Penacho. Uma lenda com uma moral por Nathaniel Hawthorne - Versão HTML
Faça o download do livro em PDF, ePub, Kindle para obter uma versão completa.

NATHANIEL HAWTHORNE
(1804-1864)
Romancista e contista norte-americano. Nasceu em Salem, cidade no estado do Massachusetts, numa família com antepassados importantes e ricos que começaram a perder a fortuna na época em que Hawthorne ainda era jovem.
Aprendeu a escrever ficção muito cedo, antes mesmo dos tempos de universitário.
Trabalhou como fiscal de aduana, redator, editor e, já perto do final da vida, foi cônsul dos Estados Unidos em Liverpool, cidade da Inglaterra. Em 1828, aos 24 anos, publicou Fanshawe, um primeiro romance financiado por ele próprio. Só foi reconhecido como grande escritor em 1850, com a publicação de A letra escarlate, embora o reconhecimento não tenha resultado em situação financeira estável.
O conto “Penacho” foi extraído do livro de contos Mosses from an Old Manse [Musgos de um velho presbitério], de 1846. “Old Manse”, no título original é uma referência à casa na cidade de Concord, onde ele viveu durante quatro anos em companhia da mulher, Sophia Peabody. Esses dois contos representam a atração de Hawthorne por fatos
extraordinários, ou seja, estranhos à percepção do dia-a-dia.
Penacho
Uma lenda com uma moral
— Dickon — chamou a mãe Rigby
—, brasa para o cachimbo!
O cachimbo estava na boca da velha
senhora quando ela disse essas palavras.
Ela o pusera ali depois de encher o
fornilho com fumo, mas não se abaixou
para acendê-lo na lareira, onde, na
verdade, não havia sinal de chama alguma naquela manhã. Em seguida, porém,
assim que a ordem foi dada, o intenso
fulgor vermelho estava no fornilho e os lábios da mãe Rigby expeliam uma
baforada. De onde surgiu o fogo, e como foi levado ali por mão invisível, nunca fui capaz de descobrir.
— Muito bom! — disse a mãe
Rigby, aprovando com uma inclinação da
cabeça. — Obrigada, Dickon! E agora
vamos fazer o espantalho. Fique de
prontidão, Dickon, caso eu precise de
você de novo.
A boa mulher tinha acordado assim
tão cedo (porque, por enquanto, o sol mal tinha nascido) para começar a fazer um
espantalho, que pretendia pôr no meio do terreno onde plantara milho. Era a última semana de maio. As gralhas e os melros já haviam descoberto a pequenina folha
verde e enrolada do milho que despontava no solo. Ela estava decidida, portanto, a criar o espantalho mais real que jamais existiu e terminá-lo rapidamente, da
cabeça aos pés, para que ele começasse a cumprir o dever de sentinela naquela
manhã mesmo. Agora, a mãe Rigby
(como todos devem saber) era uma das
mais espertas e poderosas bruxas da Nova Inglaterra e, sem muita dificuldade; seria capaz de fazer um espantalho tão feio que assustaria até mesmo o padre. Nessa
ocasião, porém, porque tinha se levantado com um humor excepcionalmente bom, e
ficado ainda mais branda com as
cachimbadas, resolveu produzir algo
elegante, bonito e esplêndido, em lugar de medonho e desagradável.
— Não quero pôr um bicho-papão
no milharal e quase na entrada da minha casa — disse a mãe Rigby a si mesma,
tirando uma baforada. — Poderia, se me
agradasse. Mas me cansei de fazer coisas maravilhosas, por isso vou me limitar às coisas do dia-a-dia, para variar. Além do mais, não adianta nada espantar as
criancinhas para longe da vizinhança,
apesar de que, sim, sou uma bruxa!
Ficou definido, portanto, na cabeça
dela, que o espantalho representaria um cavalheiro elegante da época, desde que o material à mão permitisse. Talvez valha a pena relacionar os principais artigos que entraram na composição dessa figura.
O mais importante de todos,
provavelmente, embora aparecesse pouco, foi uma vassoura, na qual a mãe Rigby
voara muitas vezes à meia-noite e que
para o espantalho agora servia de coluna vertebral, ou, na expressão popular, de espinha. Um dos braços era um mangual
inutilizado, que costumava ser manejado por Goodman Rigby, antes de a esposa
livrá-lo deste mundo maçante. O outro
braço, se não me engano, era composto da colher de pau do caldeirão e da perna
quebrada de uma cadeira, amarrados
frouxamente no cotovelo. Quanto às
pernas, a direita era um cabo de enxada, e a esquerda, um pau misto e indistinto
tirado de uma pilha de lenha. Os pulmões, o estômago e outros órgãos não passavam de um saco de farinha enchido de palha.
Desse modo completamos o esqueleto e o
corpo do espantalho, com exceção da
cabeça. E esta foi admiravelmente suprida por uma abóbora um pouco seca e
mirrada na qual a mãe Rigby fez dois
buracos para os olhos e um talho para a boca, pondo no meio uma maçaneta mais
ou menos azul para passar por nariz. Era mesmo um rosto digno de respeito.
— De qualquer maneira, vi piores
sobre ombros humanos — disse a mãe
Rigby. — E muitos cavalheiros elegantes têm cabeça de abóbora, assim como o
meu espantalho!
Mas as roupas, nesse caso, tinham
de ser de fabricação humana. De maneira que a boa mulher tirou de um cabide um
velho casaco cor de ameixa
confeccionado em Londres e, com restos
de bordados nas costuras, punhos, abas
dos bolsos e casas dos botões — mas,
lamentavelmente, gastos e descorados —, remendou os cotovelos, esfarrapou as
fraldas e desfiou tudo.
No lado esquerdo do peito, havia um
buraco redondo, de onde uma insígnia de nobreza fora rasgada ou então o coração ardente de quem o vestira a queimara
totalmente. Os vizinhos diziam que esse casaco suntuoso pertencera ao guarda-roupa do Homem Negro e que ele o
deixava no chalé da mãe Rigby porque
era prático vesti-lo quando desejava fazer uma aparição espetacular à mesa do
governador. Para combinar com o casaco, havia um colete de veludo de um tamanho bastante grande e anteriormente bordado com ornatos de folhas, que fora de um
dourado brilhante como as folhas do
bordo no mês de outubro, mas que agora
se tornara opaco com o desgaste do
veludo. Depois havia um par de calções
vermelhos, antigamente usados pelo
governador francês de Louisbourg, cujos joelhos tocaram o primeiro degrau do
trono de Louis lê Grand. O francês dera os calções a um curandeiro indígena, que por sua vez os dera à velha bruxa em
troca de meio litro de poção mágica,
numa das danças na floresta. Além disso, a mãe Rigby arranjou um par de meias de seda e com elas vestiu as pernas da figura, onde pareciam tão irreais quanto um
sonho, com a realidade de madeira dos
dois paus se revelando lastimavelmente
através dos buracos. Por fim, ela pôs a peruca do marido falecido na careca da
abóbora e coroou o conjunto com um
chapéu desbotado de três bicos, no qual espetou a mais comprida pena da cauda
de um galo.
Depois a velha senhora pôs a figura
de pé num canto do chalé e deu um
risinho de satisfação ao ver a fisionomia amarelada, com a pequena maçaneta que
se projetava no ar como nariz. Tinha um estranho aspecto de presumido, parecendo dizer:
“Olhe só para mim!”
— E vale a pena olhar para você...
isso é verdade!— disse a mãe Rigby,
encantada com a própria criação.
— Fiz muitos bonecos, desde que
me conheço por bruxa. Mas acho que este é o melhor de todos. Parece bom demais
para um espantalho, E, por sinal, vou
encher de novo o cachimbo e levar você
para o milharal.
Enquanto enchia o cachimbo, a
velha senhora continuava a olhar para a figura no canto com um carinho quase
maternal.
Para falar a verdade — tenha sido
por acaso, por habilidade ou por pura
bruxaria —, havia algo espantosamente
humano na aparência ridícula, enfeitada com os adornos esfarrapados. Quanto à
fisionomia, a superfície amarelada parecia se enrugar num sorriso arreganhado —
um tipo engraçado de expressão, entre o escárnio e a alegria, como se visse a si mesmo como uma caçoada da
humanidade. Quanto mais olhava, mais a
mãe Rigby ficava satisfeita.
— Dickon — chamou ela,
bruscamente —, mais brasa para o
cachimbo!
Mal acabara de falar, tal como antes,
surgiu um fulgor vermelho no alto do
fumo. Ela puxou demoradamente o fumo
e soprou uma baforada no feixe de sol da manhã, que se esforçava para penetrar a janela empoeirada do chalé. A mãe Rigby sempre gostava de saborear o cachimbo
com a brasa de um determinado canto da
lareira, de onde esta viera. Mas qual era esse canto da lareira, ou quem levava a brasa — além do mais, o mensageiro
invisível parecia atender pelo nome de
Dickon —, não sei dizer.
“Este boneco”, pensou a mãe Rigby,
os olhos ainda fixos no espantalho, “é
uma obra boa demais para passar o verão inteiro num milharal, assustando gralhas e melros. É capaz de coisas melhores. Ora, dancei com um pior do que esse, quando
parceiros não havia, nas nossas reuniões na floresta! E se lhe desse uma
oportunidade entre outros homens de
palha e sujeitos vazios que habitam o
mundo com alvoroço?
A velha bruxa tirou mais umas três
ou quatro baforadas e sorriu.
— Vai encontrar muitos dos seus
irmãos, em cada esquina! — continuou.
— Bem, a minha intenção não era me
dedicar à bruxaria hoje, além de acender o cachimbo. Mas bruxa sou, bruxa serei e
não adianta tentar fugir disso. Vou
transformar o meu espantalho num
homem, nem que seja só de brincadeira!
Enquanto murmurava essas
palavras, a mãe Rigby tirou o cachimbo
da boca e o enfiou na abertura que
representava o mesmo traço na cara de
abóbora do espantalho.
— Fume, meu querido, fume! —
disse ela. — Tire baforadas, meu querido amigo! Sua vida depende disso!
Era um estranho conselho, sem
dúvida, para dar a uma simples coisa feita de varas, palha e roupas velhas, com nada melhor do que uma abóbora seca no lugar da cabeça, como sabemos que era o caso
do espantalho. No entanto, como
atentamente devemos nos lembrar, a mãe
Rigby era uma bruxa com uma habilidade
e um poder excepcionais. Mantendo esse
fato em mente, não veremos nada além da credibilidade nos acontecimentos
extraordinários de nossa história. Na
verdade, a grande dificuldade será
superada imediatamente, se nos
dispusermos a crer que, assim que a velha senhora lhe pediu para fumar, uma
fumaça foi expelida pela boca do
espantalho. Foi, sem dúvida, uma fumaça bastante tênue, mas seguida de outra,
depois de outra, cada uma mais decidida do que a anterior.
— Fume, meu predileto! Sopre, meu
belo! — ia repetindo a mãe Rigby, com o sorriso de satisfação. — É o sopro da
vida, e nisso pode confiar!
Sem sombra de dúvida, o cachimbo
era encantado. Devia haver um feitiço, no fumo, na brasa que ardia impetuosa e
misteriosamente no alto do fumo, na
fumaça de um perfume muito penetrante
que exalava do tabaco aceso. A figura,
depois de algumas tentativas indecisas, por fim expeliu urna forte rajada de
fumaça, que se estendeu do canto escuro ao feixe de sol. Ali remoinhou e se desfez entre as partículas de pó. Parecia um
esforço convulsivo, porque as duas ou três baforadas seguintes foram mais fracas,
embora a brasa ainda ardesse e lançasse um fulgor sobre o rosto do espantalho. A velha bruxa bateu as palmas magras e
sorriu animadoramente diante da criação.
Percebeu que o encanto dera bom
resultado. O rosto murcho, amarelo, que até então não fora um rosto, já adquiria uma névoa fina e fantástica, por assim
dizer, de semelhança humana, indo e
vindo de um lado a outro, às vezes
sumindo por completo, mas se tornando
cada vez mais perceptível a cada baforada do cachimbo. A figura inteira, da mesma maneira, ganhava uma manifestação de
vida, tal como a que conferimos a formas mal definidas entre as nuvens, iludindo-nos em parte com o passatempo de nossa
própria fantasia.
Se for necessário um exame mais
minucioso, talvez se duvide que houve,
afinal, uma mudança real na substância
sórdida, puída, imprestável e
desconjuntada do espantalho; somente
uma ilusão espectral e um engenhoso
efeito de luz e sombra, tão colorido e
tramado ao ponto de enganar os olhos da maioria dos homens. Os milagres da
bruxaria parecem ter tido sempre uma
sutileza superficial e, pelo menos, se a explicação anterior não descreve a
verdade do processo, não tenho melhor
proposta.
— Bem respirado, meu querido
rapaz! — continuava a exclamar a mãe
Rigby. — Vamos, mais uma, uma forte
baforada, e que seja com toda a força!
Respire para viver, eu lhe ordeno! Sopre do fundo do coração, se tiver coração, ou fundo no coração! Muito bem, outra vez!
Aspirou essa porção, como se por puro
amor a ela.
Em seguida, a bruxa acenou para o
espantalho, pondo tanta potência
magnética no gesto que era como se
devesse inevitavelmente ser obedecido,
como a invocação mística da pedra-ímã
ao atrair o ferro.
— Por que se esconde aí no canto,
seu preguiçoso? - disse ela. — Saia daí!
Tem o mundo à sua frente!
Palavra de honra: se a lenda não
fosse a que escutei quando criança
sentado nos joelhos de minha avó, e que ocupou um lugar entre as coisas
verossímeis,_an-les que meu julgamento infantil pudesse analisar sua
probabilidade, duvido que tivesse a
coragem de contá-la agora!
Em obediência à ordem da mãe
Rigby, esticando o braço como se para
alcançar a mão que ela lhe estendia, a
figura deu um passo à frente — uma
espécie de coxeadura e convulsão, mais
do que um passo —, depois cambaleou e
quase perdeu o equilíbrio. O que a bruxa poderia esperar? Afinal, não era mais do que um espantalho, apoiado em duas
pernas de pau. Mas a velha megera
obstinada fechou a carranca, chamou-o
com gestos e lançou a energia de seu
propósito com um tal ímpeto na direção
da pobre combinação de madeira podre,
palha bolorenta e farrapos que ele se viu impelido a se mostrar um homem, a
despeito da realidade. Assim, avançou
para dentro do feixe de sol. Ali ficou —
pobre artifício do diabo que era! —
somente com a mais tênue veste de
semelhança humana, através da qual se
evidenciava a colcha de retalhos rígida, raquítica, absurda, murcha, andrajosa e inútil que era sua substância, pronto para desmoronar no chão, consciente de seu
próprio desmerecimento para ficar ereto.
Devo dizer a verdade? Nesse atual ponto de vivificação, o espantalho me lembra
alguns personagens indiferentes e
fracassados, compostos a partir de
materiais heterogêneos, usados pela
milésima vez e nunca merecedores de
serem usados, com os quais romancistas
(eu mesmo, sem dúvida, entre eles)
sobrepovoaram o mundo da ficção.
Mas a impetuosa velha megera
começou a se enfurecer e deixar entrever sua natureza diabólica (como a cabeça de uma serpente espiando com um sibilo de
dentro de seu seio) em relação ao
comportamento pusilânime da coisa que
ela se dera ao trabalho de criar.
— Fume, seu infeliz! — exclamou,
furiosa. — Fume, fume, fume, sua coisa
de palha vazia! Seu trapo de trapo! Seu saco de farinha! Seu cabeça de abóbora!
Seu nada! Onde vou encontrar um nome
desprezível com que chamar você? Fume,
estou dizendo, e aspire com a fumaça a
sua vida fantástica. Senão vou arrancar o cachimbo da sua boca e atirar você no
lugar de onde a brasa vermelha vem!
Assim ameaçado, o infeliz
espantalho nada pôde fazer a não ser
fumar pela vida estimada. Como era
necessário, portanto, entregou-se
vigorosamente ao cachimbo, emitindo
rajadas de fumaça tão abundantes que a
cozinha do chalé ficou toda nebulosa. O
único raio de sol porfiou empanadamente para entrar e só imperfeitamente definia a imagem da vidraça rachada e empoeirada
na parede em frente. Enquanto isso, a mãe Rigby, com uma mão no quadril e a outra estendida para a figura, surgiu
sinistramente em meio à penumbra, com o porte e a expressão de quando costumava lançar um insuportável pesadelo sobre
suas vítimas e ficar à cabeceira da cama para desfrutar a agonia por que passavam.
Temeroso e trêmulo, o espantalho fumou.
Mas os esforços, deve-se reconhecer,
serviram a um excelente propósito,
porque, a cada baforada sucessiva, a
figura perdia mais e mais a debilidade
zonza e perplexa, parecendo adquirir uma substância densa. As roupas mesmo, além disso, partilhavam da mudança mágica,
brilhando com o verniz da novidade e
reluzindo com o ouro bordado habilmente que havia muito tempo se rasgara. E,
parcialmente revelado em meio à fumaça, um rosto amarelo baixou os olhos sem
brilho sobre a mãe Rigby.
Por fim, a velha bruxa fechou a mão
e a brandiu para a figura. Não que
estivesse verdadeiramente com raiva,
apenas agia segundo o princípio — talvez não verdadeiro, ou talvez não o único
verdadeiro, mas tão elevado quanto o que se podia esperar que a mãe Rigby
alcançasse — de que as naturezas fracas e apáticas, incapazes de uma melhor
inspiração, devem ser estimuladas pelo
medo. Mas nisso estava a crise. Se
fracassasse no que agora buscava realizar, era seu propósito implacável espalhar a imitação infeliz nos elementos originais.
— Você tem o aspecto de um
homem — disse asperamente. — Tem
também o eco e o arremedo de uma voz!
Ordeno que fale!
O espantalho arfou, lutou e por fim
emitiu um murmúrio, tão incorporado à
respiração fumarenta que mal se podia
distinguir se era de fato uma voz ou
somente uma baforada de fumo. Alguns
narradores desta lenda sustentam a
opinião de que a feitiçaria da mãe Rigby e a impetuosidade de sua vontade tinham
levado um espírito familiar para dentro da figura e que essa voz era dele.
— Mãe — murmurou a voz fraca e
abafada —, não seja tão terrível comigo!
Eu falaria de bom grado, mas, sem
perspicácia, o que poderia dizer?
— Pode falar, meu querido, não
pode? — perguntou a mãe Rigby,
afrouxando num sorriso a fisionomia
soturna. — E o que vai dizer, realmente!
Dizer, deveras! Pertence à irmandade do crânio vazio e me pergunta o que vai
dizer? Vai dizer mil coisas, e mesmo que as repita mil vezes ainda assim estará
dizendo nada! Não tenha medo, vou lhe
dizer! Quando for ao mundo (para onde
tenho a intenção de mandá-lo sem
demora), não lhe faltarão os meios para falar. Falar! Ora, vai tagarelar como uma matraca, se puder. Tem bastante cérebro para isso, prometo!
— Às suas ordens, mãe — retrucou
a figura.
— E o disse muito bem, meu belo!
— disse a mãe Rigby. — Falou por si
mesmo sem querer dizer alguma coisa.
Você tem uma centena de frases prontas, e outras quinhentas adicionais. E agora, meu querido, tive tanto trabalho com você e é tão bonito, que dou-lhe a minha
palavra, eu o amo bem mais neste mundo
do que os bonecos de feitiçaria. E os fiz de todos os tipos... barro, cera, palha, palitos, neblina da noite, cerração da
manhã, espuma do mar e fumaça de
chaminé! Mas você é o melhor. Por isso
preste atenção ao que digo!
— Sim, minha mãe gentil — disse a
figura —, com todo o meu coração!
— Com todo o seu coração! —
exclamou a velha bruxa, abaixando as
mãos nos lados e gargalhando. -— Você
tem um jeito tão gracioso de falar! Com todo o meu coração! E pôs a mão no lado esquerdo do colete, como se realmente
tivesse um!
Então, com um bom humor
exultante com a fantástica criação, a mãe Rigby disse ao espantalho que ele deveria desempenhar o papel dele no grande
mundo, onde nem um homem entre uma
centena, afirmou, era dotado com mais
substancia real do que ele mesmo. E, para que pudesse manter a cabeça erguida com o melhor deles, ela o dotara, de imediato, de uma quantidade incalculável de
riqueza. Consistia, em parte, em uma
mina de ouro em Eldorado, de dez mil
ações numa bolha estourada, de meio
milhão de acres de vinhas no pólo Norte, de um castelo de ar e de um chalé na
Espanha, mais todos os aluguéis e
rendimentos que deles resultassem. Além disso, transferira para ele a carga de um navio, carregado de sal de Cádiz, que ela mesma, por meio das artes necromânticas, fizera afundar havia dez anos na zona
mais profunda do oceano médio. Se o sal não se dissolvesse, e pudesse ser trazido ao mercado, alcançaria uma quantia
mínima entre os pescadores. Para que não lhe faltasse dinheiro à mão, ela lhe dera um vintém de cobre, manufaturado em
Birmingham, sendo esse dinheiro a única moeda que possuía, assim como uma
grande quantidade de latão, que ela usara na testa dele, tornando-o mais amarelo do que nunca.
— Somente com esse latão —
afirmou a mãe Rigby —, pode pagar a sua parte no mundo inteiro. Dê-me um beijo, meu querido! Por você, fiz o melhor que pude.
Além disso, para que ao aventureiro
não faltasse qualquer vantagem possível para um início de vida justo, a excelente velha senhora lhe deu uma prova, pela
qual ele deveria se apresentar a um certo juiz, membro do conselho, comerciante e presbítero da igreja (as quatro
capacidades que constituem apenas um
homem) que se situava à frente da
sociedade na metrópole vizinha. A prova era, nem mais nem menos, uma única
palavra, que a mãe Rigby sussurrou para o espantalho, e a qual o espantalho deveria sussurrar para o comerciante.
— Uma vez que o velho padece de
gota, vai encarregar você de alguns
recados, depois que lhe disser a palavra no ouvido — disse a velha bruxa. — A
mãe Rigby conhece o venerável juiz
Gookin, e o venerável juiz conhece a mãe Rigby!
Nesse momento, a bruxa aproximou
o rosto enrugado do rosto do espantalho, rindo sem se conter e sacudindo o corpo todo nervosamente, adorando a ideia que tinha desejado comunicar.
— O venerável juiz Gookin —
sussurrou — tem uma filha graciosa! E
ouça, meu querido! Você tem uma
aparência bonita e é bastante inteligente.
Sim, é bastante inteligente! Vai ter uma melhor ideia depois de conhecer mais a
inteligência das outras pessoas. Agora, com a sua aparência e a sua inteligência, é um homem que tem tudo para conquistar
o coração de uma donzela. Nunca duvide
disso! Digo-lhe que vai ser assim.
Enfrente a questão com coragem, suspire, sorria, enfeite o chapéu, posicione a perna para a frente como um professor de dança, ponha a mão direita no lado esquerdo do colete... e a linda Polly Gookin será sua!
Durante todo esse tempo, a nova
criatura absorveu e exalou a fragrância vaporosa do cachimbo, e agora parecia
continuar com essa atividade tanto pelo prazer que proporcionava como porque
era uma condição essencial para sua
existência. Era assombroso ver que em
seu comportamento havia o excesso de
um ser humano. Os olhos (porque, ao que parecia, tinha um par deles) fitavam a mãe Rigby e, em momentos apropriados, ele
inclinava ou balançava a cabeça numa
confirmação. Nem lhe faltavam palavras
adequadas para a ocasião — “Mesmo?!
Puxa! Por favor, diga-me! É possível!
Palavra de honra! Mas claro! Oh! Ah! Hã-
hã!” — e outras afirmações sérias que
implicavam atenção, indagação,
concordância ou discordância por parte do interlocutor. Mesmo quem estivesse
presente, e tivesse visto a feitura do
espantalho, dificilmente resistiria à
convicção de que ele compreendia
perfeitamente os conselhos astutos que a velha bruxa despejava na imitação de
ouvidos. Quanto mais seriamente levava o cachimbo aos lábios, mais distintamente sua semelhança humana se definia entre
as realidades visíveis, mais sagaz a
expressão se tornava, mais reais os gestos e os movimentos, mais inteligivelmente
audível a voz. As roupas também
adquiriam um brilho mais vivo com uma
magnificência ilusória. O próprio
cachimbo, no qual ardia o feitiço de todo esse trabalho maravilhoso, deixava de
parecer um toco terreno e enegrecido de fumaça, tornando-se uma espuma-do-mar,
com um fornilho pintado e uma piteira de âmbar.
Deve-se compreender, no entanto,
que, uma vez que a vida da ilusão parecia idêntica ao vapor do cachimbo, ela
terminaria assim que o fumo se reduzisse a cinzas. Mas a megera previra a
dificuldade.
— Segure o cachimbo, meu bem —
disse —, enquanto o encho de novo para
você.
Era doloroso ver o belo cavalheiro
começar a retroceder ao espantalho,
enquanto a mãe Rigby removia as cinzas
do cachimbo e começava a enchê-lo com
fumo tirado da bolsa de tabaco.
— Dickon — chamou, com a voz
alta e brusca —, outra brasa para este
cachimbo!
Nem bem acabara de falar, o ponto
de fogo intensamente vermelho brilhava
no fornilho. O espantalho, sem esperar
que a bruxa pedisse, levou o tubo do
cachimbo aos lábios e tirou algumas
breves e convulsivas baforadas, que logo, porém, tornaram-se regulares e
invariáveis.
— Agora, meu querido do coração
— disse a mãe Rigby —, aconteça o que
lhe acontecer, não largue o cachimbo. Sua vida está nele. E isso, pelo menos, você sabe muito bem, se não sabe de outra
coisa. Não largue o cachimbo, repito!
Fume, inale, sopre a nuvem de fumaça. E
diga às pessoas, se lhe perguntarem, que é para o bem da sua saúde, por ordem do
médico. E, meu querido, quando perceber que o fumo no cachimbo está diminuindo, retire-se para um canto e, primeiro
inalando a fumaça, chame bruscamente:
“Dickon, um outro cachimbo com fumo!”
ou “Dickon, outra brasa para o
cachimbo!”, e leve-o à boca o mais rápido possível. Do contrário, em vez de um
cavalheiro elegante que veste casaco com galões dourados, você será um amontoado de paus, roupas esfarrapadas, um saco de palha e uma abóbora murcha! Agora se
vá, meu tesouro, e que a sorte o
acompanhe!
— Nunca tema, mãe! — retrucou a
figura, a voz firme, expelindo um
corajoso jato de fumaça. — Vou
prosperar, se isso é possível para uni
cavalheiro e homem honesto!
— Oh, você será a minha morte! —
exclamou a velha bruxa, sacudindo-se de rir. — Disse-o muito bem! Se isso é
possível para um cavalheiro e homem
honesto! Você desempenha o seu papel à
perfeição. Continue sendo um sujeito
resoluto, que vou apostar na sua cabeça, como homem de energia e substância,
com um cérebro, e o que chamam de
coração, e tudo o mais que um homem
deve ter, contrário a qualquer outra coisa sobre duas pernas. Considero-me hoje
uma bruxa melhor do que ontem, por sua
causa. Não fui eu quem o criou? E desafio qualquer bruxa na Nova Inglaterra a criar ou-Iro igual! Tome, leve o meu bastão
com você!
O bastão, embora não passasse de
uma simples vara de carvalho, adquiriu
imediatamente o aspecto de uma bengala
com cabo de ouro.
— Esse cabo de ouro tem mais
sentido pertencendo a você — disse a mãe Rigby —, e o guiará diretamente à porta da casa do venerável Gookin. Vá agora,
meu bem, meu belo, meu querido, meu
tesouro. Se perguntarem qual é o seu
nome, é Penacho. Porque no seu chapéu
há uma pena e pus um punhado de penas
dentro da sua cabeça oca, e também
porque costumam chamar esta sua peruca
de Penacho... então, que seu nome seja
Penacho!
Saindo do chalé, Penacho caminhou
corajosamente na direção da cidade. A
mãe Rigby ficou parada na soleira da
porta, muito satisfeita de ver os raios de sol reluzirem sobre ele — como se toda a magnificência dele fosse real —-, a
habilidade e o carinho com que fumava o cachimbo, o modo gracioso de andar,
apesar de uma ligeira rigidez das pernas.
Observou-o até estar longe dos olhos e
lançou para seu querido a bênção de
bruxa quando uma curva da estrada o
tirou de sua visão.
De manhã cedo, quando a vida e o
burburinho da rua principal da cidade
vizinha estavam no auge, um estranho de talhe muito distinto foi visto na calçada. O
porte e as roupas indicavam nada menos
do que nobreza. Ele usava um casaco cor de ameixa com ornamentos requintados,
um colete de veludo suntuoso, adornado
magnificamente com folhas douradas, um
par de esplêndidos calções vermelhos e as mais finas e cintilantes meias de seda
branca. Cobria-lhe o alto da cabeça uma peruca, tão delicadamente empoada e
ajustada que seria um sacrilégio
desarranjá-la com um chapéu. Este,
portanto (e era um chapéu com rendas
douradas, completado com uma pena
branca), ele carregava debaixo do braço.
No peito do casaco, uma estrela brilhava.
Ele segurava a bengala com cabo de ouro com uma graça afetada, característica dos cavalheiros da época. E, dando o remate mais elevado possível ao conjunto, nos
pulsos havia folhos de renda, de uma
delicadeza quase etérea, confirmando
suficientemente quão ociosas e
aristocráticas deveriam ser as mãos que eles ocultavam. Era um notável aspecto
no vestuário desse magnífico personagem que ele segurasse na mão esquerda um
fantástico tipo de cachimbo, com um
fornilho primorosamente pintado e uma
boquilha de âmbar. Esta ele levava aos
lábios a cada cinco ou seis passos e
inalava uma profunda tragada de fumaça
que, depois de retida por uns instantes nos pulmões, parecia remoinhar
graciosamente ao sair da boca e das
narinas.
Como é de se supor, as pessoas na
rua estavam todas ansiosas para descobrir o nome do estranho.
— Deve ser um nobre ilustre, sem
dúvida — disse um habitante. — Está
vendo a estrela no peito?
— Não, brilha demais e não dá para
ver — disse o outro. — É, deve ser um
nobre, como você disse. Mas, na sua
opinião, por que meio de transporte esse senhor teria feito a jornada ou a viagem até aqui? Faz um mês que um navio não
aporta. E se ele tivesse chegado por terra, vindo do sul, diga-me, onde estão os
criados e a equipagem?— Ele não precisa de equipagem para realçar a posição
social dele — observou um terceiro. — Se andasse entre nós com vestes
esfarrapadas, a nobreza brilharia através de um furo no cotovelo. Nunca vi tanta
dignidade de aparência. Ele tem o velho sangue nor-mando nas veias, garanto!
— Pois acho que é holandês, ou um
dos seus alto-alemães — disse outro
cidadão. — Os homens daqueles países
estão sempre com o cachimbo na boca.
— E os turcos também — retrucou o
companheiro. — Mas, na minha opinião,
este estranho foi educado na corte
francesa, e lá aprendeu polidez e boas
maneiras, que ninguém entende tão bem
quanto a nobreza da França. Vejam o
modo de andar!
Um observador vulgar diria que é
rígido, poderia dizer que é uma coxeadura e uma convulsão, mas a meu ver tem uma
majestade indescritível, e deve ter sido adquirido através de uma observação
constante do comportamento do Grande
Monarca. O caráter e o cargo do estranho são bastante evidentes. É um embaixador francês, veio conversar com os nossos
governantes sobre a cessão do Canadá.
— Mais provavelmente é um
espanhol -- disse outro. — Daí a pele
amarela. Ou, o que é bem possível, é de Havana ou de algum porto do Caribe, e
veio fazer algumas investigações sobre as piratarias com as quais, acredita-se, o nosso governador é conivente. Os colonos no Peru e no México têm peles amarelas
como o ouro que eles extraem das minas.
— Amarelo ou não — exclamou
uma senhora —, é um homem lindo! Tão
alto... Tão esguio!... Um rosto tão fino, tão nobre, com um nariz tão bem
formado, e toda a delicadeza de expressão da boca! E, nossa, como a estrela dele
brilha! Realmente lança chamas!
— Os seus olhos também, minha
bela dama! — disse o estranho, com uma
mesura e um floreio do cachimbo, porque estava passando exatamente neste
instante. — Palavra de honra, eles me
ofuscaram!
— Pode haver uma cortesia tão
original e delicada? — murmurou a
senhora, num êxtase de encanto.
Em meio à admiração geral,
perturbados pela aparição do estranho,
havia apenas duas vozes discordantes.
Uma era do impertinente cão vira-lata
que, depois de cheirar os sapatos da figura cintilante, pôs o rabo entre as pernas e foi se esconder no quintal do dono,
vociferando um uivo execrável. Outro
dissidente era um menino, que berrava a plenos pulmões e balbuciava palavras
incompreensíveis e absurdas acerca de
uma abóbora.
Enquanto isso, Penacho seguia seu
caminho ao longo da rua. Exceto pelas
poucas palavras de cortesia à senhora, e, de vez em quando, por um cumprimento
com um leve sinal de cabeça, em
retribuição às intensas reverências dos curiosos, ele parecia completamente
absorvido no cachimbo. Não havia
necessidade de outra prova de sua posição e de sua importância além da perfeita
serenidade com que se comportava,
enquanto a curiosidade e a admiração dos moradores da cidade quase se elevavam
ao vozerio à volta dele. Com uma
multidão ainda se juntando atrás dele,
Penacho por fim chegou à mansão do
venerável juiz Gookin, passou pelo
portão, subiu a escada da entrada e bateu.
Nesse interim, antes de a batida à porta ser atendida, o estranho foi observado
removendo as cinzas do cachimbo.
— O que foi que ele disse com
aquela voz abrupta? — perguntou um dos
curiosos.
— Não sei, não — respondeu o
amigo. — Mas o sol ofusca os meus olhos de jeito esquisito! Como o nobre ficou
pálido e murcho de repente! Minha nossa, o que está acontecendo comigo?
— O mais espantoso é — disse o
outro — que o cachimbo, que estava
apagado agorinha há pouco, já esteja todo aceso de novo, e com a brasa mais
vermelha que já vi na vida! Este estranho é bem misterioso. Que baforada foi
aquela!? Pálido e murcho você disse que ele estava?
Ora, agora que ele se virou, a estrela
no peito está em chamas.
— Está mesmo — disse o
companheiro —, e vai ofuscar a bela
Polly Gookin, que estou vendo espiar para fora da janela do quarto.
Tendo a porta sido aberta, Penacho
se virou para os curiosos, curvou o corpo solenemente, como um homem ilustre que
agradece à reverência dos humildes, e
desapareceu dentro da casa. No rosto,
havia um tipo misterioso de sorriso, se é que não poderia ser chamado de sorriso
forçado ou careta. De todos os que o
observavam, porém, nenhum deles
pareceu ter perspicácia para detectar o caráter ilusório do estranho, a não ser o menino e o vira-lata.
Neste ponto, nossa lenda perde um
pouco da continuidade e, omitindo as
explicações preliminares entre Penacho e o comerciante, vai à procura da bela Polly Gookin. Era uma donzela roliça e
delicada, de cabelo louro e olhos azuis, rosto róseo e bonito, que não parecia
muito perspicaz nem muito ingênua. A
jovem tinha visto de relance o estranho cintilante, enquanto estava parado na
entrada, e logo pusera um gorro rendado, um colar de contas, o melhor lenço de
cabeça, a mais engomada saia de
damasco, preparando-se para o encontro.
Ao correr do quarto para a sala de visitas, deteve-se para se olhar no enorme
espelho, praticando ares graciosos — ora um sorriso, ora uma cerimoniosa
dignidade de aparência, ora um sorriso
mais suave do que o anterior—, beijando a própria mão, além disso atirando a
cabeça para trás, manuseando o leque.
Enquanto isso, dentro do espelho, uma
donzela irreal repetia cada gesto e fazia todas as coisas tolas que Polly fazia, mas sem levá-la a se envergonhar delas. Em
resumo, era culpa da habilidade da bela Polly, não de sua vontade, se não
conseguia ser um artífice tão completo
quanto o ilustre Penacho. E quando ela
dessa forma se intrometia em sua própria simplicidade, o fantasma da bruxa poderia ter a esperança de vencê-la.
Assim que Polly ouviu os passos do
pai, que se aproximava da porta da sala de visitas em companhia de Penacho — os
passos do pai dificultados pela gota em contraste com os estrondos rígidos dos
tacões de Penacho —, ela sentou toda
empertigada na cadeira e inocentemente
começou a cantar uma canção.
— Polly! Minha filha Polly! —
exclamou o velho comerciante. — Venha
cá, menina!
A aparência do senhor Gookin, ao
abrir a porta, era duvidosa e perturbada.
— Este cavalheiro — continuou,
apresentando o estranho — é o chevalier Penacho... Não, perdoe-me, meu lorde
Penacho!... que me trouxe uma
recordação de uma velha amiga minha.
Desempenhe a sua função com este
senhor, minha filha, e o honre como a
qualidade dele merece.
Depois dessas poucas palavras de
apresentação, o venerável juiz saiu
imediatamente da sala. Mas, mesmo
naquele breve instante — tivesse a bela Polly olhado de esguelha para o pai, em lugar de se devotar inteiramente ao
magnífico hóspede —, ela teria se dado
conta de alguma travessura iminente. O
velho estava nervoso, irrequieto e bastante pálido. Com a intenção de um sorriso de cortesia, ele deformara o rosto com uma espécie de sorriso galvânico, que, quando Penacho virou as costas, trocou por uma carranca, ao mesmo tempo que brandia o
punho fechado e batia o pé que sofria de gota - uma descortesia que acarretou a
retribuição. A verdade, ao que parece, foi que a palavra de apresentação da mãe
Rigby, não importa qual fosse, teve mais efeitos sobre os temores do comerciante rico do que sobre sua boa vontade. Além disso, sendo homem de observação
extremamente aguda, notara que as
figuras pintadas no cachimbo de Penacho estavam em movimento. Examinando-as
mais detalhadamente, convenceu-se de
que as figuras eram um grupo de
diabretes, cada um devidamente provido
de chifres e de uma cauda, dançando de
mãos dadas, com gestos de alegria
diabólica, em torno da circunferência do fornilho. Como se para confirmar as
suspeitas, enquanto o senhor Gookin
conduzia o hóspede ao longo de um
corredor escuro — da sala privada à sala de visitas —, a estrela no peito de
Penacho cintilava chamas verdadeiras,
emitindo um brilho trêmulo na parede, no teto e no soalho.
Com esses prognósticos sinistros se
manifestando por todos os lados, não era de surpreender que o comerciante sentisse que comprometia a filha com um
conhecido muitíssimo suspeito.
Amaldiçoou, no íntimo secreto, a
insinuante elegância dos modos de
Penacho, quando esse personagem se
curvava, sorria, punha a mão sobre o
coração, inalava um prolongado trago do cachimbo e carregava a atmosfera do
fumacento vapor de um suspiro
perfumado e visível. Com prazer o pobre senhor Gookin teria jogado na rua o
perigoso hóspede. Mas, dentro dele, havia sujeição e terror. Esse respeitável e velho cavalheiro, receamos, num período
anterior da vida fizera uma ou duas
promessas ao Príncipe das Trevas, e
talvez agora estivesse cumprindo a
promessa com o sacrifício da filha.
A porta da sala de visitas era
parcialmente de vidro, velado por uma
cortina de seda, cujas dobras caíam um
pouco de viés.
Tão forte era o interesse do
comerciante em testemunhar o que
ocorreria entre a bela Polly e o elegante Penacho que, depois de deixar a sala, não pôde evitar espiar através da fenda da
cortina.
Mas não havia nada de muito
milagroso para ver. Nada — exceto as
preocupações insignificantes mencionadas
— confirmava a ideia de um perigo
sobrenatural que cercasse a bela Polly. O
estranho, é verdade, era evidentemente
um perfeito homem experimentado,
sistemático e senhor de si, e, por
conseguinte, o tipo de pessoa a quem um pai não deveria confiar uma jovem
simples sem a devida vigilância do
resultado. O digno juiz, que era versado em todos os graus e qualidades de
humanidade, não podia deixar de perceber que cada movimento e cada gesto do
distinto Penacho eram apropriados. Nada havia nele de rude ou natural. Um bem
assimilado convencionalismo tinha se
incorporado integralmente com sua
substância, transformando-o numa obra
de arte. Talvez essa peculiaridade o
tivesse provido de uma espécie de horror e temor. É o efeito de algo total e
consumadamente artificial, numa forma
humana, que a pessoa nos infunde como
irrealidade, e como mal tendo bastante
substância para projetar uma sombra no
chão. Quanto ao Penacho, tudo isso
resultou de uma impressão impetuosa,
extravagante e fantástica, como se sua
vida e o seu ser fossem aparentados pela fumaça que subia em espirais do
cachimbo.
Mas a bela Polly não sentia assim. O
par agora caminha pela sala. Penacho com o passo refinado e um ar não menos
refinado. A moça com nativa graça de
donzela, apenas tocada, não estragada, por uma conduta ligeiramente afetada que
parecia absorvida do perfeito artifício da companhia. Quanto mais demorava o
encontro, mais encantada estava a bela
Polly, até que, nos primeiros 15 minutos (como o juiz registrou no relógio de
pulso), ela estava sem dúvida começando a ficar apaixonada. Não foi a feitiçaria que a subjugou tão prontamente. O
coração da pobre menina estava, talvez, tão ardente que a derreteu com o próprio calor, como reflete a oca aparência de um amante. Não importava o que dizia, as
palavras de Penacho encontravam
profundidade e reverberação nos ouvidos dela. Não importava o que fazia, sua ação era heróica aos olhos dela. E, a essa
altura, é de se supor, as faces da bela Polly estavam coradas, um terno sorriso nos lábios e uma suavidade líquida no
olhar, enquanto a estrela continuava a
coruscar no peito de Penacho, e os
diabretes dançavam com mais alegria
frenética do que nunca em torno da
circunferência do fornilho do cachimbo.
Ó bela Polly Gookin, por que esses
diabinhos se contentam tão
desvairadamente com o fato de que o
coração de uma donzela tolinha está
prestes a ser entregue a uma sombra?!
Será um infortúnio tão incomum? Um
triunfo tão raro?
Dali a pouco, o Penacho fez uma
pausa e, assumindo uma atitude
imponente, pareceu convidar a bela moça a examinar o corpo dele, a resistir a ele por mais tempo, se ela conseguisse. A
estrela, os adornos, as fivelas fulguraram nesse instante com um esplendor
indizível. Os matizes vivos do traje
ganharam uma intensidade mais rica de
cores. Um brilho e um verniz lhe cobriam toda a presença, anunciando a feitiçaria perfeita das maneiras bem ordenadas. A
donzela ergueu os olhos e consentiu que se detivessem sobre a companhia com um
olhar acanhado e admirador. Em seguida, como se desejosa de julgar que valor sua própria beleza simples poderia ter, lado a lado com tanta luminosidade, ela lançou um olhar na direção do espelho em
tamanho natural, em frente do qual por
acaso se achavam. Era uma das lâminas
mais verdadeiras do mundo, e incapaz de lisonja. Assim que as imagens nele
refletidas encontraram os olhos de Polly, ela deu um grito estridente, da se afastou do estranho, olhou para ele por um
momento com o mais impetuoso terror e
caiu inconsciente no chão. Penacho
também tinha olhado para o espelho c lá viu não a imitação reluzente de seu
exterior, mas a i triagem da sórdida colcha de retalhos de sua verdadeira composição, privada de toda a feitiçaria.
O simulacro desprezível! Quase nos
apiedámos dele. Lançou os braços no ar, com uma expressão de desespero que
ultrapassou todas as suas manifestações interiores, procurando defender a
reivindicação de ser considerado um ser humano. Porque talvez pela primeira vez, desde que esta vida de mortais tantas
vezes vazia e enganadora iniciou seu
curso, uma ilusão fora vista e se
reconhecera integralmente.
A mãe Rigby estava sentada ao lado
da lareira da cozinha, no crepúsculo deste dia cheio de acontecimentos, e tinha
acabado de remover as cinzas do novo
cachimbo quando ouviu passos pesados e
apressados ao longo da estrada. Contudo, soavam menos como passos pesados
humanos do que como o estrépito de paus ou o chocalhar de ossos secos.
“Ah!”, pensou a velha bruxa. “Que
passos são esses? Gostaria de saber que esqueleto saiu da sepultura!”
Um vulto irrompeu
precipitadamente pela porta do chalé. Era o Penacho! O cachimbo ainda estava
aceso. A estrela ainda flamejava no peito.
Os adornos bordados ainda fulguravam na roupa. Ele não perdera, de qualquer modo ou grau que pudessem ser avaliados, o
aspecto que o assemelhava aos nossos
irmãos mortais. Contudo, de alguma
maneira indescritível — como no caso de tudo que nos ilude, assim que descoberto
— a pobre realidade era sentida por baixo do sagaz artifício.
— O que deu errado? — interrogou
a bruxa. -Aquele hipócrita o expulsou da casa dele, meu bem? O patife! Vou
mandar 20 demônios para atormentá-lo,
ale que caia de joelhos para lhe oferecer a filha!
— Não, mãe — retrucou o Penacho,
desesperançado —, não foi isso!
— A moça zombou do meu
querido? — perguntou a mãe Rigby, os
olhos furiosos fulgurando como duas
brasas do inferno. — Vou encher o rosto dela de espinhas! O nariz dela vai ser
vermelho como a brasa do seu cachimbo!
Os dentes da frente vão cair! Dentro de urna semana, ela não será merecedora de você!
— Deixe-a em paz, mãe! —
retrucou o pobre Penacho. — A moça
tinha sido quase conquistada. E acho que um beijo daqueles lábios doces teria me tornado um ser humano completo! Mas —
acrescentou depois de uma breve pausa,
emitindo um uivo de desprezo de si
mesmo — eu me vi, mãe! Vi que sou uma
coisa desprezível, esfarrapada e vazia!
Não quero mais viver!
Arrancando o cachimbo da boca,
atirou-o com ioda a força contra a
chaminé. Ao mesmo tempo, tombou no
chão, urna mistura de palha, roupas
rasgadas, alguns paus se projetando do
monte, a abóbora murcha no meio. As
órbitas dos olhos estavam sem brilho, mas o talhe feito grosseiramente, onde pouco antes estivera a boca, ainda parecia se contorcer num sorriso desesperado; e
ainda era humano.
— Pobre camarada! — exclamou a
mãe Rigby, lançando um olhar pesaroso
para os restos mortais de sua malfadada criação. — Meu pobre, querido, belo
Penacho! Existem milhares e milhares de janotas e charlatões no mundo, feitos só dessa mistura de refugos abandonados,
coçados, sem valor, como ele era! No
entanto, vivem com bom nome e nunca se
vêem como realmente são! Por que o meu
pobre boneco tem de ser o único a
conhecer a si mesmo, e morrer por isso?
Enquanto murmurava essas
palavras, a bruxo enchia de fumo novo o cachimbo, segurando o tubo entre os
dedos, sem saber se o punha na própria
boca ou na do Penacho.
— Pobre Penacho! — continuou. —
Eu poderia facilmente lhe dar uma outra oportunidade, despachá-lo de novo
amanhã. Mas não! Os sentimentos dele
são muito ternos, a sensibilidade dele é muito profunda. Parece ter um coração
grande demais para ir atrás dos próprios interesses, num mundo tão vazio e
impiedoso como este. Bem, bem... No
fim, vou fazer dele um espantalho. É um inocente e uma vocação útil; vai condizer bem com o meu querido. E se cada um
dos seus irmãos humanos tivesse um
assim condizente, seria melhor para a
humanidade. Quanto ao cachimbo,
preciso mais do que ele!
Depois de dizer isso, a mãe Rigby
pôs a boquilha entre os lábios.
— Dickon! — chamou, com a voz
alta e brusca —, outra brasa para o
cachimbo!