Na escola com os orixás: o ensino das religiões afro-brasileiras na aplicação da Lei 10.639 por Rachel Rua Baptista Bakke - Versão HTML
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do País, inclusive nos estabelecimentos militares” ( apud Santos, 2005:23).
O posicionamento do TEN, segundo Hanchard (2001), estaria exatamente no
local de passagem entre uma concepção de combate ao racismo a partir de um
discurso nacionalista, cujo foco estava muito voltado para a questão da inclusão no
mercado de trabalho, daí a defesa do negro como brasileiros em contraposição aos
trabalhadores brancos imigrantes; e uma concepção de combate ao racismo em que
a construção de uma consciência pautada na ideia de negritude que marcaria o
MNU nos anos 1980.
Formado por negros egressos do sistema educacional superior, e que,
mesmo assim, não atingiram a inserção no mercado de trabalho esperada, o MNU
abandona o discurso nacionalista e essencialmente voltado para a inserção no
mercado de trabalho. O combate ao racismo passa a articular um discurso cujo alvo
é a desconstrução do “Mito da Democracia Racial”.
Com o MNU, o movimento negro nacional, aproxima-se dos movimentos
políticos e culturais negros em outros países, em especial dos EUA, inserindo-se no
contexto daquilo que Gilroy (2001) chamou de Atlântico Negro. A Negritude, nesse
cenário, transforma-se na pedra angular para celebração do negro e construção com
a alteridade com o ocidente branco (Hanchard, 2001).
Vários foram os elementos que permitiram essa mudança de posicionamento
do movimento negro segundo Hanchard, a entrada dos negros na universidade, a
formação de uma nova esquerda, no cenário político brasileiro, que começa a
reconhecer a existência do racismo como forma de produção da desigualdade para
alem das questões de classe, a distensão política da ditadura que permitiria a
17 O Quilombo foi um jornal editado por Abdias do Nascimento entre os anos de 1948 e 1951.
Seu objetivo era divulgar as ideias do TEN para a opinião publica em geral. Para mais
informações ver Nascimento, 2004.
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organização desses movimentos e o Black Soul. Este, inclusive, seria na época um
dos vários fenômenos da diáspora africana que permitiriam aos afrodescendentes
de um determinado contexto nacional e cultural se apropriarem de algumas formas
simbólicas e materiais de outros contextos nacionais e culturais
Até os anos 70, as formas culturais negras que mais serviam para
construções coletivas de consciência racial eram aquelas que emergiam das escolas
de samba e dos cultos religiosos. A referência eram sempre a brasileira, pouco a
africana. A proliferação dos bailes afro soul em São Paulo e Rio de Janeiro, como
aponta Fry ( apund Hanchard, 2001:134) foi exemplar de uma nova forma de
produção de símbolos étnicos, de acordo com as experiências sociais mais amplas
que o contexto nacional.
É um movimento estético cultural de ressignificação
e
reinterpretação do lugar conferido ao negro na sociedade e na
cultura nacional e global e, ao mesmo tempo, um movimento
político que combate o racismo presente nas estruturas sociais e
nas relações cotidianas (Costa, 2006:134)
Dessas experiências que emergem das ações do MNU e dessa proposta de
construção da consciência negra baseada num combate sistemático da ideologia da
mestiçagem e da aproximação de experiências socioculturais do Atlântico Negro
começa a ser elaborada uma nova forma de interpretação da cultura e identidade
negra que subsidiará uma série de conquistas, no plano legal principalmente como
veremos mais adiante.
O corpo, como observa Costa, é central nesse processo de recuperação, é
na articulação do corpo negro com a ideia de africanidade que se constrói, ainda que
vagamente, a “cultura negra”. Exemplos desse processo são os salões étnicos, o
funk, o soul, o hip hop e os “blocos afros” de Salvador como o Ilê Ayê e o Ara Keto.
Cultura negra é uma denominação genérica para todo tipo de
manifestação cultural relacionada com as diferentes formas de
resistência da população negra contra o racismo. A ideia de
identidade negra, por sua vez, não diz respeito a uma forma de vida
específica ou a alguma referência estética particular. Trata-se de
uma alusão a um tipo de consciência política, qual seja, a assunção
pública do antirracismo, que pode assumir naturalmente formas
culturais muito diversas (2006:144)
O que se vê aqui é o florescimento de uma nova proposta de interpretação
da nação, a partir do questionamento do “Mito da Democracia Racial”, na qual a
mobilização identitária nos discursos políticos, em certa medida, afasta-se de uma
elaboração nacionalista, pautada numa forte ideia de origem e caminha em direção
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à articulação identitária mais variável, sem um núcleo fixo estável.
Não se entenda aqui que não haverá nessa proposta elementos
essencializadores, nem que esse processo é tranquilo, sem tensões. Ao contrário,
os processos identitários sempre carregam vetores essencializadores e vetores
destotalizantes, e no caso da cultura afro-brasileira o desafio de interpretar essas
forças é sempre muito instigante na medida em que os mesmos símbolos são
utilizados para essencializar ou para reformular.
O que queremos aqui é chamar a atenção para o fato de que essa nova
proposta étnica que começa a ser gestada com o MNU, mas que tem
desdobramentos ao longo dos anos de 1980, 1990 e primeira década do século XXI,
aproxima-se daquilo que Hall chama de “novas identidades”. Em oposição a formas
identitárias como a nacionalidade ou pertencimento rígido a determinado grupo
étnico que supõe identidades essencializadas, essas “novas etnicidades” se constrói
na articulação móvel das diferenças. Nas palavras de Costa: “É precisamente na
articulação dessas diferenças – todas elas móveis, cambiantes, construídas no
momento de sua manifestação discursiva – que o sujeito da resistência antirracista
pode se constituir” (2006:113).
O conceito de “novas etnicidades” de Hall nos remete novamente à
discussão inicial que elaboramos a respeito da diferença, e como ela se constrói no
jogo político identitário. A análise proposta por este autor parte da história dos
movimentos antirracistas do Reino Unido na década de 1960. Inicialmente, esses
movimentos cunharam o termo Black para representar uma experiência comum de
marginalização e das práticas racista dominantes, e a partir disto reivindicaram para
si o direito à produção de sua própria autorrepresentação. É a fase que o autor
classifica como “Campo das relações de representação”, em contraposição a um
segundo momento, quando essa resistência antirracista estabeleceu diálogos com
os estudos feministas, o pós-modernismo e o pós-estruturalismo.
Esses diálogos alteraram profundamente os movimentos antirracistas, que
segundo Hall, perderam a sua inocência e viram que o termo Black como uma
construção política e cultural “não pode ser fundada num conjunto de categorias
raciais fixas de natureza transcultural ou transcendental ou que encontre suporte na
natureza ” (Hall, 1996:443 apud Costa, 2006:113).
A consequência disso foi o reconhecimento do descentramento do sujeito e a
busca pela construção da identidade a partir do “jogo da différence”.
Trazendo isso para o contexto brasileiro, a contestação do discurso
nacionalista homogeneizante presente na mestiçagem a partir de outro que procura
demonstrar as relações existentes entre a formação da nacionalidade e questões
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como racismo e produção de desigualdades, fez com que, nas palavras de Costa,
“(...) a nação brasileira, monocultural em sua festejada mestiçagem, se
transformasse numa sociedade extremamente plural e diversa” (2006:133).
Vive-se atualmente no Brasil um embate entre propostas de interpretação da
nação. De um lado, um grupo que defende que a utilização do termo raça para
explicitar o fato de que esse termo é uma construção social que atua produzindo
hierarquias e desigualdades. Assim sendo, Costa demonstra que, para os estudos
raciais, se a polaridade branco/“não branco” estrutura o acesso às oportunidades
sociais, essa mesma polarização deveria ser assumida em termos de identidade
cultural e política por todos os “não brancos”. “Caberia, assim, a todos „não brancos‟,
no Brasil, absorver a cultura afro-brasileira e o legado do Atlântico Negro,
construindo assim, sobre essas bases, sua „verdadeira identidade racial‟”
(2006:2007).
Por outro lado, há um grupo que se coloca radicalmente contra essa
posição, defendendo que a adoção por parte do Estado de políticas públicas de
ação afirmativa pode provocar uma reengenharia racial na sociedade brasileira. É
como se estivéssemos construído “uma retórica cuja motivação maior se encontra
no desafio de reinventar ou de deixar que se reinvente „raça‟ no Brasil, acreditando-
se ser essa a melhor da luta contra o racismo” (Grin, 2005-2006: 41). Nesse
processo, a identidade está sendo instrumentalizada e a cultura reificada.
A educação talvez seja um dos espaços sociais onde esse embate se
apresenta de forma mais explícita. Talvez porque a adoção de políticas públicas de
ação afirmativa tenha ganhado maior expressão nos meios de comunicação de
massa com a adoção de cotas para a entrada na universidade pública, e isso tenha
causado um debate acalorado nessa primeira década do século XXI, talvez, porque,
como já vimos, o acesso à educação formal sempre foi uma reivindicação dos
movimentos sociais negros.
A Lei 10.639 é, sem dúvida, mais um elemento do campo educacional que
trás esse debate “à baila”. Entendemos que a análise do papel assumido pelas
religiões afro-brasileiras no processo de implantação desta Lei, assim como na
produção de material didático e paradidático, nos cursos de formação e formação
continuada de professores e nas práticas observadas em sala de aula nos permite
compreender melhor como a diversidade, a igualdade e a diferença estão atuando
no espaço escolar articulando esse confronto de representações de nação.
A pergunta que deve estar passando agora pela cabeça do leitor talvez seja
“mas por que mobilizar as religiões afro-brasileiras para entender o ensino de
história da África e cultura afro-brasileira no ensino básico com vista ao combate ao
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racismo?” procuraremos responder essa questão no próximo tópico deste capítulo.
1.2 Candomblé e Umbanda: caminhos para a construção de uma cultura afro-
brasileira
Tomando como paradigmática as trajetórias de consolidação e de
legitimação do candomblé e da umbanda, tanto como religiões quanto como objetos
de estudos das ciências sociais no Brasil, percebe-se que há um entrelaçamento
dessas trajetórias com as formulações a respeito da cultura negra, e da própria
cultura brasileira.
Nessa parte do texto, procuraremos, através da recuperação de alguns
pontos importantes levantados pelos estudos a respeito das religiões afro-
brasileiras, demonstrar o papel que essas ocupam na construção de uma percepção
de cultura afro-brasileira que, como veremos adiante, são mobilizadas, em diversos
momentos, pela aplicação da Lei 10.639.
A antropologia se estabeleceu no cenário acadêmico brasileiro através de
duas linhas de pesquisa: o estudo das populações indígenas, por um lado, e os
estudo afro-brasileiros do outro (Silva, 2002). Ambas as linhas de pesquisa
inaugurais desta ciência já nos dão as pistas de nossas duas alteridades por
excelência, o negro e o índio.
A tradição de estudos indígenas, pode-se dizer, começou com os naturalistas
estrangeiros e ganhou força com as expedições científicas do início do século XIX,
depois da vinda da corte portuguesa para os trópicos. Já a tradição afro-brasileira
começou mais tarde, já no final do século XIX, com os estudos do médico legista
maranhense Raimundo Nina Rodrigues.
Autor polêmico, e por vezes paradoxal, Nina Rodrigues é lembrado como um
dos fundadores da linha de pesquisa dos estudos religiosos afro-brasileiros, com a
publicação de quatro artigos intitulados como O Animismo fetichista dos negros
baianos, e publicados na Revista Brazileira, ao longo do ano de 1896.
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Esta obra de Nina Rodrigues foi considerada uma “etnografia detalhada e
verossímil da religião afro-brasileira, e seu autor, talvez o primeiro etnógrafo do
Brasil urbano” (Fry e Maggie, 2006). No entanto, por sua adesão às interpretações
raciais, que teoriza e defende a existência de diferenças ontológica e hierarquizantes
entre as raças formadoras da nação brasileira, e por sua ação política, como médico
legista e pesquisador, também ficou conhecido como um “autor maldito” (Schwarcz,
no prelo).
Sua produção se deu num momento em que a intelectualidade brasileira
entendia a ciência como uma espécie de “anjo tutelar da sociedade” (Corrêa, 2001),
e tinha como questão central entender o brasileiro como povo e o país como
nação18. Orientados pelos paradigmas do evolucionismo, os autores desta época,
trabalharam com o problema da nação em locais, até então não muitos usuais, como
na literatura, na política, ou ainda na religiosidade de grupos marginalizados da
sociedade brasileira. Dentro dessa perspectiva a raça era o conceito-chave para
todos, ainda que com ênfases diferentes, e ao qual todos os outros conceitos
estavam subordinados, como aponta Corrêa: “Antes de ser pensada em termos de
cultura, ou em termos econômicos, a nação foi pensada em termos de raça”
(2001:41).
O animismo fetichista dos negros baianos, cujo subtítulo, posteriormente
suprimido era Ensaios de etnografia religiosa e de psicologia criminal, foi definido
pelo autor como:
(...) uma simples contribuição de nossa parte ao vasto problema da
influência social exercida pelas raças negras no Brasil que há muito
tempo chamou e mantém nossa atenção (...) Não ocultamos o
pequeno valor destes estudos. Mas, por mais incompletos que
sejam, temos a convicção de que eles ajudarão, ainda que numa
frágil medida, a elucidação de graves questões sociais relativas ao
nosso destino como povo em vias de formação (Nina Rodrigues
apud Corrêa 2001:155)
Com seu texto sobre os rituais fetichistas dos negros baianos, Nina
Rodrigues inaugurou uma linha de pesquisa antropológica, uma forma de relatar
esse fenômeno religioso, marcada pela preocupação em explicitar uma minuciosa e
18 É importante ressaltar que esses autores estão atuando num contexto de
institucionalização de uma ciência e de legitimação de um campo de saber acadêmico. Os
estudos antropológicos iniciados nessa época não possuíam o mesmo significado que têm
hoje. Por exemplo, havia nos textos de Silvio Romero e de Nina Rodrigues uma
diferenciação no emprego dos termos etnologia e antropologia, enquanto o primeiro se
referia à definição cultural dos grupos humanos, o segundo tinha seu significado fortemente
ligado à biologia, e é com essa concepção de antropologia que Nina Rodrigues desenvolveu
seus trabalhos.
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severa documentação daquilo que foi observado em campo. A partir de Nina
Rodrigues essa religiosidade tornou-se passível de ser observada seriamente pela
ciência. (Silva, 2002).
Em O animismo fetichista dos negros baianos, Nina Rodrigues deu ao
candomblé um tratamento não exótico, diferenciando-se assim do que até então
havia sido escrito sobre esses cultos em jornais e revistas (Fry e Maggie apud Nina
Rodrigues). Indo além, nesta obra, o autor estabeleceu uma agenda de pesquisa e
questões que norteariam a área dos estudos afro-religiosos por anos, como: o
destaque da importância do ambiente urbano para a consolidação das casas de
culto; a distinção entre o modelo de culto nagô do modelo de culto banto e a suposta
pureza e superioridade do primeiro em relação ao segundo; as formas minuciosas
de descrição etnográfica desse fenômeno religioso e a importância da aproximação
entre terreiros e elites na busca de proteção desses espaços de cultos.
Nos anos de 1920, o médico psiquiatra Artur Ramos, trabalhando na
Faculdade de Medicina da Bahia, entra em contato com a obra etnográfica de Nina
Rodrigues que lhe desperta o interesse pelos estudos religiosos afro-brasileiros. Em
1935, Ramos reuniu os artigos de Nina Rodrigues publicados na Revista Brazileira e
edita O animismo fetichista dos negros baianos em forma de livro, retomando assim
os estudos deste autor.
Ramos se identificava como um pesquisador de uma fase “„pós-Nina
Rodrigues‟” (Silva, 2002:89), mas discípulo do grande mestre. Propunha promover
uma nova interpretação metodológica e a acrescentar dados etnográficos à obra
deixada pelo médico maranhense. Para isso, expandiu o campo analítico dos
estudos religiosos para além dos terreiros de Salvador, incluindo desde o catimbó do
interior do Nordeste às macumbas do sudeste. E no plano analítico, substituiu o
conceito de raça pelo de cultura como explicação do fenômeno afro-religioso,
permitindo que este deixasse de ser visto, quase que exclusivamente, como marca
de inferioridade intelectual e psíquica provocada pelo pertencimento racial.
Contudo, se por um lado critica a utilização do conceito raça, por outro,
Ramos destaca a detalhada etnografia empreendida por Nina Rodrigues e aponta
sua descrição dos cultos religiosos como “ponto de partida imprescindível ao
etnógrafo de nossos dias, interessado no problema da raça negra no Brasil” (Ramos
apud Silva, 2002:89).
Ao expandir sua análise para o sul do país, Ramos se apropria da distinção
feita por Nina Rodrigues entre candomblés de tradição sudanesa e banto19,
19 Vale ressaltar aqui que os termos sudaneses, nagôs e iorubas são equivalentes.
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reafirmando a superioridade do primeiro em relação ao segundo. Assim, os cultos
sudaneses de Salvador, mais organizados, ricos em seus rituais, hierarquia e
mitologia, seriam tomados como modelos, a partir dos quais se construiria uma
hierarquia analítica indo do maior grau de pureza ao menor, na sequência:
Candomblés Nagôs, Candomblés de Caboclo, Macumbas Cariocas e Paulista. Estas
últimas descritas como pobres em sua mitologia, com rituais muito simples e pouca
hierarquia, facilmente influenciadas pelas tradições jêje-nagô, pelo catolicismo e
cultos ameríndios (Silva, 1995).
Ramos deixa como legados algumas análises como a distinção entre os
cultos encontrados no norte e no sudeste do país; o entendimento da macumba e da
umbanda como uma modalidade de culto afro-religioso “degradado” e o uso de
conceitos como “aculturação” e assimilação” no lugar de raça para explicar essa
diferenças, mostrando a aproximação desse autor com o culturalismo norte-
americano. Mas talvez, sua maior herança tenha sido o empenho em tornar a
antropologia, e os estudos religiosos afro-brasileiros, um campo legítimo de atuação
acadêmica, e para isso destacou-se seu empenho para a publicação de obras nessa
área, sua atuação na Faculdade Nacional de Filosofia ocupando a cátedra de
antropologia e etnografia, e a criação, em 1941, da Sociedade Brasileira de
Antropologia e Etnologia.
Como aponta Silva (2002), em seu artigo a respeito da construção e
legitimação do campo de estudos afro-brasileiros, em paralelo às atividades de
Ramos e da Escola Nina Rodrigues20, Gilberto Freyre, em Recife, vinha buscando
definir outras linhagens para os estudos afro-brasileiros, que não aquela que
remonta a Nina Rodrigues. Para isso, contrapôs-se à Ramos na medida em que este
possuía uma formação médica e psiquiátrica, enquanto que ele, Freyre, tinha
graduação e pós-graduação na área de ciências sociais.
Na construção de sua linhagem, Freyre remonta a outros intelectuais, entre
eles, José Bonifácio, Silvio Romero, Alberto Torres, Roquette-Pinto, João Batista
Lacerda, René Ribeiro.
Não é justo dizer-se de Nina Rodrigues nem de Artur Ramos que
foram pioneiros ou fundadores dos modernos estudos brasileiros de
Antropologia Social, História Cultural e Sociologia [...] Têm outra
origem os estudos que situam o negro africano e seus
descendentes na vida e na cultura brasileira e no meio (ecologia)
americano, ou tropical-americano, separando sua condição de
20 A linhagem acadêmica advinda dos trabalhos de Ramos e seus discípulos ficou conhecida
como Escola Nina Rodrigues pela explícita ligação do primeiro com o médico maranhense.
Para maiores informações consultar Corrêa, 2001.
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inferioridade social – a de escravo – da sua condição de raça. Nem
fundaram aqueles mestre tais estudos com essa orientação nem os
associaram a estudos humanísticos, sem prejuízo para sua
autenticidade científica (Freyre, 1959:LXVIII apud Silva, 2002:91)
O embate entre Freyre e Ramos acaba por demarcar como aponta Silva
(2002) duas grandes linhagens nos estudos afro-brasileiros entre as décadas de
1940 e 1960. De um lado, a religião não seria o foco das atenções, apenas mais um
elemento para se entender as relações raciais e culturais no interior da sociedade
brasileira, de outro, a religião como centro de seu enfoque, mostrando como essa
seria importante para a compreensão da singularidade da cultura nacional. Vale
ressaltar que esse momento marca, definitivamente, a substituição da teoria racial
de Nina Rodrigues pelas explicações de cunho sociológico, inspiradas nos conceitos
de aculturação da escola culturalista norte-americana, a partir da qual as religiões
afro-brasileiras, principalmente o candomblé, a umbanda e a macumba, passam a
serem analisadas sob a ótica do sincretismo e da decadência.
O estudo das relações raciais entre negros e brancos se consolidou
como uma área quase que autônoma para a qual convergiam
enfoques sociológicos, antropológicos e históricos. Já os estudos
sobre a herança cultural religiosa africana no Brasil, nos quais o
candomblé e outras expressões ocuparam o papel central,
acabaram se consolidando como antropológicos ou etnográficos
(Silva, 2002:93)
Ainda na década de 30, essas duas vertentes dos estudos afro-brasileiros
foram responsáveis por organizar os dois primeiros Congressos Afro-brasileiros. O
primeiro em 1934, realizado em Recife, foi organizado por Gilberto Freyre, contou
com a participação de pesquisadores do grupo de pesquisa do Serviço de Higiene
Mental de Recife, em especial seu líder Ulysses Pernambucano de Mello, que foi
patrono do evento. O segundo ocorreu em 1937 na cidade de Salvador, e foi
organizado por Édison Carneiro21, contando ainda com a presença de intelectuais
como Aydano Couto Ferraz e Reginaldo Guimarães.
Para além da participação dos intelectuais, os dois eventos tiveram como
característica relevante a presença da população afro-brasileira, em especial de
personalidade importantes do mundo religioso afro-brasileiro, como a ialorixá Aninha
do Ilê Opô Afonjá e do babalaô Martiniano do Bonfim22.
21 Édison Carneiro, jornalista baiano, que enfrentou grandes dificuldades para se inserir no
meio acadêmico de então, dá continuidade aos estudos afro-religiosos, sendo inclusive
considerado discípulo de Artur Ramos.
22 Martiniano do Bonfim foi importante Babalaô no universo religioso afro-brasileiro, sua
legitimidade foi construída em cima de uma ideia fundamental neste universo religioso que é
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A despeito de suas diferenças, os dois congressos tiveram um objetivo em
comum, buscar legitimidade para o candomblé que ainda sofria grande perseguição
por parte da polícia. Essa legitimidade seria conseguida a partir da transformação
deste em religião, encontrando em sua manifestação traços legítimos de uma
herança africana. A difusão desta ideia modificava o status do candomblé,
transformando-o de seita fetichista em símbolo de uma herança cultural que
contribuía para a formação da nação.
(…) os dois eventos tiveram em comum a preocupação pela busca
da África, pela autenticidade, baseada na pureza da apresentação
dos ritos, e pela presença do popular, não só em termos de traços
culturais ou „raciais‟ do povo a serem dissecados mas também da
presença física de pessoas do povo entre os congressistas (…)No
bojo geral do movimento que ressalta e valoriza a herança africana
como importante fonte de identidade social e cultural do Brasil,
tornava-se mister não só exaltar o africano mas popularizar a
exaltação dessa herança(Dantas, 1988:193-194)
Se nos anos 30, como vimos no início deste capítulo, houve a construção de
uma nova representação de nação, com a valorização da mestiçagem biológica e
cultural do povo brasileiro e a exaltação de suas três matrizes: indígena, europeia e
africana; no plano religioso, sem sobra de dúvida, há o início do processo de uma
nova representação do candomblé que deixará de ser exclusivamente pensado
como feitiçaria e símbolo do atraso da nação, e ganhará certa legitimidade como
expressão genuína de nossa matriz africana23.
Entender o processo pelo qual o candomblé deixa de ser considerado mera
feitiçaria e se transforma em herança nacional é o foco do livro Fetishes and
Monuments: Afro-Brazilian Art and Culture in the Twentieth Century de Roger Sansi
(2007), e aqui, procuraremos recuperar parte de sua argumentação. Diferente de
o retorno à África, como fonte de autoridade e conhecimento. Aos 14 anos, Bonfim viajou
com o pai para a Nigéria onde aprendeu ioruba e se tornou babalaô, anos depois, de volta ao
Brasil, ajudou Mãe Aninha a criar no Opô Afonjá o cargo de Obá de Xangô (olhos de Xangô).
Este cargo hierárquico não existia até então no Brasil, foi um conhecimento que Bonfim
trouxe da Nigéria e que aqui no Brasil possibilitou a criação de um cargo honorífico que
passou a ser dado àqueles que ajudam a proteger o Terreiro, construindo um importante elo
entre este e a elite social local e nacional. Importantes artistas, intelectuais e escritores
ocuparam ou ocupam este cargo, entre eles Pierre Verge, Jorge Amado, Gilberto Gil,
Carybé, Dorival Caymmi entre outros.
23 É interessante notar que isso não ocorre apenas com o candomblé, mas também com
outros símbolos da herança africana que vão lentamente se transformando em símbolos de
brasilidade como o samba e a capoeira. Contudo, por ter sua legitimidade apoiada na
manutenção de uma suposta “pureza africana”o candomblé nunca se torna efetivamente
brasileiro como o samba e a capoeira, no campo afro-religioso esse papel é ocupado pela
umbanda que adota para si o discurso da mestiçagem como será visto mais a frente. Para
maiores informações consultar Silva e Amaral (1996), Reis (1993), Vianna (1995) e Bakke
(2007).
34
outras obras que estão olhando para essa questão, Sansi não está preocupado em
entender essa transformação como uma “Invenção da tradição”, ou ainda, como um
instrumento de controle da população afrodescendente, mascarando o racismo
presente na sociedade brasileira. Seu ponto de vista não parte da oposição entre
autenticidade ou ficção, mas que essa transformação é fruto de um processo de
troca entre intelectuais, artistas e povo de santo que acaba objetificando o
candomblé e permitindo que esse se transforme em cultura afro-brasileira.
Encompassing these two discourses, we will see how Afro-Brazilian
culture is neither a repressed essence nor an invention, but the
outcome of a dialectical process of exchange between the leaders
of Candomblé and a cultural elite of writers, artists and
anthropologists in Bahia. In this dialectical process the cultural and
artistic values of national and international anthropologists,
intellectuals and artists have been synthesised with the religious
values of Candomblé, generating an unprecedented objectification:
„Afro- Brazilian culture‟. At the same time, the leaders of Candomblé
have recognised their own practice as „Culture‟, and have become
the subjects of their own objectification (Sansi, 2007:02)
No final dos anos 30, a temática afro-religiosa extrapola as fronteiras
brasileiras e chama atenção de intelectuais estrangeiros que vem para cá realizar
pesquisas na área, assim como para formar pesquisadores. Foram os casos de
Melville Herskovits e Roger Bastide e Pierre Verger, este último com atuação bem
menos institucional e de formação que os dois primeiros.
Herskovits veio para o Brasil na década de 1940, interessado em aprofundar
seus estudos a respeito da aculturação dos afro-americanos, estudo este que já o
havia levado ao Haiti, Daomé e Guiana Holandesa (Bastide, 1985). O objetivo de
Herskovits era entender o processo de adaptação dos afrodescendentes na cultura
Euro-americana nesse sentido, seu olhar ia para além do espaço sagrado, o terreiro,
e tentava entender a inserção deste no contexto social que o circundava. Devido a
isso também, o autor demonstrava mais interesse a respeito do sincretismo do que
seus antecessores, o que lhe permitiu ter uma percepção diferente da relação entre
o modelo banto e o modelo ioruba, como aponta Sansi.
As Herskovits said at that time, there was no anthropological or
historical argument to qualify the Yoruba as „more advanced‟, and
more proud of their traditions, or as with less tendency towards
„syncretism‟ and „miscegenation‟ than the so-called „Bantu‟
(Herskovits 1967, quoted in Capone 1998) (2007: 62)
Mas foram as análises de Bastide, e não as de Herskovits, que mais
influenciaram os estudos afro-brasileiros. Preocupado em entender, a partir de um
35
estudo de caso, quais as relações possíveis entre estrutura social e valores
religiosos no fenômeno social total (Bastide, 1985), o autor vai procurar, a partir dos
conceitos de classificação das sociedades primitivas (em especial o de consciência
coletiva e da distinção entre magia e religião, de Durkheim e Mauss; do de
sociologia profunda de Gurvitch; e do contínuo Folk-Urban pensado por Park),
explicar os fenômenos do sincretismo e da aculturação.
Para Bastide, o tráfico de escravos e as condições do sistema escravocrata
destruíram a estrutura social em que os valores religiosos desses povos africanos,
para cá trazidos, estavam baseados. Os candomblés seriam formas de
reconstituição desses valores anos nessa nova estrutura social, para ele, os
africanos e seus descendentes aqui no Brasil viviam em dois mundos distintos, um
africano, vivido dentro dos candomblés, outro brasileiro.
O que permitiria esses sujeitos viverem nesses dois mundos de maneira
harmoniosa e transitar por eles sem dificuldade seria o que Bastide chamou de
“princípio de corte”:
O negro respondeu a isso pelo que propusemos chamar de
„princípio de corte‟. Escapou à Lei do „marginalismo‟ edificando em
seu interior uma barreira quase intransponível entre os dois
mundos oposto em que nele habitavam, o que lhe permitiu dupla
fidelidade a valores frequentemente contraditórios (...) poder-se-ia
dizer que quando entra em seu sindicato, em seu grupo profissional
ou quando vai ao mercado, fecha a porta de seu pegi24 e, da
mesma forma, quando entra no pegi, deixa na entrada suas
vestimentas de brasileiro, seu mentalidade em contato com o
capitalismo por uma economia baseada em dinheiro e por uma
sociedade fundamentada em modelos ocidentais(...) o candomblé
graças a ele [o princípio de corte] pôde assim resistir vitoriosamente
aos assaltos da sociedade-ambiente que podiam se organizar
contra ele. (Bastide, 1985:238)
Como se vê, para Bastide, o candomblé não é só uma expressão da cultura
popular brasileira, mas uma marca da civilização africana por aqui que se mantém,
de certa maneira, autônoma, ou enquistada, na sociedade brasileira em geral.
Assim como Nina Rodrigues e Ramos, Bastide também enxerga maior
“pureza” nos cultos nagôs da Bahia do que nos modelos bantos do sudeste, a
explicação em seu caso para essa distinção, está nas transformações da
infraestrutura provocada pelo sistema capitalista nos centros urbanos como Rio de
Janeiro e São Paulo.
Nessas cidades, a inserção dos negros na estrutura de classe não permitiu o
24 Peji ou Pegi são espécies de altares feitos em homenagem aos orixás do candomblé e às
entidades da umbanda.
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mesmo enquistamento ocorrido com o candomblé nagô na sociedade baiana. Aqui,
Bastide recupera a distinção entre Magia, que seria uma ação individual, e Religião,
de caráter coletivo, para dizer que as pressões de um estilo de vida urbano, mais
individualista, exerceu influência sobre o sistema de valores religiosos africanos
esfacelando-os. Dessa desagregação surge inicialmente a macumba urbana e
posteriormente, organizada sob novas bases a umbanda. (Silva, 1995)
Vale a pena aqui recuperar, em linhas gerais, as interpretações a respeito da
macumba e da umbanda que vinham sendo construída por esses autores. Até o
momento, o foco de atenção dos pesquisadores eram os candomblés,
especialmente as casas tradicionais de culto nagô que se estruturavam em torno do
discurso da “pureza africana”, a macumba e, posteriormente, a umbanda entrevam
nesses estudos sob a chave da desagregação, do sincretismo, da aculturação,
sempre no polo negativo, seja por representar uma inferioridade racial dos povos
bantos, como em Nina Rodrigues, seja por ser fruto do processo de transformação
que o ambiente dos centros urbanos capitalista operavam sobre os valores religioso
afro-brasileiros, como em graus diferentes encontramos em Ramos e Bastide.
Talvez, nesse contexto, o autor que mais se distanciaria dessas
interpretações seria Édison Carneiro, como aponta Silva sua obra é reconhecida
“por apresentar interpretações sobre dados etnográficos em muitos aspectos
inovadoras” (Silva, 1995:61), principalmente em seu esforço em dar outra
interpretação aos cultos de origem Banto, “pouco etnografados até então, tentando
reabilitá-los de sua posição de inferioridade, embora nem sempre consiga atingir seu
objetivo”(Silva, 1995:62)
Foi a partir dos anos 50, sobretudo, que a umbanda ganhou maior relevância
no cenário intelectual brasileiro, os estudos desta época, de uma maneira geral,
interpretaram a umbanda como uma religião típica do ambiente urbano em
contraposição ao candomblé, mais tradicional.
Para Ortiz, como para Camargo, a umbanda reproduz em suas
práticas mágico-religiosas as contradições da sociedade urbana
brasileira, sendo uma alternativa encontrada pelos seus adeptos,
de atribuição de „sentido de mundo‟ frente à crescente
racionalização que representaria o estilo de vida nas cidades.
(Silva, 1995:66)
Indo além, Ortiz (1999) entende que em contraposição ao candomblé que
representava a conservação da memória coletiva africana, a umbanda representa
uma reinterpretação moderna das práticas afro-brasileiras. A África, para o
candomblé, continuava a ser o repositório do sagrado, da tradição; na umbanda
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