Os Timbiras por Antônio Gonçalves Dias - Versão HTML
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OS TIMBIRAS
Gonçalves Dias
Introdução
Os ritos semibárbaros dos Piagas,
Cultores de Tupã, a terra virgem
Donde como dum trono, enfim se abriram
Da cruz de Cristo os piedosos braços;
As festas, e batalhas mal sangradas
Do povo Americano, agora extinto,
Hei de cantar na lira.– Evoco a sombra
Do selvagem guerreiro!... Torvo o aspecto, Severo e quase mudo, a lentos passos,
Caminha incerto, – o bipartido arco
Nas mãos sustenta, e dos despidos ombros Pende-lhe a rôta aljava... as entornadas, Agora inúteis setas, vão mostrando
A marcha triste e os passos mal seguros
De quem, na terra de seus pais, embalde
Procura asilo, e foge o humano trato.
Quem poderá, guerreiro, nos seus cantos
A voz dos piagas teus um só momento
Repetir; essa voz que nas montanhas
Valente retumbava, e dentro d’alma
Vos ia derramando arrojo e brios,
Melhor que taças de cauim fortíssimo?!
Outra vez a chapada e o bosque ouviram
Dos filhos de Tupã a voz e os feitos
Dentro do circo, onde o fatal delito
Expia o malfadado prisioneiro,
Qu’enxerga a maça e sente a muçurana
Cingir-lhe os rins a enodoar-lhe o corpo: E sós de os escutar mais forte acento
Haveriam de achar nos seus refolhos
O monte e a selva e novamente os ecos.
Como os sons do boré, soa o meu canto
Sagrado ao rudo povo americano:
Quem quer que a natureza estima e preza
E gosta ouvir as empoladas vagas
Bater gemendo as cavas penedias,
E o negro bosque sussurrando ao longe ___
Escute-me. ____ Cantor modesto e humilde, A fronte não cingi de mirto e louro,
Antes de verde rama engrinaldei-a,
D’agrestes flores enfeitando a lira;
Não me assentei nos cimos do Parnaso,
Nem vi correr a linfa da Castália.
Cantor das selvas, entre bravas matas
Áspero tronco da palmeira escolho.
Unido a ele soltarei meu canto,
Em quanto o vento nos palmares zune,
Rugindo os longos encontrados leques.
Nem só me escutareis fereza e mortes:
As lágrimas do orvalho por ventura
Da minha lira distendendo as cordas,
Hão de em parte ameigar e embrandece-las.
Talvez o lenhador quando acomete
O tranco d’alto cedro corpulento,
Vem-lhe tingido o fio da segure
De puto mel, que abelhas fabricaram;
Talvez tão bem nas folhas qu’engrinaldo, A acácia branca o seu candor derrame
E a flor do sassafraz se estrele amiga.
CANTO PRIMEIRO
Sentado em sítio escuso descansava
Dos Timbiras o chefe em trono anoso,
Itajubá, o valente, o destemido
Acoçador das feras, o guerreiro
Fabricador das incansáveis lutas.
Seu pai, chefe também, também Timbira,
Chamava-se o Jaguar: dele era fama
Que os musculosos membros repeliam
A flecha sibilante, e que o seu crânio
Da maça aos tesos golpes não cedia.
Cria-se... e em que não crê o povo stulto?
Que um velho piaga na espelunca horrenda Aquele encanto, inútil num cadáver,
Tirara ao pai defunto, e ao filho vivo
Inteiro o transmitira: é certo ao menos
Que durante uma noite juntos foram
O moço e o velho e o pálido cadáver.
Mas acertando um dia estar oculto
Num denso tabocal, onde perdera
Traços de fera, que rever cuidava,
Seta ligeira atravessou-lhe um braço.
Mão d’imigo traidor a disparara,
Ou fora algum dos seus, que receioso
Do mal causado, emudeceu prudente.
Relata o caso, irrefletido, o chefe.
Mal crido foi! –– por abonar seu dito,
Redobra d’imprudência, –– mostra aos olhos A traiçoeira flecha, o braço e o sangue.
A fama voa, as tribos inimigas
Adunam-se, amotinam-se os guerreiros
E as bocas dizem: o Timbira é morto!
Outras emendam: Mal ferido sangra!
Do nome do Itajubá se despega
O medo, – um só desastre venha, e logo
Esse encanto vai prestes converter-se
Em riso e farsa das nações vizinhas!
Os manitós, que moram pendurados
Nas tabas d’Itajuba, que as protejam:
O terror do seu nome já não vale,
Já defensão não é dos seus guerreiros!
Dos Gamelas um chefe destemido,
Cioso d’alcançar renome e glória,
Vencendo a fama, que os sertões enchia, Saiu primeiro a campo, armado e forte
Guedelha e ronco dos sertões imensos,
Guerreiros mil e mil vinham trás ele,
Cobrindo os montes e juncando as matas,
Com pejado carcaz de ervadas setas
Tingidas d’urucu, segundo a usança
Bárbara e fera, desgarrados gritos
Davam no meio das canções de guerra.
Chegou, e fez saber que era chegado
O rei das selvas a propor combate
Dos Timbiras ao chefe. –– “A nós só caiba, (Disse ele) a honra e a glória; entre nós ambos Decida-se a questão do esforço e brios.
Estes, que vês, impávidos guerreiros
São meus, que me obedecem; se me vences, São teus; se és o vencido, os teus me sigam: Aceita ou foge, que a vitória é minha.”
Não fugirei, respondeu-lhe Itajubá,
Que os homens, meus iguais, encaram fito O sol brilhante, e os não deslumbra o raio.
Serás, pois que me afrontas, torna o bárbaro Do meu valor troféu, –– e da vitória,
Qu’hei de certo alcançar, despojo opimo.
Nas tabas em que habito ora as mulheres
Tecem da sapucaia as longas cordas,
Que os pulsos teus hão de arrochar-te em breve; E tu vil, e tu preso, e tu coberto
D’escárnio de d’irrrisão! – Cheio de glória, Além dos Andes voará meu nome!
O filho de Jaguar sorriu-se a furto:
Assim o pai sorri ao filho imberbe,
Que, desprezado o arco seu pequeno,
Talhado para aquelas mãos sem forças,
Tenta doutro maior curvar as pontas,
Que vezes três o mede em toda altura!
Travaram luta fera os dois guerreiros,
Primeiro ambos de longe as setas vibram, Amigos manitôs, que ambos protegem,
Nos ares as desgarram, Do Gamela
Entrou a fecha trêmula num tronco
E só parou no cerne, a do Timbira,
Cicando veloz, fugiu mais longe,
Roçando apenas os frondosos cimos
Encontraram-se valentes: braço a braço, Alentando açodados, peito a peito,
Revolvem fundo a terra aos pés, e ao longe Rouqueja o peito arfado um som confuso.
Cena vistosa! quadro aparatoso!
Guerreiros velhos, à vitória afeitos,
Tamanhos campeões vendo n’arena,
E a luta horrível e o combate aceso,
Mudos quedaram de terror transidos.
Qual daqueles heróis há de primeiro
Sentir o egrégio esforço abandona-lo
Perguntam; mas não há quem lhes responda.
São ambos fortes: o Timbira hardido,
Esbelto como o tronco da palmeira,
Flexível como a flecha bem talhada,
Ostenta-se robusto o rei das selvas;
Seu corpo musculoso, imenso e forte
È como rocha enorme, que desaba
De serra altiva, e cai no vale inteira
Não vale humana força desprende-la
Dali, onde ela está: fugaz corisco
Bate-lhe a calva fronte sem parti-la.
Separam-se os guerreiros um do outro,
Foi dum o pensamento, – a ação foi d’ambos.
Ambos arquejam, descoberto o peito
Arfa, estua, eleva-se, comprime-se
E o ar em ondas sôfregos respiram
Cada qual, mais pasmado que medroso
Se estranha a força que no outro encontra, A mal cuidada resistência o irrita.
Itajubá! Itajubá! – os seus exclamam
Guerreiro, tal como ele, se descora
Um só momento, é dar-se por vencido
O filho de Jaguar voltou-se rápido
Donde essa voz partiu? quem no aguilhoa?
Raiva de tigre anuviou-lhe o rosto
E os olhos cor de sangue irados pulam
“A tua vida a minha glória insulta!
Grita ao rival, e já de mais viveste.”
Disse, e como o condor, descendo a prumo Dos astros, sobre o lhama descuidoso
Pávido o prende nas torcidas garras,
E sobe audaz onde não chega o raio...
Voa Itajubá sobre o rei das selvas,
Cinge-o nos braços, contra si o aperta
Com força incrível: o colosso verga,
Inclina-se, desaba, cai de chofre,
E o pó levanta e atroa forte os ecos.
Assim cai na floresta um tronco anoso,
E o som da queda se propaga ao longe!
O fero vencedor um pé alçando,
Morre! – lhe brada – e o nome teu contigo!
O pé desceu, batendo a arca do peito
Do exânime vencido: os olhos turvos,
Levou, a extrema vez, o desditoso
Àqueles céus d’azul, àquelas matas,
Doce cobertas de verdura e flores!
Depois, erguendo o esquálido cadáver
Sobre a cabeça, horrivelmente belo,
Aos seus o mostra ensangüentado e torpe; Então por vezes três o horrendo grito
Do triunfo soltou; e os seus três vezes
O mesmo grito em coro repetiram
Aquela massa enfim côa nos ares;
Porem na destra do feliz guerreiro
Dividem-se entre os dedos as melenas,
De cujo crânio marejava o sangue!
Transbordando ufania do sucesso
Inda recente, recordava as fases
Orgulhos o guerreiro! Ainda escuta
A dura voz, inda a figura avista
Desse, que ousou atravessar-lhe as sanhas: Lembra-se! e da lembrança grato enlevo
Lhe côa n’alma em fogo: longos olhos
Em quanto assim medita, vai levando
Por onde o rio, em tortuosos giros,
Queixoso lambe as empedradas margens.
Assim o jugo seu não escorjassem
Tredos Gamelas co’a noturna fuga!
Pérfidos!o herói jurou vingar-se!
Tremei! qu’há de o valente debelar-vos!
E em quanto segue o céu, e o rio, e as selvas, Crescem-lhe brios, força, –– alteia o colo, Fita orgulhos a terra, onde não acha,
Nem crê achar quem lhe resista; eis nisto Reconhece um dos seus, que pressuroso
Corre a encontra-lo, – rápido caminha;
Porém d’instante a instante, d’enfiado
Volta o pávido rosto, onde se pinta
O susto vil, que denuncia o fraco.
– Ó filho de Jaguar – de longe brada,
Neste aperto nos vale, – ei-los se avançam Pujantes contra nós, tão bastos, tantos, Como enredados troncos na floresta.
Tu sempre tremes, Jurucei, tornou-lhe
Com voz tranqüila e majestosa o chefe.
O mel, que em falas sem cessar distilas, Tolhe-te o esforço e te enfraquece a vista: Amigos são talvez, amigas tribos,
Algum chefe, que tem conosco as armas,
Em sinal d’aliança, espedaçado:
Vem talvez festejar o meu triunfo,
E os seus cantores celebrar meu nome.
“Não!não! ouvi o som triste e sonoro
Sas igaras, rompendo a custo as águas
Dos remos manejados a compasso,
E os sons guerreiros do boré, e os cantos Do combate; parece, d'irritado,
Tão grande peso agora a flor lhe corta,
Que o rio vai sorver as altas margens”.
E são Gamelas? – perguntou-lhe o chefe.
“Vi-os, tornou-lhe Jurucei, são eles!”
O chefe dos Timbiras dentro d’alma
Sentiu ódio e vingança remorde-lo.
Rugiu a tempestade, mas lá dentro,
Cá fora retumbou, mas quase extinta.
Começa então com voz cavada e surda.
Irás tu, Jurucei, por mim dizer-lhes:
Itajubá, o valente, o rei da guerra,
Fabricador das incansáveis lutas,
Em quanto a maça não sopesa em quanto
Dormem-lhe as setas no carcaz imóveis,
Of’rece-vos liança e paz; – não ama,
Tigre repleto, espedaçar mais presas,
Nem quer dos vossos derramar mais sangue.
Três grandes Tabas, onde heróis pululam, Tantos e mais que vós, tanto e mais bravos, Caídas a seus pés, a voz lhe escutam.
Vós outros, atendei, – cortai nas matas
Troncos robustos e frondosas palmas,
E construí cabanas, – onde o corpo
Caiu do rei das selvas, – onde o sangue Daquele herói, vossa perfídia atesta.
Aquela briga enfim de dois, tamanhos,
Sinalai; por que estranho caminheiro,
Amigas vendo e juntas nossas tabas,
E a fé, que usais guardar, sabendo, exclamem: Vejo um povo de heróis e um grande chefe!
Disse: e vingando o cimo d’alto monte,
Que em roda largo espaço dominava,
O atroador membi soprou com força.
O tronco, o arbusto, a moita, a rocha, a pedra, Convertem-se em guerreiros.-- mais depressa, Quando soa o clarim, núncio de guerra,
Não sopra, e escava a terra, e o ar divide Co’as crinas flutuantes, o ginete,
Impávido, orgulhoso, em campo aberto.
Da montanha Itajubá os vê sorrindo,
Galgando vales, combros, serranias,
Coalhando o ar e o céu de feios gritos.
E folga, por que os vê correr tão prestes Aos sons do cavo búzio conhecido,
Já tantas vezes repetidos antes
Por vales e por serras; já não pode
Numera-los, de tantos que se apinham;
Mas vendo-os, reconhece o vulto e as armas Dos seus: “Tupã sorri-se lá dos astros,
– Diz o chefe entre si, – lá, descuidosos Das folganças de Ibaque, heróis timbiras Contemplam-me, das nuvens debruçados:
E por ventura de lhes ser eu filho
Enlevam-se, e repetem, não sem glória,
Os seus cantores d’Itajuba o nome.
Vem primeiro Jucá de fero aspecto.
Duma onça bicolor cai-lhe na fronte
A pel’ vistosa;sob as hirtas cerdas,
Como sorrindo, alvejam brancos dentes,
E nas vazias órbitas lampejam
Dois olhos, fulvos, maus. – No bosque, um dia, A traiçoeira fera a cauda enrosca
E mira nele o pulo; do tacape
Jucá desprende o golpe, e furta o corpo; Onde estavam seus pés, as duras garras
Encravavam-se enganadas, e onde as garras Morderam, beija a terra a fera exangue
E, morta, ao vencedor tributa um nome.
Vem depois Jacaré, senhor dos rios,
Ita-roca indomável, – Catucaba,
Primeiro sempre no combate, – o forte
Juçurana, – Poti ligeiro e destro,
O tardo Japeguá, – o sempre aflito
Piaíba, que espíritos perseguem:
Mojacá, Mopereba, irmãos nas armas,
Sempre unidos, ninguém não foi como eles!
Lagos de sangue derramaram juntos;
Filhos e pais e mães d'imigas tabas
Odeiam-nos chorando, e a glória d’ambos, Assim chorada, mais e mais se exalta:
Samotim, Pirajá, e outros infindos,
Heróis também, aos quais faltou somente
Nação menor, menos guerreira tribo.
Japi, o atirador, quando escutava
Os sons guerreiros do membi troante,
Na tesa corda flecha embebe inteira,
E mira um javali que os alvos dentes,
Navalhados, remove: pára,escuta...
Volvem-lhe os mesmos sons: Bate-lhe o peito Os olhos pulam, – solta horrendo grito,
Arranca e roça a fera!... a fera atônita, Aterrada, transida, treme, erriça
As duras cerdas; tiritante, pávida,
Esgazeando os olhos fascinados,
Recua: um tronco só lhe embarga os passos.
Por longo trato, de si mesma alheia,
Demora-se, lembrada: a custo o sangue
Volve de novo ao costumado giro,
Em quando o vulto horrendo se recorda!
“Mas onde está Jatir? – pergunta o chefe, Que debalde o procura entre os que o cercam: Jatir, dos olhos negros, que me luzem,
Melhor que o sol nascendo, dentro d’alma; Jatir, que aos chefes todos anteponho,
Cuja bravura e temerário arrojo
Folgo em reger e moderar nos prélios;
Esse, porque não vem, quando vos vindes?”
– Corre Jatir no bosque, diz um chefe
Bem sabes como: acinte se desgarra
Dos nossos, – andal só, talvez sem armas, Talvez bem longe: acordo nele é certo,
Creio, de nos tachar assim de fracos! –
Pais de Jatir, Ogib, entrara em anos;
Grosseiro cedro mal lhe afirma os passos, Os olhos pouco vêem; mas de conselho
Valioso e prestante. Ali, mil vezes,
Havia com prudência temperado
O juvenil ardor dos seus, que o ouviam.
Alheio agora da prudência, escuta
A voz que o filho amado lhe crimina.
Sopra-lhe o dizer acre a cinza quente,
Viva, acesa, antes brasa, – o amor paterno: Amor inda tão forte na velhice,
Como no dia venturoso, quando
Cendi, que os olhos seus só viram bela,
Sorrindo luz de amor dos meigos olhos,
Carinhosa lho deu; quando na rede
Ouvia com prazer ass ledas vozes
Dos companheiros seus, – e quando absorto, Olhos pregados no gentil menino,
Bem longas horas, sim, porém bem doces
Levou cismando aventuradas sinas.
Ali o tinha, ali meigo e risonho
Aqueles tenros braços levantava;
Aqueles olhos límpidos se abriam
À luz da vida: cândido sorriso,
Como o sorrir da flor no romper d’alva,
Radiava-lhe o rosto: quem julgara,
Quem poderá aventar, supor ao menos
Haverem de apertar-se aqueles braços
Tão mimosos, um dia, contra o peito
Arquejante e cansado, – e aqueles olhos
Verterem pranto amargo em soledade?
Incrível! – porém lágrimas cresceram-lhe Dos olhos, – lá tombou-lhe uma, das faces No filho, em cujo rosto um beijo a enxuga.
Agora, Ogib, alheio da prudência,
Que ensina, imputações tão más ouvindo
Contra o filho querido, acre responde.
“São torpes os anuns que em bandos folgam, São maus os caitetus, que em varas pascem, Somente o sabiá geme sozinho,
E sozinho o Condor aos céus remonta.
Folga Jatir de só viver consigo:
Em bem, que tens agora que dizer-lhe?
Esmaga o seu tacape a quem vos prende,
A quem vos dana, afoga entre os seus braços, E em quem vos acomete, emprega as setas.
Fraco! não temes já que te não falte
O primeiro entre vós, Jatir, meu filho?”
Despeitoso Itajubá, ouvindo um nome.
Embora o de Jatir, apregoado
Melhor, maior que o seu, a testa enruga
E diz severo aos dois qu’inda argumentam Mais respeito, mancebo, ao sábio velho,
Qu’éramos nós crianças, manejava
A seta e o arco em defensão dos nossos.
Tu, velho, mais prudência. Entre nós todos O primeiro sou eu: Jatir, teu filho,
E forte e bravo; porém novo. Eu mesmo
Gabo-lhe o porte e a gentileza; e aos feitos Novéis aplaudo: bem maneja o arco,
Vibra certeira a flecha; mas...(sorrindo Prossegue) afora dele inda há quem saiba Mover tão bem as armas, e nos braços
Robustos, afogar fortes guerreiros.
Jatir virá, senão... serei convosco.
(Disse voltado para os seus, que o cercam) E bem sabeis que vos não falto eu nunca.
Altercam eles nas ruidosas tabas,
Em quanto Jurucei com pé ligeiro
Caminha: as aves docemente atitam,
De ramo em ramo – docemente o bosque
À medo rumoreja, – à medo o rio
Escoa-se e murmura: um borborinho,
Confuso se propaga, – um rio incerto
Dilata-se do sol doirando o ocaso.
Último som que morre, último raio
De luz, que treme incerta, quantos entes Oh! hão de ver a luz de novo
E o romper d’alva, e os céus, e a natureza Risonha e fresca, -- e os sons, e os ledos cantos Ouvir das aves tímidas no bosque
Outra vez ao surgir da nova aurora?!
CANTO SEGUNDO
Desdobra-se da noite o manto escuro:
Leve brisa subtil pela floresta
Enreda-se e murmura, – amplo silêncio
Reina por fim. Nem saberás tu como
Essa imagem da morte é triste e torva.
Se nunca, a sós contigo, a pressentisse
Longe deste zunir da turba inquieta.
No ermo, sim; procura o ermo e as selvas...
Escuta o som final, o extremo alento,
Que exala em fins do dia a natureza!
O pensamento, que incessante voa,
Vai do som â mudez, da luz às sombras
E da terra sem flor, ao céu sem astro.
Simelha a graça luz, qu’inda vacila
Quando, em ledo sarau, o extremo acorde
No deserto salão geme, e se apaga!
Era pujante o chefe dos Timbiras,
Sem conto seus guerreiros, três as tabas, Opimas, – uma e uma derramadas
Em giro, como dança dos guerreiros.
Quem não folgara de as achar nas matas!
Três flores em três hastes diferentes
Num mesmo tronco, – três irmãs formosas
Por um laço de amor ali prendidas
No ermo; mas vivendo aventuradas?
Deu-lhes assento o herói entre dois montes, Em chã copada de frondosos bosques.
Ali o cajazeiro as perfumava,,
O cajueiro, na estação das flores,
De vivo sangue marchetava as folhas?
As mangas, curvas à feição de um arco,
Beijavam-lhes o teto; a sapucaia
Lambia a terra , – em graciosos laços
Doces maracujás de espessas ramas
Sorriam-se pendentes; o pau-d’arco
Fabricava um dossel de cróceas flores,
E as parasitas de matiz brilhante
A úsnea das palmeiras estrelavam!
Quadro risonho e grande, em que não fosse Em granito eu em mármore talhado!
Nem palácios, nem Tôrres avistaras,
Nem castelos que os anos vão comento,
Nem grimpas, nem zimbórios, nem feituras Em pedra, que os humanos tanto exaltam!
Rudas palhoças só! que mais carece
Quem há de ter somente um sol de vida,
Jazendo negro pó antes do ocaso?
Que mais? Tão bem a dor há de sentar-se
E a morte revoar tão solta em gritos
Ali, como nos átrios dos senhores.
Tão bem a compaixão há de cobrir-se
De dó, limpando as lágrimas do aflito.
Incerteza voraz, tímida esp’rança,
Desejo, inquietação também lá moram;
Que sobra pois em nós, que falta neles?
De Itajubá separam-se os guerreiros;
Mudos, às portas das sombrias tabas,
Imóveis, nem que fossem duros troncos,
Pensativos meditam: Já da guerra
Nada receiam, que Itajubá os manda?
O encanto, os manitôs inda o protege,
Vela tupã sobre ele, e os santos piagas
Comprida série de floridas quadras
Ver lhe asseguram: nem de há pouco a luta, Melhor dissertas de renome ensejo,
Os desmentiu, que nunca os piagas mentem.
Medo, certo, não têm; são todos bravos!
Por que meditam pois? Também não sabem!
Sai o piaga no entanto da caverna,
Que nunca humanos olhos penetraram
Com ligeiro cendal os rins aperta,
Cocar de escuras plumas se debruça
Da fronte, em que se enxerga em fundas rugas O tenaz pensamento afigurado.
Cercam-lhe os pulsos cascavéis loquazes, Respondem outros, no tripúdio sacro
Dos pés. Vem majestoso, e grave, e cheio Do Deus, que o peito seu, tão fraco, habita.
E em quanto o fumo lhe volteia em torno, Como neblina em torno ao sol que nasce,
Ruidoso maracá nas mãos sustenta,
Solta do sacro rito os sons cadentes.
_________________
“Visita-nos Tupã, quando dormimos,
É só por seu querer que estão sonhamos/
Escute-me Tupã! Sobre vós outros,
Poder do maracá por mim tangido,
Os sonhos desçam, quando o orvalho desce.
“O poder de Anhangá cresce co’a noite;
Sota de noite o mau seus maus ministros: Caraibebes na floresta acendem
A falsa luz, que o caçador transvia.
Caraibebes enganosas formas
Dão-nos aos sonhos, quando nós sonhamos.
Poder do fumo, que lhes quebra o encanto, De vós se partam; masTupã vos olhe,
Descendo os sonhos, quando o orvalho desce.
“O sonho e a vida são dois galhos gêmeos; São dois irmãos quer um laço amigo aperta: A noite é o laço; mas Tupã é o troco
E a seve e o sagüi que circula em ambos.
Vive melhor que da existência ignaro,
Na paz da noite, novas forças cria.
O louco vive com aferro, em quanto
N1alma lhe ondeiam do delírio as sombras, De vida espúrias; Deus porém lhas rompe
E na loucura do porvir no fala!
Tupã vos olhe, e sobre vós do Ibaque
Os sonhos desçam, quando o orvalho desce!”
Assim cantava o piaga merencório,
Tangia o maracá, dançava em roda
Dos guerreiros: poderá ouvido atento
Os sons finais da lúgubre toada
Na plácida mudez da noite amiga
De longe, em côro ouvir? “Sobre nós outros Os sonos desçam, quando o orvalho desce.”
Calou-se o piaga, ka descansam todos!
Almo Tupã os comunique em sonhos,
E os que sabem tão bem vencer batalhas
Quando acordados malbaratam golpes
Saibam dormidos figurar triunfos!
Mas que medita o chefe dos Timbiras?
Bosqueja por ventura ardis de guerra,
Fabrica e enreda as ásperas ciladas,
E a olhos nus do pensamento enxerga
Desfeita em sangue revolver-se em gritos Morte pávida e má?! ou sente e avista,
Escandecida a mente, o Deus da guerra
Impávido Aresqui, sanhudo e forte,,
Calcar aos pés cadáveres sem conto,
Na destra ingente sacudindo a maça,
Donde certeira como o raio, desce
A morte, e banha-se orgulhosa – em sangue?
Al sente o bravo; outro pensar o ocupa!
Nem Aresqui,nem sangue se lhe antolha,
Nem resolve consigo ardis de guerra,
Nem combates, nem lágrimas medita:
Sentiu calar-lhe n’alma em sentimento
Gelado e mudo, como o véu da noite.
Jatir, dos olhos negros, onde pára?
Que faz que lida: ou que fortuna corre?
Três sóis já são passados: quanto espaço, Quanto azar não correu nos amplos bosques O impróvido mancebo aventureiro?
Ali na relva a cascavel se esconde,
Ali, das ramas debruçado, o tigre
Aferra traiçoeiro a presa incauta!
Reserve-lhe Tupã mais fama e glória,
E voz amiga de cantor suave
C’os altos feitos lhe embalsame o nome!
Assim discorre o chefe, que em nodoso
Tronco rudo-lavrado se recosta?
Não tem poder a noite em seus sentidos,
Que a mesma idéia de contínuo volvem.
Vela e treme nos tetos da cabana
A baça luz das resinosas tochas,
Acres perfumes recendendo; – alastram
De rubins cor de brasa a flor do rio!
“Ouvira com prazer um triste canto,
Diz lá consigo; um canto merencório.
Que este presságio fúnebre espancasse.
Bem sinto um não se que aferventar-se-me Nos olhos, que vai prestes expandir-se:
Não sei chorar, bem sei; mas fora grato, Talvez bem grato!à noite, e a sós comigo Sentir macias lágrimas correndo.
O talo agreste de um cipó em graça
Verte compridas lágrimas cortado
O tronco do cajá desfaz-se em goma,
Suspira o vento, o passarinho canta,
O homem cora! eu só, mais desditoso,
Invejo o passarinho, o tronco, o arbusto, E quem, feliz, de lágrimas se paga”
Longo espaço depois falou consigo,
Mudo e sombrio: “Sabiá das matas,
Croá (diz ele ao filho d’Iandiroba)
As mais canoras aves, as mais tristes
No bosque, a suspirar contigo aprendam.
Canta, pois que trocara de bom grado
Os altos feitos pelos doces carmes
Quem quer que os escutou, mesmo Itajubá.
Eudeceu: na taba quase escura,
Com pé alterno a dança vagarosa,
Aos sons do maracá, traçava os passos.
“Flor de beleza, luz de amor, Coema,
Murmurava o cantor, onde te foste,
Tão doce e bela, quanto o sol raiava?
Coema, quanto amor que nos deixaste?
Eras tão meiga, teu sorrir tão brando,
Tão macios teus olhos! teus acentos
Cantar perene, tua voz gorjeios
Ruas palavras mel! O romper d’alva,
Se encantos punha a par dos teus encantos Tentava embalde pleitear contigo!
Não tinha a ema porte mais soberbo,
Nem com mais graça recurvava o colo!
Coema, luz de amor, onde te foste?
“Amava-te o melhor, o mais guerreiro
Dentre nós? elegeu-te companheira,
A ti somente, que só tu achavas
Sorriso e graça na presença dele
Flor, que nasceste no musgoso cedro,
Cobravas páreas de abundante seiva,
Tinhas abrigo e proteção das ramas...
Que vendaval te despegou do tronco,
E ao longe, em pó, te esperdiçou no vale?
Coema, luz de amor, flor de beleza,
Onde te foste, quando o sol raiava?
“Anhangá rebocou estreita igara
Contra a corrente: Orapacém vem nela,
Orapacém, Tupinambá famoso
Conta prodígios duma raça estranha,
Tão alva como o dia, quando nasce,
Ou como a areia cândida e luzente,
Que as águas dum regato sempre lavam.
Raça, q quem os raios prontos servem,
E o trovão e o relâmpago acompanham
Já de Orapacém os mais guerreiros
Mordem o pó, e as tabas feitas cinza
Clamam vingança em vão contra os estranhos.
Talvez d’outros estranhos perseguidos,
Em punição talvez d’atroz delito.
Orapacém, fugindo, brada sempre:
Mair! Mair! Tupã! – Terror que mostra,
Brados que solta, e as derrocadas tabas, Desde Tapuitapera alto proclamam
Do vencedor a indômita pujança.
Ai! não viesse nunca as nossas tabas
O tapuia mendaz, que os bravos feitos
Narrava do Mair; nunca os ouviras,
Flor de beleza, luz de amor, Coema!
“A cega desventura, nunca ouvida,
Nos move à compaixão: prestes corremos
Com ledo gasalhado a restaura-los
Da vil dureza do seu fado: dormem
Nas nossas redes diligentes vamos
Colher-lhes frutos, -- descansados folgam Nas nossas tabas? Itajubá mesmo
Of’rece abrigo ao palrador tapuia!
Hospedes são, nos diz; Tupã os manda:
Os filhos de tupâ serão bem vindos,
Onde Itajubá impera! – Ao que não eram,
Nem filhos de Tupã, nem gratos hóspedes
Os vis que o rio, a custo, nos trouxera; Antes dolosa resfriada serpe
Que ao nosso lar creou vida e peçonha.
Quem nunca os vira! porem tu, Coema,
Leda avezinha, que adejavas livre,
Asas da cor da prata ao sol abrindo,
A serpente cruel porque fitaste,
Se já do olhado mau sentias pejo?!
“Ouvimos, uma vez, da noite em meio,
Voz de aflita mulher pedir socorro
/e em tom sumido lastimar-se ao longe.
Opacém! – bradou feroz três vezes
O filho de Jaguar: clamou debalde.
Somente acode o eco à voz irada,,
Quando ele o malfeitor no instinto enxerga.
Em sanhas rompe o chefe hospitaleiro,
E tenta com afã chegar ao termo,
Donde as querelas míseras partiam.
Chegou – já tarde! – nós, mais tardos inda, Assistimos ao súbito espetáculo!
“Queimam-se raros fogos nas desertas
Margens do rio, quase imerso em trevas:
Afadigados no labor noturno,
Os traiçoeiros hóspedes caminham,
Pejando à pressa as côncavas igaras.
Longe, Coema, a doce flor dos bosques,
Com voz de embrandecer duros penhascos,
Suplica e roja em vão aos pés do fero,
Caviloso tapuia! Não resiste
Ao fogo da paixão, que dentro lavra,
O bárbaro, que a viu, que a vê tão bela!
“Vai arrastá-la, – quando sente uns passos Rápidos, breves, – volta-se: – Itajubá!
Grita; e os seus, medrosos, receiando
A perigosa luz, os fogos matam.
Mas, no extremo clarão que eles soltaram, Viu-se Itajubá com seu arco em punho,
Calculando a distância, a força e o tiro: Era grande a distância, a força imensa...
“E a raiva incrível, continua o chefe,
A antiga cicatriz sentindo abrir-se!
Ficou-me o arco em dois nas mãos partido, E a frecha vil caiu-me sãos pés sem força.”
E assim dizendo nos cerrados punhos
De novo pensativo a fronte oprime.
“Sim, tornava o Cantor, Imenso e forte
Devera o arco ser, que entre nós todos
Só um achou, que lhe vergasse as pontas, Quando Jaguar morreu! – partiu-se o arco!
Depois ouviu-se um grito, após ruído,
Que as águas fazem no tombar de um corpo; Depois – silêncio e trevas...
–“Nessas trevas,
Replicava Itajubá, – inteira a noite,
Louco vaguei, corri d’encontro as rochas, Meu corpo lacerei nos espinheiros,
Mordi sem tino a terra já cansado:
Soluçavam porém meus frouxos lábios
O nome dela tão querido, e o nome...
Aos vis Tupinambás nunca os eu veja,
Ou morra, antes de mim, meu nome e glória Se os não hei de punir ao recordar-me
A aurora infausta que me trouxe aos olhos O cadáver...” Parou, que a estreita gorja Recusa aos cavos sons prestar acento.
“Descansa agora o pálido cadáver,
Continua o cantor junto à corrente
So regato, que volve areias d’ouro.
Ali agrestes flores lhe matizão
O modesto sepulcro, – aves canoras
Descantam tristes nênias so compasso
Das águas, que também nênia soluçam
“Suspirada Coema, em paz descansa
No teu florido e fúnebre jazigo;
Mas quando a noite dominar no espaço,
Quando a lua coar úmidos raios
Por entre as densas, buliçosas ramas,
Da cândida neblina veste as formas,
E vem no bosque suspirar co’a brisa:
Ao guerreiro, qu dorme, inspira sonhos,
E à virgem, que adormece, amor inspira.”
Calou-se o maracá rugiu de novo
A extrema vez, e jaz emudecido.
Mas no remanso do silêncio e trevas,
Como débil vagido, escutarias
Queixosa voz, que repetia em sonhos:
“Veste, Coema, as formas da neblina,
Ou vem nos raios trêmulos da lua
Cantar, viver e suspirar comigo.”
___________
Ogib, o velho pai do aventureiro
Jatir, não dorme nos vazios tetos:
Do filho ausente prendem-no cuidados;
Vela cansado e triste o pai coitado,
Lembrando-se desastres que passaram
Impróvidos, no bosque pernoitando.
E vela, – e a mente aflita mais se enluta, Quanto mais cresce a noite e as trevas crescem!
Já tarde, sente uns passos apressados,
Medindo a taba escura; o velho treme,
Estende a mão convulsa, e roça um corpo
Molhado e tiritante: a voz lhe falta...
Atende largo espaço, até que escuta
A voz do sempre aflito Piaíba,
Ao pé do fogo extinto lastimar-se.
“O louco Piaíba, a noite inteira,
Andou nas matas; miserando sofre;
O corpo tem aberto em fundas chagas,
E o orvalho gotejou fogo sobre elas;
Como o verme na fruta, um Deus maligno
Lhe mora na cabeça, oh! quanto sofre!
“Em quanto o velho Ogib está dormindo,
Vou-me aquecer;
O fogo é bom, o fogo aquece muito;
Tira o sofrer.
Em quanto o velho dorme, não me expulsa
D’ao pé do lar;
Dou-lhe a mensagem, que me deu a morte,
Quando acordar!
Eu via a morte: vi-a bem de perto
Em hora má!
Vi´-a de perto, não me quis consigo,
Por ser tão má.
Só não tem coração, dizem os velhos,
E é bem de ver;
Que, se o tivera, me daria a morte,
Que é meu querer.
Não quis matar-me; mas é bem formosa;
Eu vi-a bem:
É como a virgem, que não tem amores,
Nem ódios tem..
O fogo é bom, o fogo aquece muito,
Quero-lhe bem!”
Remexe, assim dizendo, as frias cinzas
E mais e mais conchega-se o borralho.
O velho entanto, erguido a meio corpo
Na rede, escuta pávido, e tirita
De frio e medo, – quase igual delírio
Castiga-lhe as idéias transtornadas.
“Já me não lembra o que me disse a morte!...
Ah! sim, já sei!
–Junto ao sepulcro da fiel Coema,
Ali serei:
Ogib emprazo, que a falar me venha
Ao anoitecer! –
O velho Ogib há-de ficar contente
Co’o meu dizer;
Talvez que o velho, que viveu já muito,
Queira morrer!”
Emudeceu: alfim tornou mais brando.
“Mas dizem que a morte procura mancebos, Porém tal não é:
Que colhe as florinhas abertas de fresco E os frutos no pé?!...
Não, não, que só ama sem folha as flores, E sem perfeição;
E os frutos perdidos, que apanha golosa, Caídos no chão.
Também me não lembra que tempo hei vivido, Nem por que razão
Da morte me queixo,que vejo, e não vê-me, Tão sem compaixão.”
As ânsias não vencendo, que o soçobram
Salta da curva rede Ogib aflito;
Trêmulo as trevas apalpando, topa,
E roja miserando aos pés do louco.
– “Oh! dize-me, se a viste, e se em tua alma Algum sentir humano inda se aninha,
Jatir, que é feito dele? Disse a morte
Haver-me cubiçado o moço imberbe,
A cara luz dos meus cansados olhos:
Oh dize-o! Assim o espírito inimigo
Folgados anos respirar te deixe!”
O louco ouviu nas trevas os soluços
Do velho, mas seus olhos nada alcançam:
Pasma, e de novo o seu cantar começa:
“Em quanto o velho dorme, não me expulsa D’ao pé do lar.”
– “Mas expulsei-te eu nunca?
Tornava Ogib a desfazer-se em pranto,
Em ânsias de transido desespero.
Bem sei que um Deus te mora dentro d’alma; E nunca houvera Ogib de espancar-te
Do lar, onde Tupã é venerado.
Mas fala! oh! fala, uma só vez repete-o: Vagaste à noite nas sombrias matas...”
“Silencio! brada o louco, não escutas:?!”
E pára, como ouvindo uns sons longínquos.
Depois prossegue: “Piaíba o louco
Errou de noite nas sombrias matas;
O corpo tem aberto em fundas chagas,
E o orvalho gotejou fogo sobre elas.
Geme e sofre e sente fome e frio,
Nem há quem de seus males se condoa.
Oh! tenho frio! o fogo é bom, e aquece,
Quero-lhe bem!”
– “Tupã, que tudo podes,
Orava Ogib em lágrima desfeito,
A vida inútil do cansado velho
Toma, se a queres; mas que eu veja em vida Meu filho, só depois me colha a morte!”
CANTO TERCEIRO
Era a hora em que a flor balança o cálix Aos doces beijos da serena brisa,
Quando a ema soberba alteia o colo,
Roçando apenas o matiz relvoso;
Quando o sol em doirando os altos montes, E as ledas aves à porfia trinam,.
E a verde coma dos frondosos cerros
Quando a corrente meio oculta soa
De sob o denso véu da parda névoa;
Quando nos panos das mais brancas nuvens Desenha a aurora melindrosos quadros
Gentis orlados com listões de fogo;
Quando o vivo carmim do esbelto cáctus
Refulge a mêdo abrilhantado esmalte,
Doce poeira da aljofradas gotas,
Ou pó sutil de pérolas desfeitas.
Era a hora gentil, filha de amores,
Era o nascer do sol, libando as meigas,
Risonhas faces da luzente aurora!
Era o canto e o perfume, a luz e a vida, Uma só coisa e muitas, – melhor face
Da sempre vária e bela natureza:
Um quadro antigo, que já vimos todos,
Que todos com prazer vemos de novo.
Ama o filho do bosque contemplar-te,
Risonha aurora, – ama acordar contigo;
Ama espreitar nos céus a luz que nasce,
Ou rósea ou branca, já carmim, já fogo,
Já tímidos reflexos, já torrentes
De luz, que fere oblíqua os altos cimos.
Amavam contemplar-te os de Itajubá
Impávidos guerreiros, quando as tabas
Imensas, que Jaguar fundou primeiro
Cresciam, como crescem gigantescos
Cedros nas matas, prolongando a sombra
Longes nos vales, – e na copa excelsa
Do sol estivo os abrasados raios
Parando em vasto leito de esmeraldas.
As três formosas tabas de Itajubá
Já foram como os cedros gigantescos
Da corrente impedrada: hoje acamados
Fósseis que dormem sob a térrea crusta,
Que os homens e as nações por fim sepultam No bojo imenso! – Chame-lhe progresso
Quem do extermínio secular se ufana:
Eu modesto cantor do povo exinto
Chorarei nos vastíssimos sepulcros,
Que vão do mar ao Andes, e do Prata
Ao largo e doce mar das Amazonas.
Ali me sentarei meditabundo
Em sítio, onde não oiçam meus ouvidos
Os sons freqüentes d’europeus machados
Por mãos de escravos Afros manejados:
Nem veja as matas arrasar, e os troncos, Donde chorando a preciosa goma,
Resina virtuosa e grato incenso
A nossa incúria grande eterno asselam:
Em sítio onde os meus olhos não descubram Triste arremedo de longínquas terras.
Aos crimes das nações Deus não perdoa:
Do pai aos filhos e do filho aos netos,
Por que um deles de todo apague a culpa, Virá correndo a maldição – contínua,
Como fuzis de uma cadeia eterna.
Virão nas nossas festas mais solenes
Miríade de sombras miserandas,
Escarnecendo, secar o nosso orgulho
De nação; mas nação que tem por base
Os frios ossos da nação senhora,
E por cimento a cinza profanada
Dos mortos, amassada aos pés de escravos.
Não me deslumbra a luz da velha Europa;
Há-de apagar-se mas que a inunde agora;
E nós?... sucamos leite mau na infância, Foi corrompido o ar que respiramos,
Havemos de acabar talvez primeiro.
América infeliz! – que bem sabia,
Quem te criou tão bela e tão sozinha,
Dos teus destinos maus! Grande e sublime Corres de pólo a pólo entre os sois mares Máximos de globo: anos da infância
Contavas tu por séculos! que vida
Não fora a tua na sazão das flores!
Que majestosos frutos, na velhice,
Não deras tu, filha melhor do Eterno?!
Velho tutor e avaro cubiçou-te,
Desvalida pupila, a herança pingue
Cedeste, fraca; e entrelaçaste os anos
Da mocidade em flor – às cãs e à vida
Do velho, que já pende e já declina
Do leito conjugal imerecido
À campa, onde talvez cuida encontrar-te!
Tu, filho de Jaguar, guerreiro ilustre,
E os teus, de que então vós ocupáveis,
Quando nos vossos mares alinhadas
As naus de Holanda, os galeões de Espanha, As fragatas de França, e as caravelas
E portuguesas naus se abalroavam,
Retalhado entre si vosso domínio,
Qual se vosso não fora? Ardia o prélio,
Fervia o mar em fogo a meia-noite,
Nuvem de espesso fumo condensado
Toldava astros e céus; e o mar e os montes Acordavam rugindo aos sons troantes
Da insólita peleja! – Vós, guerreiros,