O Cérebro de Broca por Carl Sagan - Versão HTML
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O CÉREBRO DE BROCA
Carl Sagan
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O CÉREBRO DE BROCA
gradiva
CIÊNCIA ABERTA
A Aventura da Ciência
CARL SAGAN
Digitalização e tratamento do texto por Guilherme Jorge (esta obra foi digitalizada
para uso exclusivo por parte de deficientes visuais ao abrigo do artigo 80 do CDADC).
O CÉREBRO DE BROCA
A Aventura da Ciência
Revisão de Antônio MANUEL HAPTISTA professor catedrático da Academia Militar
gradiva
Título original inglês: Broca Brain
by Carl Sagan
Tradução de: Maria do Rosário Pedreira
Revisão de texto: Manuel Joaquim Vieira
Capa: Paulo Seabra
Fotocomposição, paginação e fotolitos: Textype – Artes Gráficas, Ltda.
Impressão e acabamento: Tipografia Guerra, Viseu
Reservados os direitos para Portugal por: Gradiva - Publicações, Ltda.
Rua de Almeida e Sousa, 21, r/c, esq. - Telefs.: 3 974067 / 8
1350 Lisboa 3ª edição: Setembro l97?
Depósito legal n." 115 396/97
Para Rachel e Samuel Sagan, meus pais, que me mostraram a alegria de conhecer o
mundo, com gratidão, admiração e amor.
Com o acordo do autor, foram suprimidos todos os capítulos da parte II da edição
original (caps. 10 a 16) e os capítulos 17, 19 e 21 da parte IV.
AGRADECIMENTOS
Em relação a alguns assuntos específicos, agradeço a um grande número de amigos,
correspondentes e colegas, incluindo Diane Ackerman, D. W. G. Arthur, James Bakalar,
Richard Berendzen, Norman Bloom, S. Chandrasekhar, Clark Chapman, Sidney Coleman,
Yves Coppens, Judy-Lynn Del Rey, Frank Drake, Stuart Edelstein, Paul Fox, D. Carleton
Gajdusek, Owen Gingerich, Thomas Gold, J. Richard Gott III, Steven J. Gould, Lester
Grinspoon, Stanislav Grof, J. U. Gunter, Robert Horvitz, James W. Kalat, B. Gentry Lee, Jack
Lewis, Marvin Minsky, David Morrison, Philip Morrison, Bruce Murray, Phileo Nash, Tobias
Owen, James Pollack, James Randi, E. E. Salpeter, Stuart Shapiro, Gunther Stent, O. B. Toon,
Joseph Veverka, E. A. Whitaker e A. Thomas Young.
Este livro deve muito, em todas as fases da sua produção, aos competentes e dedicados
esforços de Susan Lang, Carol Lane e, em particular, aos da minha assistente Shirley Arden.
Estou especialmente grato a Ann Druyan e Steven Soter pelo encorajamento
desinteressado e pelos comentários estimulantes sobre a maioria dos temas tratados neste
livro. Ann teve uma contribuição essencial na escolha do título e em muitos dos capítulos;
a minha dívida para com ela é muito grande.
INTRODUÇÃO
Vivemos numa época extraordinária. São tempos de mudanças espantosas na
organização social, no bem-estar econômico, nos preceitos éticos e morais, nas perspectivas
filosóficas e religiosas e no autoconhecimento humano, bem como na compreensão do vasto
universo em que estamos inseridos como um grão de areia num oceano cósmico. Desde que
existem seres humanos que nos pomos questões mais profundas e fundamentais, ou seja, as
que evocam surpresa e estimulam pelo menos a nossa consciência tremula e pouco experiente.
Essas questões são as que se prendem com a origem da consciência, a vida no nosso planeta, o
princípio da Terra, a formação do Sol, a possibilidade da existência de seres pensantes algures
para lá das profundezas do céu; e ainda - e esta é a maior pergunta de todas a que diz respeito
ao advento, à natureza e ao destino último do universo. Até há muito pouco tempo, na história
da humanidade, estes temas eram do pelouro exclusivo dos filósofos e dos poetas, dos
impostores e dos teólogos. As diferentes e mutuamente contraditórias respostas apresentadas
demonstraram, porém, que poucas das soluções propostas eram corretas.
Mas hoje, como resultado de um conhecimento dolorosamente extraído da natureza e
através de observações e experiências, estamos habilitados a dar, pelo menos, respostas
preliminares a muitas destas perguntas.
Há um grande número de temas que se entrelaçam na estrutura deste livro, aparecendo
no início, desaparecendo durante alguns capítulos e reaparecendo depois num contexto algo
diferente - incluindo as alegrias e as conseqüências sociais do empenho científico, a ciência
marginal ou popular, o não inteiramente diferente tema da doutrina religiosa, a exploração dos
planetas e a procura de uma vida extraterrestre; e também Albert Einstein, no centenário de
cujo nascimento este livro foi publicado.
A maioria dos capítulos podem ser lidos independentemente, mas a ordem por que as
idéias se sucedem foi cuidadosamente escolhida.
Como em alguns dos meus livros anteriores, não hesitei em introduzir algumas notas
de caráter social, político ou histórico, sempre que me pareceram apropriadas. A atenção
dedicada à ciência marginal pode parecer curiosa a alguns dos leitores.
Antigamente designavam-se os praticantes da ciência popular com a expressão bizarra
de "cultivadores de paradoxos", utilizada no século XIX para descrever todos quantos
inventavam elaboradas e não demonstradas explicações para coisas que a ciência
compreendeu perfeitamente em termos bem mais simples.
Hoje existem muitos cultivadores de paradoxos e a prática comum dos cientistas é
ignorá-los, esperando que desapareçam.
Pensei que poderia ser útil ou, pelo menos, interessante examinar as afirmações e as
presunções de alguns deles um pouco mais de perto e ligar ou contrastar as suas doutrinas
com outros sistemas de crenças, científicos e religiosos.
Tanto a ciência marginal como muitas das religiões são motivadas em parte por uma
séria preocupação em relação à natureza do universo e ao papel que nele desempenhamos; por
essa razão, merecem a nossa consideração e o nosso apreço.
Acrescente-se que muitas religiões envolvem possivelmente no seu cerne uma
tentativa de se enfrentarem com os mistérios profundos das histórias da vida individual, como
está descrito no último capítulo. Mas, quer na ciência marginal, quer na religião organizada,
há muito de incorreto e de perigoso. Enquanto os que praticam essas doutrinas desejam
freqüentemente a inexistência de críticas a que tenham de responder, a investigação céptica é
o meio, seja na ciência, seja na religião, pelo qual as introspecções profundas são libertadas
do mais cabal absurdo.
Espero que as minhas notas críticas sejam reconhecidas como construtivas na sua
intenção. A afirmação bem explícita de que todas as idéias têm o mesmo mérito parece-me
um pouco diferente da desastrosa afirmação de que nenhuma idéia tem mérito.
Este livro fala da exploração do universo e de nós mesmos, ou seja, fala da ciência. A
lista de assuntos pode parecer muito variada - desde um cristal de sal até à estrutura do
cosmo, passando por mitos e lendas, nascimento e morte, robots e climas, a exploração dos
planetas, a natureza da inteligência a procura de vida fora da Terra. Mas, como espero que
aconteça, estes assuntos ligam-se porque o mundo é ele próprio um elo e também porque os
seres humanos o percebem através de órgãos sensoriais, cérebros e experiências que podem
não refletir as realidades exteriores com absoluta fidelidade.
Todos os capítulos de O Cérebro de Broca foram escritos para o público em geral. Em
alguns deles, porém –como "Vénus e o Dr. Velikovsky" e "Norman Bloom, mensageiro de
Deus"-, incluí um ou outro pormenor mais técnico; mas a compreensão desses pormenores
não é necessária para a compreensão
do essencial da questão.
Algumas das idéias expostas nos caps. I e XV foram já apresentadas, na minha
palestra no William Menninger Memorial, Lecture à Associação Psiquiátrica Americana, em
Atlanta, na Jórgia, no mês de Maio de 1978. O cap. x tem por base a participação num
simpósio que comemorou o primeiro vôo de um foguetão com combustível líquido e teve
lugar no Instituto Smithsoniano, em Washington DC, no mês de Março de 1976.
O cap. XIII baseou-se numa palestra feita na Sage Chapel Convocation, Universidade
de Cornell, em Novembro de 1977. E o cap. VII reflete uma intervenção feita durante a
reunião anual da Associação Americana para o Avanço da Ciência, em Fevereiro de 1974.
Este livro foi escrito precisamente antes – penso que, no máximo, alguns anos ou
algumas décadas antes- de as respostas para muitas daquelas incômodas e mais ou menos
aterrorizadoras perguntas sobre as origens e os destinos se terem libertado do cosmo. Se não
nos destruirmos, a maioria de nós aqui estará para conhecer as respostas. Se tivéssemos
nascido há anos, podíamos ter julgado, ponderado e até especulado sobre estes temas, mas
nada mais podíamos ter feito. E, se nascêssemos daqui a cinquenta anos, creio que já
saberíamos as respostas.
A maioria dos nossos filhos aprendê-las-ão ainda antes de terem tido a ocasião de
formular as perguntas. A mais excitante, satisfatória e agradável altura para viver é, de longe,
aquela em que passamos da ignorância ao conhecimento destas questões fundamentais: a era
em que começamos por nos espantar e acabamos por compreender. Nos quatro mil milhões de
anos de história que tem a vida deste planeta, nos quatro mil
milhões de anos de história que tem a família humana, há uma
geração apenas à qual foi dado o privilégio de viver através desse único momento
transitório: essa geração é a nossa.
Ítaca, Nova Iorque
Outubro de 1978
PARTE I - A CIÊNCIA PREOCUPAÇÃO HUMANA
CAPÍTULO I: O CÉREBRO DE BROCA
“- Ainda ontem eram macacos. Dêem-lhes tempo.
- Macaco uma vez, macaco sempre!
- Não, vai ser diferente... Volta daqui a uma ou duas gerações e verás. . .”
Os deuses falando da Terra na versão cinematográfica do livro de H. G. Wells O
Homem Que Fazia Milagres (1936).
Este Musée de Homme (Museu do Homem) era de certa forma como outro qualquer.
Estava situado numa agradável colina e tinha um restaurante nas traseiras com vista para a
Torre Eiffel. Estávamos lá para falar com Yves Coppens, diretor associado do Museu e um
conceituado paleantropólogo. Coppens estudara os antepassados do homem através dos
fósseis encontrados em Olduvai Gorge, no lago Turkana, no Quênia, na Tanzânia e na
Etiópia. Há dois milhões de anos existiram criaturas com cerca de 1,20 m de altura, a quem
chamamos Homo habilis, que viviam no Leste de África, lascando, aparando e raspando
ferramentas de pedras e talvez também construindo pequenas habitações e cujo cérebro se foi
desenvolvendo de forma espetacular, conduzindo àquilo que somos hoje.
As instituições deste tipo têm um lado público e um lado privado. O lado público
inclui as exposições etnográficas ou de antropologia cultural: o vestuário mongol ou os couros
pintados pelos nativos americanos, muitas vezes com o propósito específico de os venderem
aos voyageurs' ou a um qualquer antropólogo francês mais aventureiro. Mas nos meandros do
local há outras coisas: pessoas empenhadas na produção de documentos e na construção de
objetos; vastos armazéns plenos de artigos inadequados, pelo seu tema ou pelo seu tamanho, à
maioria das exposições e áreas de pesquisa. Fomos conduzidos através de um corredor de
salas escuras e bolorentas e percorremos desde cubículos a enormes câmaras circulares.
O equipamento e os materiais de pesquisa amontoavam-se pelos corredores: a
reconstrução do chão de uma gruta paleolítica, indicando para onde haviam sido atirados os
ossos do antílope depois de ter sido comido; estátuas priápicas de madeira da Melanésia;
talheres delicadamente pintados; máscaras grotescas para rituais; lanças como as assagai
vindas da Oceânia; um cartaz meio rasgado de um xamã africano; um armazém úmido e
sombrio cheio de instrumentos musicais de sopro feitos de madeira, tambores de pele, flautas
de cana e inumeráveis testemunhos do indomável desejo do homem de fazer música.
Aqui e ali podíamos encontrar algumas pessoas verdadeiramente empenhadas na
pesquisa. Mas o seu comportamento recatado e plácido era completamente diferente do
relacionamento amável e bilingue de Coppens. Muitas das salas eram evidentemente
utilizadas para o armazenamento de objetos antropológicos, que vinham sendo recolhidos há
mais de um século. Tinha-se a sensação de se estar num museu de segunda categoria, em que
se guardavam, não tanto os materiais que poderiam Ter algum interesse, mas os que noutros
tempos o tinham tido.
Podíamos imaginar-nos em presença de diretores de sobrecasaca num museu do século
XIX, empenhados na goniométrica e na craniologia, colecionando, medindo e pesando
azafamadamente, na esperança de que a simples quantificação conduzisse ao entendimento
das coisas.
Mas havia uma outra área do Museu ainda mais remota, uma estranha mistura de
pesquisa ativa e de estantes e armários completamente abandonados: um esqueleto articulado
e reconstruído de um orangotango; uma grande mesa coberta de crânios humanos, todos
criteriosamente identificados; uma gaveta cheia de fêmures empilhados como as borrachas de
reserva no armário de uma escola zelosa; uma zona dedicada à memória de Neanderthal,
incluindo o primeiro crânio Neanderthal, reconstruído por Marcelin Boule e que tive
cuidadosamente nas minhas mãos Senti-o leve e equilibrado e as suturas eram completamente
visíveis: seria talvez a primeira peça arrancada à evidência de que houve há muito criaturas
semelhantes a nós que se extinguiram e de que existe uma inquietante sugestão de que a nossa
espécie não sobreviva para sempre; um tabuleiro cheio de dentes de muitos hominídeos,
incluindo o grande molar quebra-nozes do Australopithecus robustus, contemporâneo do
Homo habilis; uma coleção de caixas cranianas de Cro-Magnon, empilhadas, polidas e
ordenadas. Estas peças estavam razoavelmente conservadas e, de certa forma, constituíam os
fragmentos de prova necessários à reconstrução de uma parte da história dos nossos
antepassados e parentes colaterais.
Nos confins da sala existiam mais coleções macabras e perturbadoras: duas cabeças
encarquilhadas, pousadas num rio, pareciam fazer caretas; olhavam-nos com desprezo e a pele
dos seus lábios estava levantada para nos serem reveladas "as de pequenos e aguçados dentes.
Havia frascos atrás de frascos com fetos e embriões humanos de um branco-pálido,
mergulhados num líquido turvo e esverdeado, todos rotulados. A teoria dos espécimes eram
normais, mas de vez em quando apercebíamo-nos de uma anomalia ou de uma desconcertante
teratologia - gêmeos siameses ligados pelo esterno, por exemplo, ou um feto com duas
cabeças mostrando os quatro olhos completamente fechados.
Havia ainda uma fila de frascos grandes e cilíndricos que continham, para grande
admiração minha, cabeças humanas em perfeito estado de conservação, como a de um homem
de bigode ruivo, de vinte e poucos anos, oriundo, como dizia o rótulo, da Nova Caledônia.
Talvez tivesse sido um marinheiro desembarcado nos trópicos, capturado e executado, cuja
cabeça houvesse sido recrutada em prole da ciência; só que não estava a ser estudada; como
as outras muitas cabeças, apenas estava a ser negligenciada. Havia também um rosto delicado
e terno de uma criança de mais ou menos 4 anos que exibia os brincos e o colar de coral
completamente intactos; três cabeças de recém-nascido, partilhando o mesmo recipiente,
talvez como medida de poupança; homens, mulheres e crianças de muitas raças e de ambos os
sexos haviam sido decapitados e as suas cabeças enviadas para França por barco apenas para
se desfazerem –talvez após um breve estudo inicial- no Musée de 1'Homme.
Perguntava-me como teriam sido embarcados aqueles recipientes.
Teriam os comandantes dos navios conversado à sobremesa sobre o que traziam no
porão? Seriam os marinheiros gente despreocupada só porque aquelas cabeças não eram, na
circunstância, de europeus como eles? Gozariam com a carga embarcada para demonstrar
alguma distância emocional da pequena ponta de terror que se permitiam ter individual e
particularmente?
Quando as coleções chegaram a Paris, teriam os cientistas sido suficientemente ativos
e organizados, dando ordens aos cicerones para a disposição das cabeças cortadas? Estariam
ansiosos por abrir os frascos e medir o conteúdo com craveiras? Teria o responsável por esta
coleção, quem quer que ele fosse, verificado tudo com orgulho e deleite impolutos?
Foi então que, num canto ainda mais distante desta ala do Museu, descobri uma
coleção de objetos cinzentos e convolutos, conservados em formol para retardar a sua ruína:
eram prateleiras e prateleiras de cérebros humanos. Devia ter havido alguém cujo trabalho
fosse levar a cabo rotineiras craniotomias nos cadáveres de pessoas conhecidas e extrair-lhes
o cérebro para bem da ciência. Ali estava o cérebro de um intelectual europeu que atingira
uma notoriedade momentânea antes de desaparecer na obscuridade desta estante poeirenta;
mais adiante, o de um assassino executado. Sem dúvida alguma, os sábios de tempos mais
remotos esperavam que houvesse alguma anomalia, algum sinal indicador, na configuração do
crânio dos assassinos.
Talvez desejassem apenas que o crime fosse um problema de hereditariedade, e não
um problema social. A frenologia foi uma aberração desajeitada do século XIX. Eu estou
mesmo a ouvir a minha amiga Ann Druyan, se tivesse vivido nesse tempo, dizer: "As pessoas
que matamos à fome e torturamos têm uma tendência natural para roubar e matar. Cremos que
isso acontece porque as suas sobrancelhas são demasiado inclinadas."
A verdade é que os cérebros dos criminosos e dos sábios –os restos do de Albert
Einstein flutuam lividamente num frasco em Wichita- são indistintos. É, pois, bem provável
que seja a sociedade, e não a hereditariedade, a causa da existência de criminosos.
Enquanto olhava mais de perto a coleção entre ruminações, a minha vista foi atraída
por um rótulo de um dos muitos pequenos contentores cilíndricos. Tirei o recipiente da
prateleira e examinei-o cuidadosamente. O rótulo dizia P. Broca.
Tinha nas minhas mãos o cérebro de Broca.
Paul Broca foi um cirurgião, neurólogo e antropólogo que desempenhou um papel
importante tanto no desenvolvimento da medicina como no da antropologia nos meados do
século XIX. Levou a cabo um trabalho considerável na patologia do cancro e no tratamento
de aneurismas e deu uma contribuição essencial para a compreensão das origens da afasia –
uma diminuição da capacidade de articular idéias. Broca foi um homem brilhante e
compassivo. Preocupou-se com os cuidados médicos a prestar aos mais desfavorecidos.
Encoberto pela escuridão, e arriscando a vida, conseguiu desviar de Paris, numa carroça,73
milhões de, enrolados em sacos de serapilheira escondidos debaixo de batatas, dinheiro que
constituía o tesouro da Assistance Publique e que ele, por qualquer razão, acreditava estar a
salvar da pilhagem. Foi o fundador da neurocirurgia moderna. Estudou a mortalidade infantil.
No fim da sua carreira chegou a senador.
Broca gostava acima de tudo, como disse um biógrafo, de calma e tolerância. Em 1848
fundou uma sociedade de "livres pensadores". Isolado entre os intelectuais franceses do seu
tempo, solidarizou-se com a idéia de Charles Darwin sobre a evolução por seleção natural. O
livro de T. H. Huxley O Bulldog de Darwin sublinha que uma só referência ao nome de Broca
era capaz de o encher de gratidão e Broca foi citado nele como tendo dito: "Eu prefiro ser um
macaco transformado a ser um filho degenerado de Adão." Por esta e outras afirmações, foi
publicamente acusado de "materialista" e, como Sócrates, de corromper a juventude. De
qualquer forma, chegou a senador.
No início, Broca encontrou muitos obstáculos para fundar em França uma sociedade
de antropologia. O ministro da Instrução Pública e o chefe da Polícia acreditavam que a
antropologia devia ser, tal como a busca do conhecimento sobre os seres humanos,
naturalmente subversiva para o estado. Quando, por fim - e mesmo assim com alguma
relutância -, foi concedida a Broca autorização para falar de ciência com oitenta colegas, o
chefe da Polícia tornou Broca pessoalmente responsável por tudo o que nesses encontros fosse
dito "contra a sociedade, a religião ou o governo". Ainda assim, o estudo dos seres humanos
foi considerado um ato tão perigoso que a Polícia contratou um espião, que aparecia vestido à
paisana durante as reuniões e que tinha ordens para interromper de imediato a sessão se
sentisse ofendido por qualquer coisa que fosse dita. A Sociedade de Antropologia de Paris
reuniu-se, nestas circunstâncias, pela primeira vez, em 19 de Maio de 1859, ano da publicação
de A Origem das Espécies. Em reuniões subsequentes foi discutido um número considerável
de questões - arqueologia, mitologia, fisiologia, anatomia, psicologia, lingüística e história- e
é fácil imaginarmos o espião da Polícia desatento na maioria das ocasiões e às vezes deixando
cair a cabeça de sono.
Broca relatou que, uma vez, o espião quis dar um pequeno passeio para que não estava
autorizado e perguntou se podia abandonar a sala com a certeza de que, na sua ausência, nada
de ameaçador seria dito em relação ao estado. "Nem pense nisso", disse-lhe Broca. "Você não
pode ir a parte alguma: sente-se e mereça aquilo que lhe pagam."
Não foi a Polícia a única que se opôs ao desenvolvimento da antropologia em França.
Em 1876, o partido ligado à igreja católica organizou uma campanha enorme contra o ensino
dessa disciplina no Instituto Antropológico de Paris, fundado por Broca.
Paul Broca morreu em 1880, vitimado talvez pelo mesmo tipo de aneurisma que tão
brilhantemente estudara. Nessa altura debruçava-se sobre um estudo global do cérebro
humano. Tinha fundado em França as primeiras sociedades profissionais, escolas de pesquisa
e algumas publicações científicas de antropologia moderna. Os seus espécimes de laboratório
foram então incorporados naquilo a que, durante muitos anos, se chamou o Musée Broca e
que, mais tarde, acabou por fazer parte do Musée de 1'Homme.
Fora o próprio Broca, cujo cérebro eu embalava entre as mãos, quem iniciara a coleção
macabra que eu contemplava. Estudara embriões, macacos e pessoas de todas as raças,
trabalhando como um louco para compreender a natureza de um ser humano; e, apesar do
aspecto atual da coleção e das minhas suspeitas, ele não era, pelo menos segundo os padrões
do seu tempo, mais racista ou chauvinista do que qualquer outra pessoa e muito menos essa
figura típica da ficção e, mais raramente, fatual: o frio, despreocupado e desapaixonado
cientista, muito pouco interessado pelas conseqüências humanas dos seus atos.
Broca interessava-se e muito.
Na Revue d'Anthropologie de 1880 consta a bibliografia completa das obras de Broca.
A partir dos títulos consegui mais tarde aperceber-me das origens da coleção que tinha
observado:
Sobre o Crânio e o Cérebro do Assassino Lemaire, Apresentação do Cérebro de Um
Gorila Macho Adulto, Sobre o Cérebro do Assassino Prévost, Sobre a Suposta
Hereditariedade de Características Acidentais, A Inteligência dos Animais e o Governo dos
Humanos, A Ordem dos Primatas: Paralelos Anatômicos entre o Homem e o Macaco, A
Origem da Arte de Fazer Fogo, Sobre os Monstros Duplos, As Questões da Microcefalia,
Trepanando a Pré-História, Dois Casos de Um Sobre desenvolvimento Digital na Idade
Adulta, As Cabeças de Dois Homens da Nova Caledônia e O Crânio de Dante Alighieri. Eu
desconhecia então o paradeiro atual do crânio do autor de A Divina Comédia, mas a coleção
de cérebros, crânios e cabeças que me rodeava teria decerto começado com o trabalho de Paul
Broca.
Broca era um exemplar anatomista do cérebro e fez notáveis investigações sobre a
região límbica, anteriormente denominada "rinocéfalo" (o "cérebro olfativo"), que sabemos
agora estar profundamente ligada às emoções humanas. Mas Broca nos dias de hoje, é
sobretudo conhecido pela descoberta de uma pequena zona na terceira circunvolução do
lóbulo frontal esquerdo do córtice cerebral, zona conhecida atualmente como "área de Broca".
O discurso articulado, ao que parece, como Broca inferiu de provas apenas fragmentárias, está
localizado e é controlado pela área de Broca. Foi uma das primeiras descobertas de que existe
uma separação de funções entre os hemisférios esquerdo e direito do cérebro; mas, mais
importante ainda, foi uma das primeiras indicações de que funções específicas do cérebro
existem em locais particulares do mesmo, de que existe uma relação entre a anatomia do
cérebro e aquilo que ele faz, atividade por vezes descrita como "mente".
Ralph Holloway é um antropólogo físico da Universidade de Colúmbia, cujo
laboratório suponho ter algumas semelhanças com o de Broca. Holloway faz modelos de
borracha das partes internas de crânios de seres humanos e afins, de tempos remotos e dos
dias de hoje, numa tentativa de reconstruir, a partir de leves indentações no interior do crânio,
aquilo que o cérebro deve ter sido numa época remota. Holloway crê que consegue identificar
pelo crânio de uma criatura se a área de Broca está ou não presente e encontrou provas da
existência de uma área de Broca no cérebro de um Homo habilis com mais ou menos 2
milhões de anos - precisamente a era das primeiras construções e dos primeiros utensílios.
Assim, existe algo que tem a ver com a visão frenológica. É bem provável que o pensamento
humano e a indústria tenham andado a par com o desenvolvimento do discurso articulado; e a
área de Broca pode, na realidade, ser uma das bases da nossa hominização, bem como um
meio de determinar as relações que existem entre nós e os nossos antecessores, na sua
caminhada em direção a essa hominização.
E ali estava o cérebro de Broca a flutuar em formol, aos pedaços, diante de mim.
Consegui distinguir a região límbica, que Broca estudara noutros cérebros. Consegui ver as
circunvoluções no neocórtice. Pude inclusivamente observar o acinzentado lóbulo frontal
esquerdo, no qual residia a área de Broca pertencente a Broca, deteriorada e passando
despercebida num canto bolorento de uma estante onde jazia a coleção que o próprio Broca
iniciara.
Era difícil segurar no cérebro de Broca sem pensar se, de alguma forma, Broca estava
ainda ali dentro - a sua inteligência, o seu ar céptico, os seus gestos bruscos enquanto falava,
os seus momentos de calma e de emoção. Estaria preservada, diante de mim, sob a
configuração de memória, a gravação do momento glorioso em que discutiu perante o grupo
das Faculdades de Medicina (e perante seu pai, inchado de orgulho) a questão das origens da
afasia? De um jantar com o seu amigo Victor Hugo? De um passeio pelo Quai Voltaire e pela
Pont Royal com a sua mulher, que levava então um bonito guarda-sol?
Para onde vamos quando morrermos? Será que Paul Broca ainda está ali no seu frasco
cheio de formol? Talvez os traços da memória se tenham desgastado, muito embora haja
sólidas provas, a partir de investigações modernas feitas ao cérebro, de que uma dada
memória está redundantemente armazenada em locais muito diversos do cérebro. Virá
futuramente a ser possível, quando a neurofisiologia tiver avançado substancialmente,
reconstruir as memórias ou as introspecções de alguém há muito desaparecido? E seria isso
bom? Poderia ser a maior invasão da privacidade, mas seria igualmente uma espécie de
imortalidade concreta, porque, especialmente para um homem como Broca, as nossas mentes
são um reflexo claro daquilo que fundamentalmente somos.
Pelo aspecto descuidado desta sala do Musée de 1'Homme fiquei em condições de
acusar aqueles que haviam reunido a coleção - nessa altura nem sabia que Broca era um deles
de sexismo, racismo e chauvinismo evidentes, de uma profunda resistência à idéia de que
existe uma relação entre os seres humanos e os outros primatas. E, em parte, era verdade.
Broca foi um humanista do século XIX, mas não foi capaz de abalar os preconceitos
enraizados ou as doenças sociais da humanidade do seu tempo. Achava que o homem era
superior à mulher e que os Brancos eram superiores aos Negros. Mesmo a sua afirmação de
que os cérebros germânicos não eram significativamente diferentes dos franceses foi uma
reação à intransigência dos teutônicos, que apregoavam a inferioridade gaulesa. De qualquer
forma, ele concluiu que havia relações profundas, na fisiologia cerebral, entre os gorilas e o
homem. Broca, o fundador, na sua juventude, da sociedade dos livres pensadores, acreditava
na importância da investigação livre e viveu a sua vida para atingir esse objectivo. A sua
incapacidade de realizar esse ideal só mostra que, mesmo os que têm ilimitada capacidade
para o livre estudo do conhecimento, como Broca, podem ser paralisados por um
obscurantismo endêmico e respeitável. A sociedade corrompe aquilo que há de melhor dentro
de cada um de nós. Creio que será um pouco injusto criticar alguém pelo fato de não partilhar
a clarividência de uma época posterior; mas é também profundamente triste que tais
preconceitos se tenham difundido tanto. A questão levanta dúvidas contínuas sobre quais das
verdades convencionais da nossa geração serão consideradas pela próxima como um
obscurantismo imperdoável.
Uma maneira de recompensar Paul Broca por esta lição que ele, inadvertidamente, nos
proporcionou é desafiar, profunda e seriamente, as nossas crenças mais enraizadas.
Estes frascos esquecidos e os seus terríveis conteúdos haviam sido recolhidos, pelo
menos em parte, com um espírito humanístico; e talvez, numa era futura de avanço no estudo
do cérebro, voltem a ser considerados úteis: eu gostaria de saber um pouco mais sobre o
homem do bigode ruivo da Nova Caledônia, cuja cabeça foi devolvida à França. . .
No entanto, aquilo que nos rodeava, a sensação de uma câmara de horrores, evocava
outros pensamentos, indesejados e inquietantes. Num lugar como este sentimos, no mínimo,
um pouco de solidariedade com aqueles - especialmente os mais jovens e os que morreram em
sofrimento- que de um modo tão invulgar ficam na memória. Os canibais do Noroeste da
Nova Guiné usam filas de crânios como umbrais na frontaria das casas e, às vezes, como
lintéis. Talvez sejam estes os materiais de construção adequados mais abundantes; mas os
arquitetos não conseguem ser alheios ao terror que aquelas construções evocam nos viajantes
inadvertidos. Os crânios foram utilizados pelas tropas SS de Hitler, pelos Anjos do Inferno,
pelos xamãs, pelos piratas e ainda por aqueles que desenham os rótulos dos recipientes de
produtos tóxicos no esforço consciente de chamar a atenção para o perigo. E faz sentido. Se
eu me encontrar numa sala repleta de crânios, é como se houver alguém perto: talvez um
grupo de hienas, talvez um carrasco doentio e obsessivo, cuja ocupação ou hobby seja
colecionar crânios. Tais indivíduos devem ser obviamente evitados ou, se possível,
liquidados. O arrepio na minha nuca, a aceleração do meu ritmo cardíaco e da minha
pulsação, essa sensação fria e estranha, são tramas da evolução para me fazer lutar ou fugir.
Aqueles que evitam a decapitação deixam mais descendentes.
A convivência com esses medos fornece uma vantagem evolutiva.
Encontrarmo-nos numa sala cheia de cérebros é ainda mais assustador, como se um
monstro de moral indizível, armado com lâminas afiadas e ferramentas côncavas, se
arrastasse, babando-se, algures no sótão do Musée de 1'Homme. Mas tudo depende - julgo eu
do objetivo da coleção; se esse for descobrir, se a coleção adquiriu partes humanas
postmortem especialmente com o prévio consentimento daqueles a quem essas mesmas partes
pertenceram, então não se causou mal nenhum. E talvez a longo prazo se venha a revelar útil à
humanidade.
Mas não tenho a certeza de que os cientistas estejam inteiramente desligados dos
motivos dos tais canibais da Nova Guiné. Não dirão pelo menos: "Eu vivo com estas cabeças
todos os dias. Elas não me incomodam. Porque é que você é tão sensível?
Leonardo e Vesalius tiveram de subornar e furtar para realizar em segredo as primeiras
dissecações sistemáticas de seres humanos na Europa, embora tivesse havido uma escola de
Anatomia ativa e competente na Grécia antiga. A primeira pessoa a localizar, com base na
neuranatomia, a inteligência humana na cabeça foi Herófilos da Caledônia, que nasceu cerca
de 300 a. C. Foi igualmente o primeiro a distinguir o nervo motor dos nervos sensoriais e
realizou o estudo mais detalhado de anatomia cerebral concebido até ao Renascimento. Sem
dúvida, houve quem fizesse objeções a estas suas experiências algo horríveis.
Existe um medo escondido, evidente na lenda de Fausto, de algumas coisas não terem
sido "feitas" para serem conhecidas, de algumas perguntas serem demasiado perigosas para os
seres humanos. E, na nossa geração, o desenvolvimento das armas nucleares pode, se
tivermos pouca sorte e falta de juízo, tornar-se um caso precisamente deste tipo. No entanto,
no que diz respeito às experiências sobre o cérebro, os nossos medos são menos intelectuais.
Mergulham profundamente no nosso passado evolutivo. Fazem-nos pensar nas criaturas
selvagens e nos homens que aterrorizavam os viajantes e as populações rurais da Grécia
antiga à beira dos caminhos, através de mutilações procrusteanas e outras selvagerias, até que
um herói qualquer - Teseu ou Hércules- conseguisse desembaraçar se deles sem esforço. Estes
medos tiveram uma função específica no passado; mas no presente creio que são apenas
portadores de uma grande carga emocional. Eu estava interessado, como cientista que
escrevera sobre o cérebro, em encontrar essas reações escondidas dentro de mim, revelando-
se durante a minha visita à coleção de Broca. Vale a pena lutar contra os medos.
Todas as investigações trazem consigo um certo elemento de risco. Não há garantias
de que o universo seja conforme às nossas predisposições. Mas não vejo como podemos agir
em relação ao universo - tanto o interior como o exterior - sem o estudarmos.
A melhor maneira de evitar abusos, no que concerne ao público em geral, é sermos
cientificamente competentes, compreendermos as implicações que existem nessas
investigações. Em troca da liberdade de pensamento, o cientista é obrigado a prestar contas do
seu trabalho. Se a ciência é considerada um sacerdócio muito fechado, demasiado difícil e
secreto para o homem comum compreender, então os perigos do abuso são maiores.
Mas, se a ciência é um assunto do interesse geral que preocupa todos – se tanto os
seus prazeres como as suas conseqüências sociais se discutem regularmente nas escolas, na
imprensa e ao jantar -, fizemos o melhor que podíamos na aprendizagem de como o mundo é
na realidade e do que podemos fazer por ele e por nós próprios. Às vezes penso que esta é
uma das idéias que ainda deve estar ali, quieta, preguiçando em formol, no cérebro de Broca.
CAPÍTULO II: PODEMOS CONHECER O UNIVERSO? - REFLEXÕES
SOBRE UM GRÃO DE SAL
“Nada é mais abundante do que a inesgotável riqueza da natureza.
Ela mostra-nos apenas superfícies, mas tem um milhão de braças de profundidade.”
Ralph Waldo Emcrson
A ciência é mais um modo de pensar do que um conjunto de conhecimentos. O seu
fim é descobrir como o mundo funciona, procurar as regularidades que nele existem, abrir
caminho nas relações entre as coisas - desde as partículas subnucleares, que podem ser os
constituintes de toda a matéria, até aos organismos vivos, à comunidade social humana e, daí,
ao cosmo como um todo. A nossa intuição não é, de forma alguma, um guia infalível. A nossa
percepção pode ser distorcida pela educação, pelos preconceitos ou apenas pelas limitações
dos nossos órgãos sensitivos, que, obviamente, não apercebem diretamente senão uma fração
mínima dos fenômenos do mundo.
Mesmo uma pergunta como se, na ausência de atrito, 1 kg de chumbo cai mais
depressa do que 1 g de algodão foi respondida incorretamente por Aristóteles e quase todos os
que viveram em eras anteriores à de Galileu. A ciência baseia-se na experiência, na disposição
de desafiar os velhos dogmas, numa
abertura que permita ver o universo como ele na realidade é.
Deste modo, a ciência requer coragem na maioria das vezes no mínimo, a coragem de
pôr em causa a sabedoria convencional.
Para além disto, o truque principal da ciência é pensar realmente em alguma coisa: a
forma das nuvens e os seus fundos por vezes aguçados a uma mesma altitude em todo o céu; a
formação de uma gota de orvalho sobre uma folha; a origem de um nome ou de uma palavra -
por exemplo "Shakespeare" ou "filantrópico"; a razão dos costumes sociais humanos - como,
por exemplo, a proibição do incesto; como é que uma lente sob luz solar pode queimar papel;
como é que uma bengala se parece tanto com um ramo de árvore; por que razão a Lua parece
seguir-nos quando caminhamos; o que nos impede de fazer um buraco fundo no chão até ao
centro da Terra; qual a definição de "em baixo" numa Terra esférica; como é possível a um
corpo converter o almoço de ontem no músculo ou no tendão de hoje; até onde existe o cimo -
será que o universo continua para sempre, ou, se não, terá algum sentido a questão sobre o
que existirá do outro lado? Algumas destas perguntas são bem fáceis.
Todas as culturas se puseram estas questões de uma ou de outra maneira. Quase
sempre as respostas apresentadas têm a ver com "histórias de que as coisas são tentativas
como são", de explicar que não se fundam na experiência nem mesmo em observações
comparativas cuidadas.
Mas a disposição científica da mente examina o mundo de forma crítica, como se
muitos mundos alternativos existissem, como se as coisas que aqui não estão pudessem estar.
Então somos forçados a perguntar porque é que o que vemos está presente, e não outra coisa.
Por que razão o Sol, a Lua e os planetas são esféricos? Porque não piramidais, ou cúbicos, ou
de doze faces? Porque não formas irregulares e confusas? Porquê mundos tão simétricos? Se
perdermos algum tempo a alvitrar hipóteses, verificando se têm sentido, se são consentâneas
com o que já conhecemos, pensando em provas que podemos fazer para substanciar ou
esvaziar essas hipóteses, encontramo-nos a fazer ciência. E, à medida que este hábito de
pensar vai sendo praticado, vamo-nos aperfeiçoando. Penetrar no coração de uma coisa -
mesmo pequena, numa folha de erva, como disse Walt Whitman- é experimentar uma espécie
de alegria muito grande que talvez apenas os seres humanos, entre todos os seres deste
planeta, podem sentir. Somos uma espécie inteligente e o uso apropriado da nossa inteligência
dá-nos prazer. Visto por este prisma, o cérebro é como um músculo. Quando pensamos
corretamente, sentimo-nos bem. E o entendimento é uma espécie de êxtase.
Mas até onde podemos verdadeiramente conhecer o universo que nos rodeia? Às
vezes, esta pergunta é feita por pessoas que esperam que a resposta seja dada na negativa,
porque têm medo de um universo em que tudo possa, um dia, ser revelado. E às vezes
ouvimos declarações de cientistas afirmando, confiantes, que tudo o que vale a pena conhecer
será conhecido - ou já o é- e que pintam quadros de uma era dionisíaca ou polinesiana em que
o gosto pela descoberta intelectual decaiu, para ser substituído por uma espécie de fraqueza
subjugada, os comedores de lótus bebendo leite de coco fermentado ou qualquer outro suave
alucinógeno. Além de difamar tanto os Polinésios, que foram exploradores intrépidos (e cujo
breve repouso no Paraíso está agora tristemente a acabar), como os incentivos para
descobertas intelectuais propiciados por alguns alucinogénios, esta afirmação acaba por estar
trivialmente errada.
Aproximemo-nos de uma questão bem mais modesta: não a de se podemos conhecer o
universo, a Via Láctea, uma estrela ou um mundo; mas a de se podemos conhecer, integral e
detalhadamente, um grão de sal. Imaginemos 1 micrograma de sal de mesa, uma partícula tão
minúscula que, sem microscópio, apenas seria visível por alguém com apuradíssima visão.
Nesse grão de sal há mais ou menos 10*16 átomos de sódio e cloro. Isto é, um 1 seguido de
dezasseis zeros, ou seja, 10 milhões de biliões 1 de átomos. Se quisermos conhecer um grão
de sal, teremos pelo menos de conhecer as posições tridimensionais de cada um desses
átomos. (De fato, haveria muito mais para ser conhecido - como a natureza das forças entre os
átomos -, mas estamos apenas a fazer um cálculo modesto.) Ora bem: este número é maior ou
menor do que o número de coisas que o cérebro é capaz de conhecer?
Quanto pode um cérebro conhecer? Há no cérebro talvez 10" de neurônios, os
elementos dos circuitos e interruptores que são responsáveis, na sua atividade química e
elétrica, pelo funcionamento das nossas mentes. Um neurônio cerebral típico tem talvez 100
pequenos filamentos, chamados dendrites, que o ligam aos seus companheiros. Se, ao que
parece, cada bit de informação corresponde no cérebro a uma destas ligações, o número total
de coisas susceptíveis de conhecimento pelo cérebro não é maior do que 10&4, 100 triliões.
Mas este número é apenas 1 % do número de átomos da pequena partícula de sal.
Neste sentido, o universo é resistente, espantosamente imune a qualquer tentativa
humana de conhecimento total. Acontece que o sal é um cristal em que, exceto pelos defeitos
da estrutura da rede cristalina, a posição de cada átomo de sódio e cloro é predeterminada. Se
pudéssemos penetrar neste mundo cristalino, veríamos filas e filas de átomos dispostos
ordenadamente, uma estrutura alternada regularmente - sódio, cloro, sódio, cloro -,
identificando a camada de átomos onde estivéssemos e todas as outras por cima e por baixo.
Um cristal de sal absolutamente puro podia ter a posição de todos os átomos determinada por
qualquer coisa como 10 bits de informação. Isto não excederia a capacidade de informação do
cérebro.
O cloro é um veneno mortal gasoso que foi usado nos campos de batalha europeus
durante a primeira guerra mundial. O sódio é um metal corrosivo que se queima ao contato
com a água. Juntos formam um material plácido e inofensivo, o sal de mesa. Por que razão
cada uma das substâncias tem as propriedades que tem é um assunto chamado "química", que
requer muito mais do que 10 bits de informação para se compreender.
Se o universo tivesse leis naturais que governassem o seu comportamento com o
mesmo grau de regularidade que determinam
um cristal de sal, então o universo poderia ser decerto passível de conhecimento.
Mesmo que existissem muitas leis como essas, cada uma com uma complexidade
considerável, os seres humanos poderiam ter a capacidade de as compreender todas. Ainda
que esse conhecimento excedesse a capacidade de informação do cérebro, poderíamos
armazenar as informações adicionais fora dos nossos corpos - por exemplo, em livros ou na
memória de um computador- e ainda, em certo sentido, conhecer o universo.
Os seres humanos estão, compreensivelmente, muito motivados para a descoberta de
regularidades, de leis naturais. A procura de regras, única maneira possível de compreender
um universo tão vasto e complexo, chama-se "ciência". O força aqueles que nele vivem a
compreendê-lo. Essas criaturas que acham a experiência quotidiana um amontoado confuso
de acontecimentos irregulares, imprevisíveis, estão moribundas.
O universo pertence àqueles que, pelo menos em certa medida, perceberam isso.
É um fato admirável que haja leis da natureza, regras que sintetizem convenientemente
- não só qualitativa, mas também quantitativamente- o funcionamento do mundo. Podíamos
imaginar um universo no qual não há leis dessas, no qual 10*88 de partículas elementares que
formam um universo como o nosso se comportam em total e inflexível isolamento. Para
compreender um tal universo precisaríamos de um cérebro pelo menos tão maciço como o
universo. Parece improvável que esse universo tivesse vida e inteligência, porque os seres e os
cérebros requerem um certo grau de estabilidade e ordem interna. Mas num universo ainda
muito mais desorganizado, onde houvesse esses seres com uma inteligência muito superior à
nossa, não poderia haver tanto conhecimento, tanta paixão, nem tanta alegria.
Para nossa sorte, vivemos num universo que tem, pelo menos, partes importantes
susceptíveis de serem conhecidas.
A nossa experiência de senso comum e a nossa evolução histórica prepararam-nos
para compreender uma parte do funcionamento do mundo quotidiano. Porém, quando
penetramos noutros domínios, o senso comum e a intuição natural tornam-se guias altamente
duvidosos. É espantoso que, quando estamos próximo da velocidade da luz, a nossa massa
aumenta indefinidamente e contraímo-nos até uma espessura zero na direção do movimento,
podendo o tempo deter-se tanto quanto queiramos.
Há muita gente que pensa que isto é um disparate e quase todas as semanas recebo
uma carta de alguém que se queixa disso. Mas não: é uma conseqüência perfeitamente certa,
não só da experiência, mas também da brilhante análise feita ao espaço e ao tempo por Albert
Einstein, conhecida como a teoria da restrita relatividade. Não importa que estes efeitos nos
pareçam improváveis. Não temos o hábito de viajar a uma velocidade como a da luz: o
testemunho do nosso senso comum é suspeito a altas velocidades.
Imaginemos agora uma molécula isolada composta por dois átomos com a forma
semelhante a um alter - uma molécula de sal, por exemplo. Uma molécula como esta roda em
torno de um eixo imaginário que liga os dois átomos. Mas, no mundo da mecânica quântica,
no domínio do verdadeiramente pequeno, nem todas as orientações do nosso alter são
possíveis. Podia acontecer a molécula ser orientada na posição horizontal, ou então na
vertical, mas não em muitos ângulos entre as duas.
Algumas posições rotativas são proibidas. Mas proibidas por quem? Pelas leis da
natureza. O universo está construído de uma tal forma que limita ou quantiza a rotação. Não
experimentamos isto diretamente na vida quotidiana; achá-lo-íamos complicados e fizéssemos
exercícios de levantamento sentados, percebendo que os braços esticados para os lados ou
para cima apenas permitem algumas posições intermédias. Não vivemos no mundo do
pequeno, à escala de 10-&3 cm, no domínio em que existem doze zeros entre a unidade e a
casa decimal. As nossas intuições de senso comum não contam. O que conta é a experiência -
neste caso, a observação a partir dos espectros no infravermelho longínquo das moléculas.
Eles mostram que a rotação molecular é quantizada.
O pensamento de que o mundo põe restrições aos atos humanos é frustrante. Por que
razão não poderíamos ser capazes de ter posições rotativas intermédias? Porque não podemos
viajar mais depressa do que à velocidade da luz? No entanto, tanto quanto podemos dizer, este
é o modo como o universo está construído. Esses impedimentos não só nos empurram em
direção a uma pequena humildade, como tornam o mundo passível de conhecimento. Cada
restrição corresponde a uma lei da natureza, a uma regularização do universo. Quanto mais
restrições houver quanto ao que a matéria e a energia podem fazer, mais conhecimentos
poderão os homens alcançar. O fato de o universo ser susceptível de conhecimento não
depende apenas do número de leis da natureza que existem e respeitam a fenômenos
diferentes, mas sobretudo da capacidade intelectual de compreendermos essas mesmas leis.
As nossas formulações que se relacionam com as regularidades da natureza estão certamente
dependentes do modo como o cérebro está construído e, a um outro nível, de como o universo
está construído.
Cá por mim, gosto de um universo que inclua muito do que se desconhece e, ao
mesmo tempo, muito do que pode vir a conhecer-se. Um universo em que tudo se sabe seria
estático e aborrecido, tão aborrecido como o paraíso de alguns teólogos sem imaginação. Um
universo que não é susceptível de ser compreendido não é o lugar adequado para um ser
pensante. Para nós, o universo ideal é muito parecido com aquele em que habitamos e tenho a
impressão de que isto não é uma coincidência.
CAPÍTULO III:ESSE MUNDO QUE ACENA COMO UMA LIBERTAÇÃO
“Para me castigar pelo meu desprezo pela autoridade, o destino fez de mim próprio
uma autoridade.” Einstein
Albert Einstein nasceu em Ulm, na Alemanha, exatamente há um século. Era uma
dessas raras pessoas que em qualquer época reformulam o mundo através de um dom
especial, um talento de compreender coisas antigas de novas formas, de propor profundos
desafios à sabedoria convencional. Durante muitas décadas, Einstein foi admirado e venerado
por todo o mundo, sendo o único cientista que toda a gente conhecia, através não só das suas
descobertas científicas, conhecidas pelo menos vagamente pelo público, mas também das
posições frontais que tomava perante os assuntos sociais e da sua benevolência.
Para pessoas com eu, filhos de pais emigrantes com inclinação científica, ou que
cresceram durante a Depressão, esta veneração por Einstein demonstrou que existiram
pessoas que eram de fato cientistas e que a carreira científica não era totalmente impossível.
Ele desempenhou, sem querer, a função de servir de modelo científico. Sem ele, muitos dos
jovens que se tornaram cientistas após 1920 poderiam nunca ter ouvido falar da existência da
empresa científica. O raciocínio que serviu de suporte à teoria da relatividade restrita, de
Einstein, poderia Ter sido desenvolvido um século mais cedo, mas, embora tivesse havido
algumas investigações premonitórias feitas por outros, a relatividade teve de esperar por
Einstein.
Fundamentalmente, a física da relatividade restrita é muito simples e muitos dos
resultados essenciais podem ser deduzidos com a álgebra do liceu ou com a observação de um
barco que rema rio acima e rio abaixo.
Toda a vida de Einstein teve a riqueza do gênio e da ironia, foi a paixão pelos assuntos
do seu tempo - a intervenção na educação, a ligação entre a ciência e a política- e a
demonstração de que indivíduos podem, de fato, modificar o mundo.
Enquanto criança, Einstein deu poucos sinais do que viria a ser. "Os meus pais", disse
um dia, "preocupavam-se porque comecei a falar relativamente tarde. Consultaram um
médico por causa disso. Eu devia ter na altura talvez uns 3 anos, não menos que isso." Foi um
aluno desinteressado na escola primária, onde dizia que os professores lhe faziam lembrar
sargentos instrutores. Durante a sua juventude, as diretrizes máximas da educação européia
eram o nacionalismo bombástico e a rigidez intelectual. Revoltou-se contra os métodos de
ensino mecanizados e enfadonhos - "Preferia suportar qualquer espécie de castigo a ter de
papaguear as coisas aprendidas." Einstein continuaria sempre a detestar os autoritarismos
rígidos na educação, na ciência e na política.
Aos 5 anos sentiu-se atraído pelo mistério do funcionamento de uma bússola. Mais
tarde escreveu: "Aos 12 anos experimentei uma segunda sensação maravilhosa, de uma
natureza completamente diferente, ao ler um pequeno livro sobre geometria euclidiana
simples. Havia conclusões, como, por exemplo, a intersecção das três alturas de um triângulo
num ponto, que, embora não fossem evidentes, podiam ser provadas com tal clareza que
qualquer dúvida parecia estar fora de questão. Esta lucidez e segurança provocaram em mim
uma impressão indescritível."
A escolaridade formal era, para Einstein, apenas uma interrupção fastidiosa de tais
contemplações. Escreveu depois sobre a sua auto-educação: "Dos 12 aos 16 anos familiarizei-
me com elementos de matemática e com os princípios do cálculo diferencial e integral. Ao
fazê-lo, tive a sorte de encontrar livros que não eram demasiado insistentes no seu rigor
lógico, mas que, em compensação, apresentavam as idéias principais de uma forma bastante
clara. Tive a sorte de começar a conhecer os resultados e os métodos do campo global das
ciências naturais através de uma excelente exposição de divulgação que se restringia quase só
aos aspectos qualitativos. . . um trabalho que li apaixonadamente." Os atuais divulgadores da
ciência devem sentir-se reconfortados com estas palavras.
Nenhum dos professores de Einstein parece ter reconhecido as suas potencialidades.
No Gymnasium de Munique, a principal escola superior da cidade, um dos professores disse-
lhe:
"Nunca hás-de ser alguém, Einstein." Aos 15 anos foi aconselhado a abandonar a
escola: "A sua presença prejudica o respeito que os alunos têm por mim", disse-lhe um dos
professores.
Aceitou esta sugestão com satisfação e passou vários meses passeando pelo Norte de
Itália, deixando o liceu na década de 1890.
Sempre preferiu o estilo informal na forma de estar e de se vestir. Se tivesse vivido a
sua juventude nos anos 60 ou 70, teria sido considerado um hippie pela sociedade
convencional.
O seu desagrado pela educação formal foi, no entanto, rapidamente ultrapassado pela
curiosidade em relação à física e pela atração pelo universo natural. Inscreveu-se, por isso, e
apesar de não ter ainda o diploma do ensino secundário, no Instituto Federal de Tecnologia
em Zurique, na Suíça. Tendo reprovado no exame de admissão ao Instituto, inscreveu-se num
liceu suíço para corrigir as suas falhas e foi admitido, passado um ano, no Instituto Federal.
Continuava, no entanto, a ser um estudante medíocre. Estudava apenas aquilo a que
era obrigado, o que estava estipulado,
não comparecia às aulas e dedicava-se ao que o interessava. Mais tarde escreveu: "O
grande problema disto é que eu era obrigado a meter tudo aquilo na cabeça, quer quisesse
quer não, para conseguir passar no exame."
Só conseguiu licenciar-se porque um grande amigo, Marcel Grossmann, ia
regularmente às aulas e partilhava os seus apontamentos com Einstein. Escreveu, muitos anos
depois, a respeito da morte desse amigo: "Lembro-me dos nossos tempos de estudantes.
Ele era um aluno irrepreensível e eu um incorrigível sonhador. Ele, sempre de boas
relações com os professores, percebendo sempre tudo; eu, um pária insatisfeito e pouco
querido por todos, completamente perdido no limiar da vida."
Conseguiu a sua graduação através da concentração absoluta nos apontamentos de
Grossmann, mas, recorda mais tarde, "estudar para os exames finais teve um efeito tão terrível
em mim que durante um ano inteiro me foi completamente insuportável a concentração em
qualquer problema científico [...]
Só por milagre estes métodos pedagógicos não estrangularam ainda por completo a
sagrada curiosidade para investigar, porque o que esta planta mais necessita, para além da
estimulação inicial, é de liberdade. Sem isso é de certeza destruída. Acredito que qualquer
animal saudavelmente voraz perca completamente o apetite se for obrigado a comer
continuamente, quer tenha fome, quer não". Estas observações de Einstein deveriam servir de
pontos de reflexão aos responsáveis pela educação científica avançada. Às vezes penso em
quantos potenciais Einsteins terão sido sistematicamente desencorajados pela competitividade
dos exames e pela "alimentação" forçada dos currículos.
Depois de viver à custa de diversos empregos e de ter sido recusado para posições que
desejava, Einstein aceitou uma proposta de emprego para verificar os requerimentos no
Departamento de Patentes Suíças, em Berna. Esta oportunidade surgiu-lhe por influência do
pai de Marcel Grossmann. Nesta altura rejeitou a nacionalidade alemã e tornou-se cidadão
suíço. Em 1903, três anos mais tarde, casou com a namorada dos tempos da faculdade. Sabe-
se pouco sobre os pedidos de patentes que teriam sido aprovados ou rejeitados por Einstein.
Seria interessante saber até que ponto essas propostas estimularam os seus pensamentos na
física.
Um dos seus biógrafos, Banesh Hoffman, descreve como Einstein "aprendeu
rapidamente a desempenhar as suas tarefas e isto permitiu-lhe furtar tempos livres no
Departamento, tempos que dedicava sub-repticiamente aos seus cálculos, que escondia
culposamente numa gaveta sempre que ouvia o som de passos aproximando-se". Foi nestas
circunstâncias que nasceu a célebre teoria da relatividade. Einstein recordaria mais tarde,
nostalgicamente, o Departamento de Patentes como "o claustro secular onde amadureceram as
minhas idéias mais belas".
Disse várias vezes a colegas seus que a profissão de faroleiro seria a ideal para um
cientista - porque é um trabalho relativamente fácil e, ao mesmo tempo, permite a
contemplação necessária à investigação científica. Leopold Infeld, um colega seu, disse um
dia: "Para Einstein, a solidão da vida num farol seria decerto estimulante, libertá-lo-ia de
muitas das obrigações que ele detesta. Seria para ele a vida ideal. No entanto, quase todos
os cientistas pensam o contrário. A maldição da minha vida foi ter passado muito
tempo fora do ambiente científico, sem ninguém com quem falar sobre física."
Einstein acreditava que era algo desonesto ganhar dinheiro a ensinar física. Defendia
que era muito melhor para um físico sustentar-se através de um outro tipo de trabalho simples
e honesto e trabalhar em física nos tempos livres. Alguns anos mais tarde, nos Estados
Unidos, disse por graça que gostaria de ter sido canalizador e foi imediatamente tornado
membro honorário do sindicato dos canalizadores.
Em 1905, Einstein publicou quatro artigos de investigação na principal revista de
física da altura, a Annalen der Physik.
Estes artigos eram fruto do seu trabalho durante as horas vagas no Departamento de
Patentes Suíças. O primeiro artigo demonstrava que a luz tem propriedades de partículas e de
ondas e explicava o estranho efeito fotoelétrico, segundo o qual os eletrões são emitidos por
sólidos quando irradiados pela luz. O segundo explorava a natureza das moléculas, explicando
o "movimento browniano" estatístico de pequenas partículas em suspensão.
O terceiro e o quarto introduziam a teoria da relatividade restrita e, pela primeira vez,
foi escrita a famosa equação E=mc2, tão amplamente citada e tão raramente compreendida.
A equação expressa a possibilidade de a matéria se converter: em energia e vice-versa.
Amplia a lei da conservação da energia para a lei da conservação da energia e da massa,
afirmando que a energia e a massa não podem ser criadas nem destruídas embora uma forma
de energia ou de matéria possa ser convertida noutra. Na equação, o E representa a energia
equivalente à massa, m. A quantidade de energia que poderia, em circunstâncias ideais, ser
extraída da massa é mcz, onde c é a velocidade da luz = 30 biliões de centímetros por
segundo. (A velocidade da luz é sempre escrita em letra minúscula, e nunca em letra
maiúscula.) Se medirmos m em gramas e c em centímetros por segundo, E será medido numa
unidade de energia chamada erg. A conversão completa de 1 g de massa em energia liberta1 x
(3 x l0&o)z = 9 x l0zo ergs, o que seria mais ou menos equivalente à explosão de 1000 t de
TNT. Estas imensas fontes de energia estão contidas em quantidades mínimas de matéria.
Imagine-se o que seria se soubéssemos como extraí-la. As armas e as centrais
nucleares são hoje exemplos corriqueiros das nossas tentativas eticamente ambíguas de extrair
a energia que Einstein demonstrou estar presente em toda a matéria. Uma arma termonuclear,
uma bomba de hidrogênio, é uma invenção com um poder aterrorizador, mas nem mesmo
assim representa mais de 1 % de mc2 da massa m de hidrogênio.
Os quatro artigos de Einstein publicados em 1905 poderiam ter sido o resultado
impressionante de um trabalho de investigação feito a tempo inteiro durante toda uma vida;
terem sido o resultado do trabalho feito nas horas vagas de um empregado do Departamento
de Patentes com 26 anos de idade é algo completamente espantoso.
Muitos historiadores da ciência chamaram ao ano de 1905 Annus Mirabilis, o "ano dos
milagres". Só tinha existido um ano ligeiramente semelhante a este na história da física -1666,
ano em que Isaac Newton, de 24 anos, num isolamento rural forçado por uma epidemia de
peste bubônica, produziu uma explicação para a natureza espectral da luz do Sol, inventou o
cálculo diferencial e integral e criou a teoria da gravitação universal.
Os artigos de 1905 e a teoria da relatividade generalizada, formulada pela primeira vez
em 1915, foram as principais criações da vida científica de Einstein.
Antes de Einstein defendia-se que existiam sistemas de referência privilegiados e
coisas tais como o espaço absoluto e o tempo absoluto. O ponto de partida de Einstein foi que,
qualquer que fossem os sistemas de referência, todos os observadores (fosse qual fosse a sua
localização, velocidade ou aceleração) veriam as leis fundamentais da natureza da mesma
forma.
É provável que esta forma de encarar os sistemas de referência tenha sido influenciada
pelas atitudes sociais e políticas de Einstein e pela sua resistência ao chauvinismo estridente
da Alemanha dos finais do século XIX. A idéia de relatividade neste sentido tornou-se já um
lugar-comum da antropologia e os cientistas sociais já há muito adotaram a idéia do
relativismo cultural: há uma validade comparável nas várias formas de encarar os contextos
sociais e de expressar, nas diferentes sociedades, os conceitos éticos e religiosos.
A relatividade estrita não foi inicialmente bem aceite. Tentando iniciar, de novo, uma
carreira acadêmica, Einstein submeteu os seus artigos à apreciação da Universidade de Berna,
apresentando-os como exemplo do seu trabalho. Considerava-os evidentemente como algo de
importância. Foram rejeitados por serem incompreensíveis e ele manteve-se, assim, no
Departamento de Patentes até 1909.
O trabalho publicado não passou, no entanto, completamente despercebido e alguns
dos mais importantes físicos da Europa começavam lentamente a perceber que Einstein
poderia ser um dos maiores cientistas de todos os tempos. Mas o seu trabalho sobre a
relatividade continuava a ser altamente controverso.
Numa carta de recomendação para que Einstein ingressasse na Universidade de
Berlim, um importante cientista alemão sugeria que a relatividade era uma divagação
hipotética, uma aberração momentânea, mas que, apesar disso, Einstein era, de fato, um
pensador de alta craveira. (O Prêmio Nobel que Einstein ganhou, e de que teve conhecimento
durante uma
visita ao Oriente em 1921, foi-lhe atribuído pelo artigo sobre
o efeito fotoelétrico e "outras contribuições" para a física teórica.
A relatividade era ainda tida como demasiado controversa para poder ser mencionada
explicitamente.)
As formas de Einstein encarar a religião e a política estão interligadas. Os pais, de
origem judaica, não praticavam os rituais judaicos. Einstein acabou por ter, apesar disso, uma
educação religiosa convencional, "dada pela máquina tradicional da educação, o estado e as
escolas". Este tipo de educação teve um final repentino aos 12 anos: "A leitura de livros
científicos de divulgação levou-me rapidamente à conclusão de que muitas das histórias da
Bíblia não podiam ser verdadeiras. A conseqüência disto foi um fanatismo positivo pela
liberdade de pensamento, a que se juntou a impressão de que a juventude estava a ser
intencionalmente enganada pelo estado com as suas mentiras; era uma sensação chocante.
Desta experiência nasceu a desconfiança em relação a qualquer tipo de autoridade, a atitude
céptica em relação às convicções defendidas em qualquer ambiente social específico - atitude
que não mais me abandonou, embora mais tarde, através do conhecimento profundo das
ligações causais, tenha perdido a sua rigidez inicial.
Exatamente antes de rebentar a primeira guerra mundial, Einstein aceitou um lugar de
professor no célebre Instituto Kaiser Wilhelm, em Berlim. O profundo desejo de estar no
principal centro de física teórica foi momentaneamente mais forte do que a sua antipatia pelo
militarismo alemão.
O início da guerra impediu a mulher e os dois filhos de Einstein de voltarem da Suíça
para a Alemanha. Esta separação forçada acabaria em divórcio alguns anos depois. Apesar de
estar
de novo casado, Einstein doou o valor total do Prêmio Nobel que lhe foi atribuído em
1921, 30 000 dólares, à sua primeira mulher e aos filhos. O filho mais velho viria a ser uma
figura importante da engenharia civil, professor na Universidade da Califórnia. O segundo
filho, que idolatrava o pai, acusou-o anos mais tarde, e com grande angústia para Einstein, de
ter sido ignorado durante a sua juventude.
Einstein, que se dizia socialista, defendia que a primeira guerra mundial era, em
grande parte, resultado das intrigas e da incompetência das classes dominantes, conclusão
com que muitos dos historiadores contemporâneos estão de acordo.
Tornou-se então um pacifista. Enquanto muitos outros cientistas alemães apoiavam
entusiasticamente as proezas militares da sua nação, Einstein condenava publicamente a
guerra, chamando-lhe "ilusão epidêmica". A cidadania suíça impediu a sua prisão, o que não
aconteceu com o seu amigo e filósofo Bertrand Russell em Inglaterra, na mesma altura e pelos
mesmos motivos.
Esta forma de Einstein encarar a guerra não aumentou a sua fama na Alemanha. A
guerra teve, no entanto, uma influência indireta na divulgação do seu nome.
Na teoria da relatividade generalizada, Einstein explorava a afirmação - uma idéia
ainda hoje admirável pela sua simplicidade, beleza e poder - de que a atração gravitacional
entre duas massas aparece porque essas massas distorcem ou deformam o espaço euclidiano
vizinho. A teoria quantitativa reproduzia, com a precisão com que tinha sido testada, a lei da
gravitação universal, de Newton. Olhando mais de perto, no entanto, é possível ver que a
relatividade generalizada prevê diferenças significativas em relação à teoria de Newton. Isto
está na tradição clássica da ciência, onde as novas teorias retêm os resultados verificados das
antigas, mas avançam um conjunto de novas previsões que permite uma distinção decisiva
entre as duas perspectivas.
As três provas da relatividade geral propostas por Einstein diziam respeito às
anomalias do movimento da órbita do planeta Mercúrio, ao desvio para o vermelho das linhas
espectrais da luz emitida por uma estrela maciça e ao desvio da luz das estrelas quando passa
perto do Sol.
Antes de ter sido assinado o Armistício em 1919 foram mandadas expedições