação.
Percebe-se, assim, que o discurso da FNB se alinhava, perfeitamente, à
concepção mestiça de nação presente tanto na obra de Freyre, quanto no projeto
modernista de 1922. Não havia, para os frentenegrinos, motivos para a exclusão do
negro dessa sociedade e sua integração definitiva passava pela possibilidade de se
modernizar, ou ainda “civilizar-se”, através do acesso à educação escolar e
profissional formal. A FNB acabaria em 1937 com o advento do Estado Novo.
Em meados da década de 1940, o Teatro Experimental do Negro (TEN),
outro movimento social negro com atuação mais ampla no cenário nacional, surge
propondo posições diferenciadas daquelas adotadas pela FNB em relação à cultura
negra, na medida em que elegia como uma de suas bandeiras a construção de uma
identidade negra própria, que ressaltasse sua especificidade cultural e valorizasse
sua estética.
Idealizado, fundado e dirigido por Abdias do Nascimento, antigo integrante da
FNB, o TEN tinha como objetivo a valorização do negro através do teatro. Sua
proposta era promover a cidadania por meio da alfabetização do ator negro,
24
recrutado entre favelados, empregadas doméstica, operários e modestos
funcionários públicos. Os textos interpretados falavam do negro, sua cultura e
formas de vida, além disso, foi o TEN uma das primeiras organizações que
promoveu um concurso de beleza negra, valorizando uma estética até então
associada ao feio ou ao ruim.
A educação formal também era vista, pelo TEN, como uma das vias de
ascensão social do negro. Na coluna “Nosso Programa” da primeira edição do jornal
O Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro 17, Abdias do Nascimento
escreveu que era necessário “lutar para que, enquanto não for gratuito o ensino em
todos os graus, sejam admitidos estudantes negros, como pensionistas do Estado,
em todos os estabelecimentos particulares e oficiais de ensino secundário e superior