Paixões, sentimentos morais e emoções. Uma história do poder emocional sobre o homem econômico por Daniel Pereira Andrade - Versão HTML
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA
Exemplar Original
PAIXÕES, SENTIMENTOS MORAIS E EMOÇÕES
Uma história do poder emocional sobre o homem econômico
Daniel Pereira Andrade
Tese apresentada ao Departamento de
Sociologia da Faculdade de Filosofia,
Letras
e
Ciências
Humanas
da
Universidade de São Paulo, para a
obtenção de título de Doutor em
Sociologia.
Orientador: Prof. Dr. José Carlos Bruni
v. 1
São Paulo
- 2011 -
Aos meus pais,
sempre.
Ao Eduardo,
porque toda nova vida traz consigo uma esperança para o mundo Ŕ que ela se realize!
Ao meu irmão, José Luis, e à minha amiga e cunhada, Sibela,
grandes companheiros.
2
AGRADECIMENTOS
Ao final desses anos de doutorado, há muitas pessoas a quem prestar
reconhecimento. De início, agradeço a confiança, o incentivo e a orientação de José
Carlos Bruni. Nesses dez anos em que trabalhamos juntos, Bruni foi para mim mais do
que um orientador, foi um exemplo de integridade intelectual e pessoal. Importante da
mesma forma para essa tese foi a co-orientação de Claudine Haroche, que me acolheu
na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), em Paris, para a realização
de meu doutorado-sanduíche em 2009. Os encontros e discussões sempre instigantes
muito me inspiraram para os novos rumos que a pesquisa seguiu após o exame de
qualificação. Mas esses novos rumos tampouco teriam sido possíveis sem as questões e
sugestões fundamentais que os professores que participaram da banca de qualificação,
Sérgio Adorno e Ângelo Soares, propuseram na ocasião. Por isso, a ambos sou muito
grato, pois, sem sua contribuição, este trabalho não teria sido possível. Do mesmo
modo, agradeço as críticas e observações dos professores da banca de defesa, Sérgio
Adorno, Nadya Araújo Guimarães, Maria Claudia Pereira Coelho e Isleide Fontenelle. E
não poderia deixar de agradecer também aos meus professores da FFLCH/USP, que me
formaram ao longo desses 15 anos de vida universitária e a quem tenho muita
admiração.
Muitos amigos e colegas foram valiosos interlocutores em relação às ideias
dessa tese, contribuindo direta ou indiretamente para a sua realização. Meus amigos
Rosa Maria Vieira e Paulo Douglas Barsotti, Rafael Alcadipani, Isleide Fontenelle,
Osvaldo López-Ruiz, Antônio Gelis, Seiji Uchida, Roberto Heloani, Antonio Valverde,
Marco Antonio Teixeira, Ricardo Bresler, Fernando Nogueira e muitos outros que
acompanharam e participaram do processo nas inúmeras conversas que tivemos na
Fundação Getúlio Vargas. Sou agradecido também aos meus companheiros de
doutorado com os quais compartilhei discussões e alguns chopes: Silvia Viana
Rodrigues, José César, Marta Kanashiro, Arlene Ricoldi, Fábio Cardoso, Juliana, Flávio
Moura, Lilian e demais colegas. E ainda um reconhecimento especial aos meus amigos
do grupo de estudos Sintoma Social, cujas discussões frutíferas muito auxiliaram no
desenvolvimento das ideias deste trabalho: Leandro Siqueira, Luciano Pereira, Arthur
Bueno e Nilton Ota.
3
Na sequência dos agradecimentos, uma constatação. Se, por um lado, nossa
existência é inevitavelmente solitária, pois somente nós podemos vivenciar aquilo por
que passamos (e que ninguém mais pode passar por nós), por outro, essa mesma
existência é rica de companhias, pois carregamos em nós os efeitos dos nossos
encontros e desencontros. Há muita gente na gente, há sempre em nós muito dos outros,
das nossas relações, do que vivemos juntos, sofremos juntos, sofremos separados, de
pessoas com quem compartilhamos tristezas e alegrias, que nos ajudaram a voltar a
sorrir, pessoas com quem nos perdemos juntos e com quem renascemos juntos. Amo
todas essas pessoas, amo cada uma de um jeito diferente, e carrego todas elas em mim,
como a marca inapagável desses anos muito intensos e, por vezes, extremamente
difíceis que atravessei no doutorado. Meus agradecimentos na ordem de acontecimentos
a Tábata Sales de Miranda, Francine Guerra Corrêa, Camila Pado, Mariana Côrtes,
João, Guido Marcondes, Miqueli Michetti, Paulo da Costa, Ludmila Abílio, Luiza
Stankevicins, Alessandra Bortoni, Fábio Cardoso, Rafael Alcadipani, Roberta Roque e
Carolina Roque. A Carolina Roque não posso deixar de agradecer o companheirismo e a
ajuda nesses estressantes momentos finais. Várias dessas pessoas se tornaram amigos
recentes, especialmente na minha passagem pela França. Aos meus amigos
“parisienses” ainda acrescento Aline Miklos, Fábio Leão, Bernardo Buarque de
Hollanda, Jacques Fux, Amanda Dias, Sheyla Schuvartz Zandonai, Alexandre Siqueira
de Freitas, Patrícia Rodriges e Guénolé Labéy-Guimard. Saudades de nossos cafés na
biblioteca da Maison des Sciences de l‟Homme e na Maison du Brésil.
Algumas pessoas estão ao nosso lado há tanto tempo que parece que sempre
estiveram lá e que lá sempre estarão, ocupando seu lugar de direito nos nossos afetos
mais profundos. Mudando elas ou mudando eu, sumindo por algum tempo ou estando
sempre presentes, seguimos juntos no nosso caminho. Meu muito obrigado aos meus
pais, Luis e Lusitana, ao meu irmão, José Luis, e à minha cunhada e amiga Sibela
Vasconcelos, e também a Selma Vasconcelos, Augusto Queiroz, Ivan Lisboa,
Alexandre Gordinho, Walter Oda, Daniela Pereira, Rodrigo C. Campos, Daniel Ortega,
Camila e Patrícia Gimenes, Gustavo Henrique Piccoli, Renata Vilela Sampaio, Márcio
Macedo, Petrônio de Tílio Neto, Antônio Gracias, Ciça Bueno, Alex Vega, Joana Saruê,
Maíra Saruê, Guilherme Flynn, Milena Tosca, Muryatan Barbosa, Rodrigo Linhares,
José Dutra e a toda a minha família Ŕ que gostaria de citar nominalmente, mas não
posso, pois resultaria em outras tantas páginas. Espero não ter me esquecido de
4
ninguém, mas, se ocorreu, minhas desculpas antecipadas Ŕ a memória às vezes nos
prega peças...
Não poderia deixar de reconhecer também o trabalho das secretárias do
departamento de sociologia da FFLCH/USP, especialmente Ângela e Irani, que sempre
me apoiaram institucionalmente em tudo de que precisei. E presto meu reconhecimento
também a Maria Helena Amaral, pela revisão cuidadosa do texto.
Por fim, agradeço à CAPES e ao CNPq, que financiaram esta pesquisa, e
novamente à CAPES, que financiou o meu doutorado-sanduíche em Paris.
5
SUMÁRIO
A governamentalidade e as concepções de vida “emocional” ............................... 33
PAIXÕES, SENTIMENTOS MORAIS E EMOÇÕES: A PROBLEMATIZAÇÃO
DA VIDA “EMOCIONAL” NA EMERGÊNCIA DO HOMO ŒCONOMICUS . 37
CAPÍTULO I – As paixões: motores naturais do homo œconomicus ...................... 41
A EMERGÊNCIA DO HOMO ŒCONOMICUS ...................................................... 41
AS PAIXÕES: MOTORES NATURAIS DO HOMO ŒCONOMICUS .................. 46
A transformação das paixões nos séculos XVII e XVIII........................................ 47
O cálculo e a razão enraizados nas paixões e no corpo sensível ............................ 57
A ordem espontânea dos interesses e o deslocamento da moral ............................ 68
CAPÍTULO II – Os sentimentos morais: reação conservadora e emergência do
O CONSERVADORISMO COMO ARTE DE GOVERNO ..................................... 73
CAPÍTULO III – As emoções: gestão psiquiátrica por meio dos instintos e
A EMERGÊNCIA DAS EMOÇÕES EM MEIO À PSICOLOGIA FÍSICA .......... 124
A emergência do conceito de emoções nos textos de Thomas Brown ................. 124
A apropriação das emoções de Thomas Brown pela psicologia física ................. 127
O HOMO PSYCHOLOGICUS E A GESTÃO PSIQUIÁTRICA DAS EMOÇÕES 129
A relação entre transgressão da norma, instinto e emoções ................................. 130
A gestão das emoções por meio dos instintos na tecnologia eugênica ................. 135
A gestão psicanalítica das pulsões e a substituição das emoções pelos afetos ..... 141
CONCLUSÃO DA PARTE I: Paixões, sentimentos e emoções ............................. 144
6
PARTE II:
O HOMEM ECONÔMICO EMOCIONAL E A PROBLEMATIZAÇÃO DA
VIDA “EMOCIONAL” PELO MANAGEMENT NO NEOLIBERALISMO ..... 151
CAPÍTULO IV - A emergência das “emoções” no âmbito da administração ...... 161
A EMERGÊNCIA DO MANAGEMENT COM A MODERNA EMPRESA DE
A EMERGÊNCIA DAS CIÊNCIAS DA ADMINISTRAÇÃO E A
PROFISSIONALIZAÇÃO DO MANAGEMENT .................................................. 173
A ADMINISTRAÇÃO CIENTÍFICA, O HOMO ŒCONOMICUS E AS PAIXÕES
O MARKETING COMO DISCIPLINARIZAÇÃO DA ECONOMIA DE
MERCADO E COMO DISCIPLINA ECONÔMICA ACADÊMICA .................... 187
A EMERGÊNCIA DA PSICOLOGIA NA ADMINISTRAÇÃO E A
CONSTRUÇÃO DO CONSUMIDOR COMO SER EMOCIONAL ...................... 200
A EMERGÊNCIA DA PSICOLOGIA INDUSTRIAL E A CONCEPÇÃO DO
TRABALHADOR COMO SER EMOCIONAL ...................................................... 212
AS EXPERIÊNCIAS DE HAWTHORNE E A EMERGÊNCIA DO
TRABALHADOR COMO SER SENTIMENTAL .................................................. 219
A ADMINISTRAÇÃO E A GESTÃO CONTRADITÓRIA DA VIDA
“EMOCIONAL” DE TRABALHADORES E CONSUMIDORES ........................ 230
CAPÍTULO V – As críticas do neoliberalismo e da contracultura ao fordismo
como condições de possibilidade do homem econômico emocional ...................... 236
O CAPITALISMO FORDISTA E SUA LÓGICA ADMINISTRATIVA ............... 237
A CONTESTAÇÃO AO FORDISMO: CONTRACULTURA E
A crítica da contracultura: a mobilização das emoções e dos sentimentos
ontológicos e coletivos contra a administração científica .................................... 243
Os resultados ambíguos da crítica da contracultura sobre a Administração ........ 268
A crítica do neoliberalismo: a renovação do homo œconomicus pela teoria do
A emergência do capital humano no discurso da Administração ......................... 286
As afinidades entre a contracultura e o neoliberalismo e a renovação do discurso da
CAPÍTULO VI – A emergência do homo œconomicus emocional no discurso das
CULTURA ORGANIZACIONAL: UMA NOVA ESTRATÉGIA DE CONTROLE
CONSUMO DE EXPERIÊNCIAS: NOVA ESTRATÉGIA DE CONTROLE DO
AS TRANSFORMAÇÕES DO TRABALHO: O TRABALHO IMATERIAL E SEU
DO TRABALHO IMATERIAL AO CAPITAL HUMANO ................................... 345
7
O HOMEM ECONÔMICO EMOCIONAL E O PODER EMOCIONAL .............. 370
8
RESUMO
Esta tese faz uma genealogia da concepção de “homem econômico
emocional”, tal como ele aparece no discurso do management americano a partir dos
anos de 1990. Para tanto, fez-se uma história de longa duração com a finalidade de
compreender como esse sujeito de interesse que estava associado à temática das
paixões nos séculos XVII e XVIII pôde se vincular à temática das emoções, surgida
apenas no século XIX, advinda da psicologia física e da biologia evolucionista. Para
realizar essa história, a tese foi dividida em duas partes. Na primeira, foi abordada a
emergência do homo œconomicus clássico no âmbito da governamentalidade liberal
britânica dos séculos XVII e XVIII e foram diferenciadas as três formas de
problematização e governo da vida “emocional” do sujeito de interesse: as paixões,
no âmbito da vertente utilitarista-radical do liberalismo, os sentimentos morais, no
âmbito da reação do conservadorismo, e as emoções, no âmbito da psicologia física e
do evolucionismo. Cada uma dessas três temáticas surgiu ainda no discurso
antropológico do sujeito de interesse, mas se desenvolveu em sentidos diferentes: as
paixões resultaram no homo œconomicus, os sentimentos morais, no homo socialis e
as emoções, no homo psychologicus. Na segunda parte da tese, demonstra-se como
essas três temáticas adentraram as ciências da administração americanas no século
XX, caracterizando o controle emocional sobre o trabalho e o consumo. Ainda no
discurso do management , essas temáticas se transformaram, em virtude da reação às
contestações antidisciplinares da contracultura, dando origem a uma nova concepção
de emoções que reúne características das três temáticas anteriores. O discurso do
management e, posteriormente, o da teoria econômica neoliberal vinculou essa nova
temática das emoções à noção de homem econômico, caracterizado agora pela ideia
de capital humano. Constituiu-se, assim, o homem econômico emocional, formando
uma distinta concepção antropológica e uma inédita coerência dos dispositivos de
poder emocional.
Palavras-chave: homem econômico; poder emocional; paixões; sentimentos morais;
emoções.
9
ABSTRACT
Passions, moral sentiments and emotions.
A history of emotional power over the economic man.
This thesis makes a genealogy of the "emotional economic man", as it emerged in the
U.S. management discourse since the 1990s. To do that, it has been drawn a history
of how to understand this "subject of interest" associated to the theme of passions in
the XVII and XVIII centuries. Such theme has been linked to the theme of emotions
that was only originated in the XIX century related to the biological psychology and
evolutionary biology. To carry out this history, this thesis has been divided in two
parts. At the first part, the emergence of homo economicus in the classical liberal
governmentality of British seventeenth and eighteenth centuries was discussed, and
three forms of government and questioning of his "emotional" life were
distinguished: the passions, under the utilitarian aspect of the radical liberalism; the
moral sentiments, in the backlash of conservatism; and the emotions in the
psychological and biological evolutionism. Each of these three themes arose in the
anthropological discourse of the subject of interest, but were developed in different
directions: the passions resulted in the homo economicus, the moral sentiments in the
homo socialis, and the emotions in the homo psychologicus. In the second part of the
thesis, it is shown how these three themes were inserted into the American
administration science discourse in the twentieth century, characterizing emotional
control over workers and consumers. Still in the discourse of management, these
issues were transformed due to the reaction against antidisciplinaries countercultural
contestations, giving rise to a new conception of emotions that includes
characteristics of the three themes featured above. This new theme of emotions will
be bound by the discourse of management and subsequently by the discourse of
economic theory regarding the economic man, which is now characterized by the
idea of human capital. The emotional economic man is thereby constituted, forming
a new anthropological concept and a new device of emotional power.
Key-words: economic man; emotional power; passions; moral sentiments; emotions.
10
A crítica ontológica de nós mesmos [...] deve conceber-se
como uma atitude, um ethos, uma vida filosófica em que a
crítica ao que somos é simultaneamente uma análise
histórica dos limites que se nos impõem e um experimento
que torna possível ultrapassá-los.
Ŕ Michel Foucault ( O que é a Ilustração? )
11
INTRODUÇÃO
O homem econômico é um ser “emocional”. Ele pode ser movido por suas
paixões, sentir moralmente nas suas relações com os outros e consigo mesmo, escapar
ao controle pelo automatismo involuntário de suas emoções, e ainda, pode gerir suas
próprias competências emocionais e as alheias para valorizar seu capital humano. Essas
diferentes concepções emocionais do homem econômico, no entanto, costumam ser
ofuscadas e esquecidas pela ênfase dada à sua fria racionalidade. É sempre a lógica de
maximização das utilidades pessoais ou o cálculo de investimento que são colocados em
primeiro plano, dando muitas vezes a entender que se trataria de um ser movido pura e
exclusivamente pelo cálculo racional da busca de interesses.
Desde sua emergência nos séculos XVII e XVIII, porém, a vida “emocional” do
homo œconomicus foi problematizada de diferentes formas. Ao oferecer definições
distintas sobre o que é a “emoção” de modo geral, quais são as suas fontes causadoras,
como ela se relaciona com as demais faculdades da mente e com as diferentes
concepções sobre o corpo, como ela determina as condutas, as relações consigo mesmo
e com os outros e a vida em sociedade, as problematizações sobre a vida “emocional”
do homem econômico compõem os discursos antropológicos sobre ele e definem
estratégias para governá-lo. Os discursos sobre as “emoções” do homem econômico
são, pois, inseparáveis de estratégias de poder “emocional” que constroem
subjetividades e procuram moldar os seres humanos a ideais antropológicos e a
determinadas visões de ordem social.
Mais recentemente, ao menos desde meados da década de 1990, uma atenção
especial tem sido dedicada à participação das emoções nas condutas econômicas. Essa
figura particular do homem econômico emocional emergiu no discurso do management
americano e se difundiu pela teoria econômica neoliberal. Temáticas como as do capital
emocional, da inteligência emocional, do consumo de experiências, da cultura
organizacional, da liderança emocional, entre outras, têm ressaltado que a racionalidade
pura dos agentes econômicos, de trabalhadores e de consumidores é uma ficção, um
mito da filosofia e da cultura ocidentais que mais atrapalha do que ajuda na
compreensão dos fenômenos econômicos, na administração de pessoas nas organizações
e na gestão dos clientes no mercado. Juntamente com essas afirmações, discute-se
12
amplamente o que são as emoções e como elas podem ser administradas e/ou
autogeridas para se obterem desempenhos mais eficientes e se alavancarem os ganhos
econômicos. Constituiu-se, assim, essa figura antropológica do homem econômico
emocional com todo um conjunto de dispositivos de poder emocional para geri-lo e
construí-lo como tal.
O objetivo deste trabalho é fazer uma genealogia desse homem econômico
emocional que emergiu nas últimas duas ou três décadas no discurso do management
americano e da teoria econômica neoliberal. Tal objetivo acarreta fazer tanto uma
história do próprio homem econômico, como também das concepções gerais de vida
“emocional” ligadas a ele, as quais definiram diversos estilos de racionalidade de
governo “emocional” dos seres humanos, com diferentes dispositivos de poder.
A história do homo œconomicus tomada por modelo aqui é aquela proposta por
Michel Foucault em seu curso Naissance de la biopolitique (2004) e desenvolvida por
Christian Laval ( L’homme économique, 2007) e Christian Laval e Pierre Dardot ( La
nouvelle raison du monde, 2009) e Osvaldo López-Ruiz ( Os executivos das
transnacionais e o novo espírito do capitalismo, 2007). Essa história iniciou-se com a
emergência do chamado “sujeito de interesse” na filosofia britânica do final do século
XVII e no século XVIII, passou pela sua conversão em homo œconomicus pela teoria
econômica da segunda metade do século XIX e começo do século XX e se converteu
ainda na concepção de capital humano com os economistas neoliberais americanos da
segunda metade do século XX e início do XXI.
A questão central desta tese, no entanto, refere-se não tanto a uma história do
homem econômico em geral, mas a um objeto mais precisamente delimitado, que é a
história das concepções de vida “emocional” vinculadas a ele. É a problematização e o
governo “emocional” do homem econômico que constituem o objeto de uma história
genealógica aqui, embora evidentemente essas formas de problematização e governo
“emocionais” componham e sejam indistinguíveis da governamentalidade do próprio
homem econômico de modo geral. Por outro lado, essas problematizações “emocionais”
ultrapassam o homem econômico e se estendem para outras concepções antropológicas
como a do homo socialis e do homo psychologicus. Entretanto, o objeto da tese se refere
apenas à intersecção do homem econômico com essas diferentes concepções da vida
emocional, ou, se o ultrapassam, é somente quando as concepções de vida “emocional”
surgidas e desenvolvidas alhures convergem posteriormente para o homem econômico.
13
A história da problematização da vida “emocional” do homem econômico foi
acompanhada em duas fases e em dois conjuntos de discursos. Em primeiro lugar, na
filosofia britânica dos séculos XVII e XVIII, que constituiu a visão antropológica do
sujeito de interesse que fundamentou a teoria econômica clássica e neoclássica. Em
segundo lugar, no discurso do management americano dos séculos XX e XXI, já que ele
tanto incorporou a visão clássica do homo œconomicus, como a sua transformação pelos
economistas neoliberais da segunda metade do século XX. A atenção a esses discursos,
ao invés do foco na própria teoria econômica, se deve ao fato de que é por meio das
suas problematizações, e não da economia acadêmica, que as concepções “emocionais”
do homem econômico se constituíram e se vincularam a ele. Tanto a filosofia britânica
dos séculos XVII e XVIII, quanto as ciências da administração americanas do século
XX constituem discursos de governamentalidade, embora os primeiros tenham se dado
no âmbito estatal e os segundos no das grandes corporações. A governamentalidade, de
modo geral, é a racionalização discursiva das práticas de governo, ou seja, a reflexão
que determina seu domínio de atuação, seus diferentes objetos, suas regras gerais, seus
objetivos de conjunto, a fim de governar da melhor maneira possível (Foucault, 2004, p.
4).
Foucault concentrou suas análises nas formas de governamentalidade estatais,
mas é possível pensar que o discurso da Administração de Empresas cumpre nas
corporações o mesmo papel que o discurso da Administração Pública no âmbito do
Estado, embora atuando em outro nível, com um alcance menor e com finalidades
econômicas mais precisas. Pode-se falar também de uma governamentalidade
corporativa, especialmente no caso das grandes empresas. No âmbito do discurso do
management, o governo do homem econômico se desdobra no governo dos
trabalhadores e do mercado de consumidores e clientes. Esta tese, portanto, faz uma
história da governamentalidade “emocional” sobre o homem econômico.
Seria impossível, evidentemente, dar conta de tudo que os textos da filosofia
britânica e das ciências da administração americanas do período escreveram sobre as
“emoções”. Tampouco é essa a pretensão. O que se fez aqui foi apenas uma história,
dentre outras possíveis, da governamentalidade das “emoções”. Além disso, não se trata
de fazer uma história de emoções específicas, mas de concepções gerais sobre o que é a
vida “emocional”. Concepções que se constituem lentamente, cujas transformações só
podem ser observadas em uma história de longa duração. Como essas concepções gerais
são problematizadas em alguns textos teóricos centrais da filosofia e da ciência da
14
administração e perpassam o discurso sobre as emoções específicas, torna-se
desnecessária a leitura de um número excessivamente grande de textos. Mais
fundamental se torna a leitura dos textos-chave de formulação dessas concepções e
daqueles por meio dos quais as concepções são modificadas ou completamente
transformadas. Há também os textos de historiadores sobre essas concepções, que
servem tanto de fonte secundária como de seleção prévia das fontes primárias a serem
lidas.
Dentre os trabalhos desses historiadores, algumas aproximações e
distanciamentos marcam a questão aqui formulada. Em primeiro lugar, fazer uma
história da governamentalidade “emocional” do homem econômico contém algumas
armadilhas. A primeira delas é que o termo emoções, concepção que hoje em dia é a
predominante e abrangente para denominar essa classe de fenômenos, é ela mesma uma
parte dessa história, mais do que isso, o seu último capítulo, estando o seu conceito
vinculado a uma formação discursiva e a estratégias específicas de governo do homem
econômico. Fazer uma história das emoções seria, portanto, um anacronismo,
projetando uma determinada concepção de vida “emocional” no passado. Esse parece
ter sido o caso do livro de Robert Solomon, The passions: emotions and the meaning of
life (1993), no qual o autor traça a história de formação sob uma ótica negativa das
emoções por influência do ponto de vista racionalista predominante na filosofia e na
cultura ocidentais. Segundo essa perspectiva, as emoções e a razão seriam antagônicas,
e a última deveria se impor sobre o caráter inerentemente corporal, involuntário e
irracional das primeiras. No entanto, Solomon só pôde fazer essa generalização por não
diferenciar as emoções de outras concepções da vida “emocional” que a precedem e
prosseguem por vezes ao seu lado, como é o caso das paixões e dos sentimentos morais,
que envolvem em sua definição elementos cognitivos de cálculo e de julgamentos
morais.
Dessa forma, a história realizada neste estudo aproxima-se mais do modelo
proposto por outro historiador, Thomas Dixon. Em seu livro From passions to emotions
(2003), Dixon descreve uma história especificamente do termo emoção e do seu uso
teórico autônomo. Ele difere assim o conceito de emoções de outras concepções da vida
“emocional”, como as paixões, os sentimentos e os afetos, demonstrando que tal
categoria só emergiu nos anos de 1820 com os trabalhos de Thomas Brown e ganhou
um amplo uso com a apropriação do conceito na segunda metade do século XIX pela
psicologia física e pelo evolucionismo biológico.
15
Com essa significativa diferenciação em vista, dois cuidados foram adotados na
história aqui realizada. Em primeiro lugar, quando se afirma que se vai fazer uma
história da problematização e do governo das “emoções” ou da vida “emocional” do
homem econômico, colocou-se, prudentemente, o termo “emoções” e seus derivados
entre “aspas”. E essa estratégia, justamente, para evitar o anacronismo realizado por
Solomon e denunciado por Dixon. No entanto, como o termo “emoção” é o termo
genérico adotado hoje em dia para designar esse objeto comum às temáticas das
paixões, dos sentimentos morais e das emoções, e como estamos fazendo uma
genealogia dessa figura contemporânea do homem econômico emocional, conservamos
o termo como designação genérica dessas diferentes concepções. As aspas servem
especialmente para diferenciar quando estamos nos referindo de modo genérico ao
conjunto das diferentes concepções ou à vida “emocional” de forma geral e, na sua
ausência, quando estamos nos referindo ao uso histórico particular e delimitado do
termo emoções, que emergiu no século XIX e se tornou dominante ao longo e,
sobretudo, no final do século XX, quando foi transformado e assumiu outro sentido. De
certo modo, ao contar a história particular da concepção de emoção, acabou-se por
chegar a esta concepção de “emoções” dominante e abrangente na atualidade, presente
no conceito de homem econômico emocional e adotada, em alguma medida, por este
próprio trabalho.
Além do trabalho de Dixon, que enfatiza principalmente a história da concepção
de emoções, seguimos outros autores que têm o mesmo cuidado em relação à
singularidade do uso histórico do termo paixões. Os relevantes artigos de Erich
Auerbach, Passio als Leidenschaft, lido aqui em sua tradução francesa de 1998, e de
Pierre-François Moreau, Les passions: cotinuités et tournants, de 2003, e o livro de
Albert Hirschman, The passions and the interests, lido em sua tradução francesa de
1980, serviram de base para a compreensão dessa concepção na sua relação com o
homem econômico. Já em relação aos sentimentos morais [ moral sentiments], foi
preciso realizar por conta própria uma história do termo no chamado iluminismo
escocês ( Scottish Enlightenment) (Butler, 1996; Hume, 2001; Smith, 1999; Ferguson,
1995; Waszek, 1988 e 2003; Broadie, 2003 e outros) e seu posterior desenvolvimento
no âmbito do conservadorismo europeu (Nisbet, 1981 e 1987; Mannheim, 1982;
Durkheim, 1975, 1989, 1995, 2004 e 2008) e do romantismo alemão (Gusdorf, 1993).
As paixões, os sentimentos morais e as emoções são as três concepções que
foram mobilizadas para caracterizar a vida emocional do homem econômico ao longo
16
de sua história de quase quatro séculos. As paixões formaram a concepção inicial e
predominante de vida “emocional” do sujeito de interesse nos séculos XVII e XVIII, os
sentimentos morais se juntaram a ela ainda na primeira metade do século XVIII e as
emoções, apenas no século XIX. As emoções, no entanto, tornaram-se ao longo do
século XX o termo predominante e passaram por uma importante transformação a partir
do final da década de 1960 por meio da contracultura e, posteriormente, já na década de
1980, pela incorporação parcial da concepção da contracultura pelo discurso do
management, formando assim finalmente o homem econômico emocional.
Diferentemente dos historiadores que realizam antes de tudo uma história das
ideias, as concepções de paixões, sentimentos morais e emoções são colocadas em
relação ao governo especificamente do homem econômico, compondo não apenas seu
discurso antropológico, mas também a racionalização dos dispositivos de poder
“emocional” que incidem sobre ele. Ou seja, as concepções de vida “emocional” são
analisadas aqui como componentes de formas de governamentalidade. Dessa forma, as
“emoções”, os discursos e os poderes entram em relações recíprocas e a história
ultrapassa a história das ideias, adentrando uma discussão simultaneamente política,
sociológica, psicológica e econômica sobre a transformação das maneiras de sentir.
Outros sociólogos abordaram a questão da transformação das maneiras de sentir,
mas com base em outras questões teóricas. Stjepan Mestrovic, em seu Postemotional
society (1997), propõe o conceito de postemotionalism como substituto para o de pós-
modernidade. Dialogando com a tese de Jean Baudrillard sobre a morte do social,
Mestrovic afirma que, com a difusão dos meios de comunicação de massa, da televisão
em particular, os contatos humanos diretos teriam sido substituídos pelos contatos com
as imagens e representações. Porém, as imagens midiáticas absorvidas de modo privado
e mediadas por filtros cognitivos não seriam capazes de produzir a mesma efervescência
coletiva autêntica da espontaneidade dos grupos reunidos em assembleia. Daí resultaria
que humanos pós-emocionais tentassem desesperadamente recapturar a energia
emocional que era habitualmente realizada pela efervescência coletiva, ainda que
falhassem mais frequentemente do que obtivessem sucesso (Mestrovic, 1997, p. 102).
De acordo com Mestrovic, existe uma diferença fundamental entre os ritos
tradicionais que despertavam uma autêntica efervescência coletiva e as tentativas
mecânicas e rotineiras da sociedade pós-emocional de simulá-la sem sucesso. A
sociedade pós-emocional seria marcada, então, pela produção de emoções vicárias, pré-
embaladas para consumo, que seriam recicladas do passado ou extraídas de outros
17
contextos culturais. Ocorreria, assim, conforme o termo de George Ritzer, uma
“macdonalização” das experiências emocionais, ao lhes estender os valores da
mecanização, como a eficiência, a quantificação, o cálculo, a previsibilidade e o
controle. A disseminação dessas emoções ordenadas racionalmente e embaladas
artificialmente para consumo fracassam, segundo Mestrovic, em gerar efervescências
coletivas autênticas, promovendo assim não o fim da vida afetiva, mas uma
incapacidade de produzir e sustentar emoções coletivas e um consequente
empobrecimento da consciência coletiva. Com isso, haveria uma expressiva
fragmentação da solidariedade social e a cisão em grupos particulares de gênero, raça,
etnia, tribos urbanas e uma série de outras divisões que trazem conflito e não
solidariedade. Mestrovic chama de “balkanization” a essa fragmentação social em
pequenos grupos associada a emoções artificialmente produzidas.
Apenas muito parcialmente este trabalho se alinha com as afirmações de
Mestrovic. Em primeiro lugar, é muito complicada a ideia de que a efervescência
coletiva autêntica teria acabado e que teriam sobrado apenas emoções racionalmente
ordenadas e sem espontaneidade, produzidas por tentativas mecânicas e rotineiras de
retomar sem sucesso os rituais tradicionais. A contracultura, por exemplo, parece ter
produzido com bastante sucesso a experiência extática, não apenas por meio do uso de
drogas, mas também por meio de festas, reuniões coletivas e vínculos comunitários. É
bem verdade que os managers procuraram se apropriar dessa efervescência coletiva da
contracultura não somente na esfera do consumo, com a comercialização de
experiências emocionais, como também na esfera do trabalho, com a tentativa de
converter a empresa em uma comunidade com rituais, cerimônias, símbolos e missões,
conforme se observa na temática da cultura organizacional. Por um lado, isso realmente
quer dizer que há uma racionalização estratégica da produção das “emoções”, inclusive
das “emoções” coletivas, com uma tentativa de transformá-las em algo previsível,
controlado e até mesmo mensurável, segundo se pode ver nos surveys de clima
organizacional. Mas da produção deliberada e calculada do êxtase coletivo não se pode
deduzir uma “artificialidade” das emoções, que esses rituais sejam sempre falsificações
insuficientes e que as experiências sejam na verdade quase-emoções, sem a completude
extática das reuniões espontâneas. A própria espontaneidade dos ritos tradicionais pode
ser questionada, uma vez que eles poderiam ser deliberadamente produzidos, embora
não por empresas privadas visando ao lucro.
18
Além disso, as estratégias de ordenação racional das “emoções” por formas de
governo diversas não é uma novidade das últimas três décadas, nem mesmo a ordenação
das “emoções” para fins econômicos. É bem verdade que há, sim, uma transformação
nas estratégias de administração e controle da vida “emocional” a partir dos anos de
1980, o que não significa que não houvesse estratégias anteriores, apenas que elas
diferiam na sua concepção da vida “emocional” e no modo de governá-la. Já o
liberalismo clássico possuía uma problematização da vida “emocional” fundamentada
nas paixões, que deveriam ser controladas pelo cálculo de interesse, o qual não se
opunha às paixões, mas se derivava delas e era mobilizado como a melhor maneira de
realizá-las. A crítica de que o liberalismo promovia um frio racionalismo calculista,
crítica feita pelos conservadores, que mobilizavam o sentimentalismo romântico para se
opor ao utilitarismo e aos direitos naturais, era uma crítica injusta. O que estava em jogo
de fato era a contraposição de duas concepções da vida “emocional” e do modo de
governá-las: as paixões do liberalismo contra os sentimentos morais da crítica
conservadora. O moderno “sujeito de interesse” encontrava-se, pois, no centro dessa
contenda.
O mesmo pode ser dito com relação às estratégias de controle mobilizadas pelo
management. A ideia, defendida, por exemplo, por Nicole Aubert (1994), de que o
controle passaria por uma fase disciplinar taylorista, em que o poder visaria somente ao
corpo, depois por uma fase caracterizada pelo movimento das Relações Humanas, na
qual o poder se deslocaria do corpo para o registro “afetivo e do coração”, e, por fim,
para uma última fase, a atual, em que um novo “sistema managerial” ( système
managinaire) se voltaria para o registro psíquico de modo a “controlar e utilizar da
melhor forma possível a energia psíquica dos indivíduos se esforçando de início para
captar seu imaginário, depois, em seguida, de canalizá-lo para objetivos precisos de
produção e performance” não parece ser inteiramente correta (Aubert, 1994, p.119-120).
É bem verdade que há diferenças essenciais nas estratégias do taylorismo, das relações
humanas e do management contemporâneo na forma como problematizam e gerem as
“emoções”, mas todos tratam e se voltam para a vida “emocional” visando controlá-la.
O taylorismo, ao retomar o modelo disciplinar do utilitarismo liberal e sua visão
antropológica do sujeito de interesse, não se voltou apenas para o corpo, mas também
para as paixões egoístas do trabalhador; o movimento das Relações Humanas, ao
retomar o discurso conservador da sociologia de Durkheim e de Le Play (Mayo, 1945),
atuou sobre os sentimentos morais coletivos; e o management atual colocou as emoções
19
no centro de seus dispositivos de controle, uma concepção de emoções que se
transformou a partir dos anos de 1980 como resposta dos managers aos movimentos
antidisciplinares da contracultura. Desse modo, não obstante Nicole Aubert percebesse
o importante deslocamento das estratégias de gestão, ela se equivocou ao ignorar que
todas essas estratégias se voltaram, partindo de concepções e métodos diferentes, para o
controle da vida “emocional”.
Eva Illouz, em seu Cold intimacies. Emotions and late capitalism (citado aqui
em sua tradução francesa de 2006) parece ter mais clareza com respeito à relação
permanente entre as relações econômicas capitalistas e uma cultura das emoções ou
sentimentos [ feelings]. Cultura emocional que, a seu ver, seria extremamente
profissionalizada e formaria uma ordem emocional que daria sustentação ao modelo
econômico. A autora fala assim de um “capitalismo emocional” (Illouz, 2006, p. 18):
O capitalismo emocional é uma cultura na qual as práticas e os discursos emocionais e
econômicos se influenciam mutuamente, levando assim a um vasto movimento no qual os afetos
tornam-se um componente essencial do comportamento econômico e no qual a vida emocional Ŕ
em particular aquela dos membros das classes médias Ŕ obedece à lógica das relações e das
trocas econômicas. Inevitavelmente, os temas da „racionalização‟ e da transformação das
emoções em mercadorias são recorrentes [...] eu não pressuponho que a economia e as emoções
poderiam ser (ou deveriam ser) rigorosamente separadas. De fato, as atitudes culturais fundadas
sobre a existência do mercado influenciam as relações interpessoais e as relações emocionais, no
entanto as relações interpessoais estão no núcleo das relações econômicas. Mais exatamente,
uma mistura se opera entre as atitudes ligadas ao mercado e a linguagem da psicologia; juntos,
estas atitudes e esta linguagem propuseram novas técnicas e novos conteúdos para forjar novas
formas de sociabilidade.
Eva Illouz parece estar correta em sua observação. Todavia, ao longo de seu
texto, a autora parece sobrevalorizar o papel da psicologia e particularmente da
psicanálise freudiana nessa formação de uma cultura emocional, ainda que o uso feito
dessa psicologia apareça mesclado a outros discursos como os do management e do self
made man tipicamente norte-americano. A autora também reconhece expressamente
uma mudança no “estilo emocional” a partir dos anos de 1970, quando os primeiros
psicólogos industriais voltados para a disciplinarização do indivíduo, para as dimensões
irracionais das relações de trabalho e para os sentimentos dos grupos informais de
trabalhadores cederam lugar para uma ética comunicacional das empresas. Nessa
passagem, as técnicas terapêuticas aliadas ao management colocariam as emoções no
20
centro das relações de trabalho, constituindo microesferas públicas que proporcionariam
uma racionalização da expressão das emoções. Do lado do indivíduo, essa
racionalização se converteria em técnicas de gestão de si para a coordenação inter e
intraemocional. Illouz também parece exagerar o papel da psicanálise freudiana nesse
último caso, ao afirmar que seria uma mistura de suas técnicas terapêuticas com a
autoajuda derivada do self made man típico do liberalismo americano que acabaria
resultando em técnicas como a da inteligência emocional e nos conceitos de capital
emocional.
Embora o livro de Illouz tenha muitos méritos e dê conta de transformações
importantes, parece pecar por duas razões inseparáveis: a primeira é que, ao partir de
uma definição unificadora das emoções, a qual é característica da concepção
contemporânea do que são as emoções, e que historicamente se formou a partir dos anos
de 1980, ela projeta essa visão unificadora no passado e com tal postura tem
dificuldades de perceber como as distintas concepções de vida “emocional” levam a
diferentes estratégias de gestão da subjetividade. Ao tentar não só traçar essa história
unificada das emoções no capitalismo, mas também explicar as mudanças de estilo
“emocional”, Illouz acaba elegendo e sobrevalorizando uma única concepção de vida
“emocional”, a de emoções derivada da psicologia. Certamente esta, apesar de não ser a
única, é uma concepção significativa que, para sorte de Illouz, sofreu a transformação
decisiva ao longo do século XX, o que permite a maior penetrabilidade da sua pesquisa.
Entretanto, ao enfatizar somente a contribuição da concepção de emoções da psicologia,
Illouz deixa de dar conta ou apenas tangencia outros acontecimentos relevantes da
história dessa relação entre o homem econômico e as “emoções”.
Por fim, Claudine Haroche, em A condição sensível (2008), observa a longa
transformação das maneiras de sentir que se apoia em um duplo processo inter-
relacionado: o colapso das maneiras moderadoras e a intensificação e aceleração dos
fluxos sensoriais contemporâneos por meio das novas tecnologias informacionais e
comunicacionais que multiplicam as imagens e as encadeiam ininterruptamente. No
primeiro caso, seguindo uma trilha aberta por Alex de Tocqueville, Norbert Elias e
Marcel Mauss, Haroche relaciona as maneiras sociais e as posturas corporais
codificadas (atitudes de polidez, consideração, estima, honra, entre outras) com um
imperativo de moderação que cria um distanciamento entre as pessoas e uma fronteira
entre o homem interior e exterior, alternando exibição pública e recolhimento. Essa
moderação incide sobre o corpo e a subjetivação dos sujeitos, criando uma relação de si
21
para consigo que valoriza a estabilidade e que é condição de possibilidade da própria
interiorização, do pensamento reflexivo, da representação, da imaginação e do
sentimento de si, conformando a identidade pessoal e a noção de pessoa.
A desvalorização das maneiras, da moderação e do distanciamento interpessoal,
nas sociedades democráticas ocidentais do século XX, acarretou expressivas mudanças
nas maneiras de sentir e de sentir a si mesmo, constituindo alterações importantes no
individualismo contemporâneo. O apagamento das fronteiras entre o homem interior e o
exterior, entre os corpos institucionais e os corpos individuais, o aumento da
proximidade, da familiaridade e do informal constituiria um colapso espacial dos
contornos do indivíduo, culminando em uma indiferenciação, em uma fusão com a
exterioridade. O fim dos limites fez com que o indivíduo fosse afetado e se submetesse
ao que lhe afetava do exterior. Haroche se situa, nesse sentido, na tradição de Georg
Simmel, Walter Benjamin e outros da discussão sobre as “vivências de choque” que o
excesso de estímulos da vida moderna produz sobre as subjetividades.
Atualizando essa discussão, Haroche observa o seu agravamento, na medida em
que os fluxos sensoriais são intensificados, acelerados e produzidos de forma contínua
pelas novas tecnologias informacionais e comunicacionais inseridas na lógica das trocas
capitalistas. Sua ação sobre sujeitos que perderam os limites estabilizadores de si
mesmos, que eram constituídos pela moderação das maneiras, acarretaria, então,
mudanças antropológicas profundas. Os sujeitos seriam reduzidos progressivamente às
suas sensações físicas voláteis, a emoções instantâneas e a pensamentos instrumentais
imediatistas, desfazendo o sentimento de si mesmo (que presume a estabilidade), a
identidade pessoal, a noção de pessoa e a possibilidade de pensamento reflexivo
profundo, que envolve distanciamento, imaginação e representação do mundo, e, por
fim, minando a possibilidade dos próprios sentimentos entre as pessoas, já que os laços
sociais dependem também da estabilidade de relações de longa duração.
Algumas das questões mencionadas por Claudine Haroche são retomadas aqui,
mas pensadas do ponto de vista da governamentalidade “emocional”. A subjetivação e a
conformação da noção de pessoa são abordadas do ponto de vista de que tipo de sujeito
e mesmo de ser humano o discurso das diferentes formas de poder procuram promover
no que se refere a essa concepção antropológica do homem econômico. Com tal
discurso, simultaneamente científico e normativo sobre os seres humanos, ao afirmar
uma verdade que o sujeito deve reconhecer em si mesmo e que os outros devem
reconhecer nele, procuram-se moldar as emoções, a identidade, a relação consigo
22
mesmo e com os outros e a ordem social. Assim, as diferentes formas de governo das
“emoções” podem produzir tanto moderação quanto intensificação e aceleração do fluxo
emocional, e até produzir moderação em uma esfera (do trabalho, por exemplo) e
intensificação e aceleração em outras (como no consumo); podem induzir relações
emocionais consigo mesmo e com os outros de curta ou de longa duração, de maior ou
menor intensidade, relações que proporcionem uma expressão emocional espontânea ou
controlada, que selecionem o que deve e o que não deve ser sentido, o que deve ou não
deve e como deve ser manifestado, regulando a intensidade, a forma e a frequência das
emoções e da sua exposição. Enfim, as diferentes governamentalidades emocionais
produzem diferentes regras emocionais e de expressão, no sentido que Arlie Hochschild
dá aos termos.
Ainda assim, é possível concordar com Haroche com relação a que, desde a
contracultura e posteriormente com a incorporação de parte de seu discurso e de suas
práticas pelo management, há o estímulo a uma maior manifestação de determinadas
expressões emocionais (não de todas, pois a agressividade, por exemplo, é
completamente recusada) e existe, ainda, uma intensificação dos fluxos emocionais
provocada pelas novas estratégias de controle do trabalho e do consumo e pela nova
coerência criada entre elas por compartilharem uma mesma concepção de emoções
(ainda que nem sempre o fato de compartilharem uma mesma concepção “emocional”
garanta a coerência, pois o sentido do governo pode variar, podendo um governo
moderar e outro, intensificar as mesmas “emoções”, criando uma contradição, como se
verá no capítulo IV). No entanto, duas nuances precisam ser feitas: primeiro, que a
estratégia do management de intensificação do fluxo emocional dos consumidores (não
dos trabalhadores) existe desde o começo do século e, segundo, que há, ainda hoje em
dia, formas de relação de si para consigo que incitam a moderação de certas emoções,
ao mesmo tempo em que intensificam e aceleram o fluxo de outras.
As técnicas de Inteligência Emocional, introduzidas no âmbito do homem
econômico pensado como capital humano, instigam o sujeito a moderar por sua própria
conta as emoções “negativas” e “irracionais” de medo, ansiedade, desmotivação,
depressão, sofrimento, frustração, agressividade e outras que podem derivar da
precarização do trabalho, das reestruturações incessantes das empresas, da efemeridade
das relações nas redes e equipes de trabalho e da competição acirrada no mercado. Por
outro lado, porém, o sujeito econômico deve se submeter voluntariamente e, mais do
que isso, promover por sua própria conta as emoções requeridas pelos managers das
23
empresas para se valorizarem no mercado de trabalho. Ele deve, pois, se submeter
voluntariamente a uma gestão das suas emoções que intensifica e acelera o fluxo
emocional no âmbito do consumo, como se dá na chamada economia de experiências, e
também deve espontaneamente se sujeitar e mesmo assumir por conta própria a
produção das emoções demandadas para o trabalho, como é o caso da automotivação e
dos sentimentos morais, mesmo que as condições de possibilidade dessas “emoções”
tenham sido eliminadas pela “flexibilização” das empresas.
Em concordância com a discussão que esses três autores (Mestrovic, Illouz e
Haroche) apresentam sobre as maneiras de sentir, concorda-se que haja, nas últimas
décadas, ou mesmo nos últimos séculos, transformações fundamentais nas “emoções”.
O que há de específico nesta tese, porém, é como se faz essa história das transformações
das maneiras de sentir, já que se parte das governamentalidades “emocionais”, e de
como as suas diferentes concepções do que é a vida “emocional” acarretam estratégias
outras para geri-las, que interagem entre si, criam contra-efeitos, suscitam resistências e
se transformam para responder aos novos desafios, constituindo por fim, no momento
atual, uma nova e inédita coerência dos dispositivos de poder emocional, a qual não
deixa também de produzir contra-efeitos que se procura controlar, contornar ou
canalizar para seu próprio proveito.
Por conseguinte, a genealogia do homem econômico emocional contemporâneo
é a história das diferentes formas de governamentalidade “emocional” sobre o homem
econômico até chegar à sua versão atual, com sua concepção específica da vida
“emocional”, com a inédita coerência dos dispositivos de poder que ela organiza e com
os problemas “emocionais” que ela desperta.
METODOLOGIA TEÓRICA
Para a realização da análise histórica do homem econômico emocional, é
adotada aqui a genealogia de Michel Foucault vinculada aos princípios do
construcionismo social das emoções de Rom Harré. Deste modo, as “emoções” já são
pensadas a partir de uma determinada concepção atual do que elas são. De fato, não
parece ser possível proceder sem um pressuposto metodológico sobre elas. Ainda assim,
esse pressuposto deve informar somente o método da análise, e não os seus resultados.
Ou seja, o fato de partirmos de uma formação discursiva que possui uma concepção
unificada sobre as “emoções” (a ideia de que as emoções, embora corporais, são
24
socialmente construídas por meio de discursos, práticas e relações), não deve nos levar a
ignorar que essa unidade de concepção é constituída apenas no presente, mas que no
passado houve múltiplas concepções, ligadas a diferentes discursos e estratégias de
controle da vida “emocional”. É justamente essa a história que se procura contar. Os
pressupostos teórico-metodológicos dessa história são apresentados a seguir.
História do presente
Tal como Foucault, propõe-se fazer aqui uma “história do presente” (Foucault,
1999d, p. 29). Segundo Robert Castel (1998, p. 23), isto significa um esforço de
reentender o surgimento do mais contemporâneo, reconstruindo o sistema das
transformações de que a situação atual é herdeira. Voltar-se para o passado com uma
questão que é a nossa questão hoje, e escrever o relato de seu advento e de suas
principais peripécias. Ainda segundo Castel (1998, p. 29 e 1997), se, de fato, é proibido
fazer-se um uso do passado que contrarie as exigências da metodologia histórica, no
entanto é legítimo interrogar o material histórico com questões que os historiadores não
lhe apresentaram necessariamente, e reorganizá-lo a partir de outras categorias. Não se
trata de reescrever nem de rever a história, mas de relê-la, isto é, produzir, com dados
pelos quais se é inteiramente devedor aos historiadores, outro texto que, ao mesmo
tempo, tenha sua própria coerência a partir de um esquema de leitura sociológica e seja
“com-possível” com o relato dos historiadores.
Nesta história do presente, não se trata de um anacronismo. Isto porque a
“história do pensamento” proposta por Foucault tem como objetivo “definir as
condições nas quais o ser humano problematiza o que ele é e o mundo no qual ele vive”
(Foucault, 1984a, p. 14). Desse modo, ele volta-se para a história visando questões que
o passado colocou a si mesmo, mas que, a pesar da singularidade como foram
colocadas, encontram-se no quadro de uma mesma problematização atual, ou seja, de
um feixe unificado de questões com características comuns (cf. Mariano, 2000, p. 73 e
Castel, 1998, p. 29). Este passado é apresentado em sua diferença histórica radical
devido às condições outras nas quais esta problematização foi realizada. Isto permite
que a própria diferença do passado ressurja no presente como uma virtualidade (e não
como um modelo a ser seguido), pelo simples fato de que nos faz perceber os limites, a
25
finitude e a singularidade de nosso presente e a conseqüente possibilidade de transgredi-
lo e transformá-lo (Mariano, 2000, p. 68-69 e 73).
Foucault parte da questão kantiana, questão moderna por excelência, sobre o que é
precisamente este presente ao qual pertencemos, perguntando-se sobre que elemento
deste presente é preciso reconhecer, distinguir de todos os demais, porque faz sentido
atualmente para uma reflexão filosófica (Foucault, 1984b, pp. 103-104). Diante da
interrogação “quem somos nós neste momento preciso da história” (Foucault, 1995a, p.
239), o historiador-crítico questiona não só o sentido, valor e singularidade de sua
atualidade, mas sua própria pertinência a este presente do qual ele faz parte e em relação
ao qual ele precisa se situar (Foucault, 1984b, p. 104-105). Por isso o problema das
batalhas atuais, das relações de força e de poder, problema que é teórico, mas que
também faz parte de nossa experiência cotidiana, é central. Essa reflexão sobre o poder
é diretamente relacionada à nossa situação presente e implica relações estreitas entre a
teoria e a prática. A sugestão de Foucault é então “usar as formas de resistência contra
as diferentes formas de poder como um ponto de partida [...] usar esta resistência como
um catalisador químico de modo a esclarecer as relações de poder, localizar sua
posição, descobrir seu ponto de aplicação e os métodos utilizados. [...] analisar as
relações de poder através do antagonismo das estratégias” (Foucault, 1995a, p. 239).
Genealogia
A genealogia, como parte desta história do presente, realiza uma história das
correlações de força e das relações de poder, em sua multiplicidade, heterogeneidade,
dispersão, instabilidade, mobilidade, descrevendo suas estratégias e táticas, integrações
e contradições, cristalizações e transformações, resistências e contra-resistências. A
genealogia é “a constituição de um saber histórico das lutas e a utilização desse saber
nas táticas atuais” (Foucault, 2000a, p. 13). Esse saber reúne um conhecimento erudito,
que reconstitui exatamente os combates, mas também a memória bruta daqueles que são
sujeitados. Ambos se contrapõem a um saber unitário e totalizante, que pretende filtrá-
los, hierarquizá-los e ordená-los em nome de um saber verdadeiro. A ciência possuída
por alguns poucos especialistas desqualifica e silencia os sujeitos de experiência,
sepultando sob sua coerência, sistematização e universalidade as demais perspectivas. A
genealogia se insurge contra os efeitos centralizadores de poder que são vinculados à
26
instituição e ao funcionamento de um discurso científico organizado em uma sociedade
como a nossa. Ela procura desassujeitar os saberes históricos e torná-los livres, isto é,
capazes de oposição e luta contra a coerção deste discurso teórico globalizante (cf.
Foucault, 2000a, pp. 8-14).
Com isto, a verdade converte-se em um campo de batalhas e os saberes em
blocos táticos no campo das correlações de força. Não cabe, portanto, questioná-los
sobre sua legitimidade, adequação ou fundamentação, mas interrogá-los em outros dois
níveis: “no de sua produtividade tática (que efeitos recíprocos de poder e saber
proporcionam) e no nível de sua integração estratégica (que conjuntura e que correlação
de forças torna necessária sua utilização em tal ou qual episódio dos diversos confrontos
produzidos)” (Foucault, 1999a, p. 97). A genealogia desnuda as intrincadas relações
entre saber e poder: o saber é produzido e apoiado por sistemas de poder, e, por outro
lado, como discurso verdadeiro, ele induz efeitos de poder que o reproduzem. Pode-se
dizer, de modo mais rigoroso, que a análise das formas de saber e dos discursos cabe à