Poesias por Júlio Dinis - Versão HTML
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POESIAS
Como a do nauta desditosa sorte,
Que o mar arrosta em tormentosa viagem,
E viu nas ondas que enfurece a morte
Sucumbir todo o resto da equipagem;
Tal o destino meu; entrei no mundo
E saudei-o com hinos de alegria;
Nos êxtases dum júbilo profundo,
O dom da vida a Deus agradecia.
Em ambiente de amor desabrocharam
Na infância as flores da existência minha.
Amor de pai, de mãe, de irmãos, douraram
A amena senda, que ante mim eu tinha.
E depois... ai, irmão! que acerbas dores
Juntos sofremos! Murchas, ressequidas,
Desfolharam-se as mais viçosas flores,
Ceifou a dura morte aquelas vidas.
O belo céu, que nos sorriu na infância,
Em breve se mostrou turbado e triste;
A terna mãe pedira a outra estância
A paz, que neste mundo não existe.
E ai daquele, que no alvor da vida
Perdeu pra sempre maternais afagos,
Ai, que bem cedo a vê ser consumida
Por mil anelos, mil desejos vagos.
Ai, bem cedo o sentimos! Separados
Do sol que a infância em luz nos envolvia,
Quais estioladas plantas, assombrados,
A fronte inda infantil, já nos pendia.
E assim viveste! e quando a idade ardente
De mil aspirações te enchia o peito,
Olhaste, e vendo a isolação somente,
Cansado, te deitaste em frio leito.
POESIAS
E eu, em vão no ataúde me curvava,
Em vão hei procurado a tua campa;
A morte de mistérios te falava,
Mas nos lábios do morto o dedo estampa.
Em vão te perguntei: Nessa morada
Outros fúlgidos sonhos imaginas?
Ao sair da vida deparaste o nada?
Ou acordaste em regiões divinas?
Mudo ficaste. Os ventos perpassaram,
Soltando queixas no volver das folhas,
E teus lábios imóveis não falaram,
Nem sequer o irmão saudoso olhas.
Meu Deus! permite que através da lousa
Possa ele ouvir a minha voz ainda,
E desse leito, onde afinal repousa,
Me diga: A vida neste pó não finda;
Me diga: A crença que na leda infância
Aprendemos da mãe é verdadeira;
Há outra vida, há uma outra estância,
Tão feliz, quanto esta é passageira;
Que se encontram os entes mais queridos,
E em eterno amplexo a Deus se humilham;
Oue os prazeres em sonhos concebidos
Só há no espaço onde as estrelas brilham.
E então, ó Senhor, com a fé mais pura
Eu ansiarei pelo supremo instante
Em que, livre da humana desventura,
Demandar tua estância radiante.
Deixa que o amigo ao amigo só revele
Os segredos que a morte lhe confia,
Esta incerteza... em vão a fé repele,
A dúvida cruel continuo a cria.
Porque negas, Senhor, ao peregrino
Que vai cumprindo só esta romagem ,
Um raio ao menos do saber divino,
Que lhe brade na dúvida: Coragem !?
Porque não ha-de a lousa funerária
Erguer-se à voz saudosa da amizade,
Para falar à alma solitária
Que anela por saber toda a verdade?
Porquê?... Mas, Deus, perdoa! eu creio! eu creio!
No seu leito de morte o conheci:
Sim, nesse instante de tormentos cheio,
No peito a voz da crença bem ouvi!
E por isso prostrei-me de joelhos,
E os lábios murmuravam a oração,
E cri então no Deus dos Evangelhos,
E a dúvida deixou-me o coração.
Repousa, irmão, à sombra do cipreste;
Não repousar na terra é desventura.
Dorme no mundo e acorda à luz celeste,
Cruzando o limiar da sepultura.
Dezembro de 1859.
Nota do Autor. — Duvidar da verdade desta poesia, era duvidar dos meus sentimentos mais puros, dos meus mais queridos afectos e nesse caso, não sei de palavras que me pudessem justificar.
A MORTE DO POETA
(A memória de A. A. Soares de Passos)
Calou-se a lira! E a criação nos coros
De menos uma voz aos céus revoa!
Na imensa harpa, em que o universo entoa
Seus cânticos, de menos uma corda!
Que foi? que nota falta às harmonias?
Que foi? que mão deixou quebrar a lira?
O poeta morreu, o canto expira,
Cessam seus hinos do sepulcro à borda!
Morreu o teu cantor, ó Armamento!
Teu sacerdote ardente, ó poesia!
Ó Deus, ó Pátria, a última agonia
Gelou a voz que hosanas vos sagrara!
Crente inspirado, os brados do entusiasmo
Não lhe esfriou dos homens a indiferença,
E a venenosa taça da descrença
Dos generosos lábios arrojara!
O poeta morreu! E o Sol e os astros
Que ele cantou, e a abóbada celeste
De lutuosas trevas se não veste;
E tu, ó Pátria, que ele amava tanto,
Tu dormes inda esse gelado sono ?!
Não te acorda o seu último gemido?
Sente-lhe a morte, se não hás sentido
De animação e glória o eterno canto.
POESIAS
Mas não; os homens vêem pasmar o féretro,
Vêem do sepulcro alevantar-se a lousa,
E, olhando a nobre fronte que repousa,
— Quem é ? perguntam com cruel frieza.
— É um poeta, lhes respondem poucos.
Um poeta! palavra incompreensível!
Por ele a multidão passa insensível,
E a campa desampara com presteza.
E um poeta morreu! listas palavras
Nada vos dizem, povos, que as ouvistes?
Não as há mais solenes nem mais tristes.
Oh! nelas reflecti um só momento!
Não sabeis o que diz a morte do homem
Que se encaminha à campa que lhe ergueram
Seguido apenas dos que ainda veneram
O culto da poesia e pensamento?
Não ouvis esse dobre, que o lamenta?
É como a voz do século, que brada:
— «Chorai, ó multidões, que na cruzada
Da civilização vos alistastes,
Chorai, um dos soldados que hà caído,
Deus lhe dera a bandeira que vos guia,
O estandarte da idéia, a poesia;
Mas vós na heróica empresa o abandonastes !
«Lamenta, ó liberdade, o teu apóstolo!
Amor, o coração que te entendia!
Tu, Pátria, o filho que melhor podia
Entre as nações da terra engrandecer-te!
Religião, ai! chora o sacerdote,
Que, entoando no templo os sacros hinos,
Chamara os povos aos altares divinos
E cultos sem iguais pudera erguer-te!»
E tu, 0 mundo, o vês quase indiferente!
Curva a cabeça ante essa campa aberta,
Ajoelha-te, e a fronte descoberta,
Venera as cinzas que deixou na Terra;
Os restos são da mais violenta chama,
Que o fogo do Céu no mundo ateia;
A chama ardente de inspirada idéia,
Fogo que a mente do poeta encerra I
POESIAS
Verte, oh! verte uma lágrima na tumba;
Uma lágrima só. Outros desejam
Soberbos mausoléus onde se vejam
Fulgir os nomes seus em letras d'ouro;
Ele não. Flores e lágrimas, eis tudo!
Eis o diadema a que o poeta aspira;
Porque lho negas? Que paixão te inspirar
Delas fizeste, ó mundo, o teu tesouro?
Ai, não; umas e outras as desprezas:
As flores procuram as campinas,
Porque a turba, ao passar, calca as boninas,
E o sopro das cidades as murchava.
As lágrimas, as flores do sentimento,
Não as diviso já nos olhos do homem,
Ou das paixões as lavas as consomem,
Ou morto é o sentimento que as gerava.
Fazes bem em passar, mundo, se ignoras
Desta cena a solene majestade,
Impassível ficar era impiedade.
Parte, vai; a indiferença era um insulto.
Oh! mil vezes mais grato o isolamento...
Mas não, o isolamento não existe:
Junto da campa se reúne triste
Longo cortejo de lutuoso vulto.
Ei-los; do vasto templo se avizinham,
Trazem no rosto a dor, que os consome.
Esses veneram do poeta o nome,
Do féretro ao passar, curvam a fronte,
Respeitai esse pranto, que é sentido;
Longe, indiferentes, que o lugar é santo!
Os que entenderam seu sublime canto,
Saúdam-no ao sumir-se no horizonte I
Silêncio! A Pátria do seu sono acorda!
Sono talvez, que precursor da morte,
Do filho só lamenta a triste sorte,
3eme saudosa com magoado acento!
A i, nos seus dias de passada glória,
De mãe o desespero a voz lhe erguera,
E, em seu clamor, às praias estendera
Das nações mais longínquas o alto alento.
POESIAS
Mas hoje, já de forças exaurida,
É fraca a sua voz ante essa tumba;
Do peito vem, porém já não retumba
Nos ecos das nações mais poderosas.
Apenas sua irmã, a mais vizinha,
Que quase a mesma linguagem fala,
Compassiva parece lamentá-la,
Ouvindo suas queixas dolorosas.
Poeta, dorme pois: a tua campa
Não ficará sem lágrimas nem flores,
As liras soltam fúnebres clamores
E os ventos reproduzem suas queixas.
Dorme, dorme, poeta, que teu sono
A turba inquietaria com seus passos;
Mas qual o infante nos maternos braços,
Dorme ao som dessas lânguidas endeixas.
Dorme, dorme em sossego... mas, silêncio!
Para que solto a voz? Cala-te ó lira!
Se o gênio da poesia não te inspira,
Para que o seu cultor lamentas triste?
Diante da mudez deste sepulcro
Teus ais de dor, ó coração, suspende;
Vê em silêncio o Sol, que ao ocaso pende
Como em silêncio no zénite o viste.
Março de 1860.
Nota do Autor. — Obedeci a um impulso irresistível escrevendo esta poesia.
Admirei Soares de Passos durante a vida, como poeta, no seu livro; como homem, nas sempre lembradas noites em que, entre poucos mas escolhidos amigos, víamos em sua casa correrem as horas como instantes e passarem as longas noites de Inverno como um sonho delicioso e aprazível. Foi então que pudemos apreciar a pureza daquele caracter, aquela rigidez de princípios, que nesta época de indiferentismo e egoísta especulação, causava assombro a quantos o ouviam. Por isso, quando morreu, senti-o. como todos que prezavam as letras pátrias e como todos que respeitam os caracteres elevados; mas senti-o também, como ninguém, pela dor que a sua morte deixava no coração de seu irmão, o mais sincero, desinteressado e generoso amigo que nunca hei encontrado. Tudo isto me levou a lamentar a sua morte, temerária empresa de onde me não podia sair bem.
UMA RECORDAÇÃO
Lembra-me ver-te inda infante,
Quando nos campos corrias
Em folguedos palpitantes;
Eras bela! e então sorrias.
Depois, na infância, eras inda,
Junto ao cadáver rezavas
De tua mãe, com dor infinda;
Eras bela! e então choravas.
Num baile vi-te valsando
Da juventude nos dias,
Todos de amor fascinando;
Eras bela! e então sorrias.
Dias depois encontrei-te;
Nos céus os olhos fitavas;
Sem me veres contemplei-te;
Eras bela! e então choravas.
Quando ao templo caminhando
Entre flores e alegrias,
De esposa a vida encetando,
Eras bela! e então sorrias.
POESIAS
Quando na campa do esposo
Com teu filho ajoelhavas,
Grupo inocente e saudoso!
Eras bela! e então choravas.
Num ataúde deitada
Eu te vi em breves dias,
Mimosa flor desfolhada!
Eras bela! e então sorrias.
Sorrindo, na vida entraste,
Sorrindo deixaste a vida;
Alguma flor que encontraste
A espinhos a viste unida.
Sim, às vezes tu sorrias,
E os sorrisos o que são?
Quase sempre profecias
Das penas do coração.
1857.
Nota do Autor. — Sorrisos e lágrimas andam muitas vezes acompanhados, uns por os outros, na vida. Olhada por este lado. esta poesia é verdadeira. Alguma coisa me podiam dizer as minhas recordações, para o provar, mas não seria absolutamente o que escrevi. Neste ponto é ela mentirosa. É pecado de que me confesso arrependido.
ÉS BELA
Es bela, sim, quando, corando, foges
Dum beijo perseguida;
Ou quando cedes com mais pejo ainda,
Mas na luta vencida.
És bela, sim, quando, banhada em lágrimas,
Soltas mimosas queixas;
Ou quando, comovida por maus prantos,
Já ameigar-te deixas.
És bela, sim, à luz do Sol nascente
Regando tuas flores,
Ou com os olhos no ocaso e o pensamento
No país dos amores.
És bela sempre, e o mesmo fogo acendes
No coração do poeta;
És bela sempre, ó linda flor do prado,
Ó mimosa violeta,
Março de 1882.
Quem te disse o segredo destas lágrimas,
Pra assim me consolares?
Quem te disse que a dor que me angustiava
Cedia aos teus olhares?
Criança, onde aprendeste essa ciência,
Ignorada de tantos?
Algum anjo do Céu é quem te inspira
Do conforto os encantos?
Oh! vem, vem junto a mim com teus sorrisos
Livrar-me destas trevas,
Rir-te do meu ar lúgubre, falar-me,
Vem, que só tu me enlevas.
Protegido por ti em círculo mágico,
Desafio a tristeza,
Que onde a infância se mostra tudo folga,
Homens e natureza;
Pra ti, pra tua idade descuidosa
Semeou Deus as flores,
Deu-te o cantar das aves por cortejo,
Deu-te o Céu por amores.
POESIAS
Vem, pois, os teus cabelos d'ouro puro
A pousar-me na fronte,
Como os raios do Sol cingindo as serras
Ao surgir no horizonte.
Vem, que junto de ti nem compreendo
Estes falsos tormentos;
Mensageira celeste, sê bem-vinda,
Longe meus pensamentos!
Quando, baixando a fronte, os olhos pousam
Em sorrisos de infantes,
Esquece-se o infortúnio, os risos voltam
E erguemo-nos radiantes.
Assim como nos rimos de teus ogos,
Tu ris das nossas penas;
Ambos somos crianças, variando
Nosso brinquedo apenas.
Tu criaste uma vida imaginária
Que cede à fantasia.
Nós co'a vida real também brincamos,
Porém sem alegria.
3 de Junho de 1862.
SAUDADE E ESPERANÇA
Ai não foi sonho, não. Era na infância,
Duas visões queridas
Ao lado do meu berço me sorriam
De uma amorosa auréola cingidas;
Eu sorria também. Vendo-as tão belas,
Por anjos as tomava,
E acordando dum sonho de inocência,
Inda a mais gratos sonhos me entregava.
E repetindo as orações ferventes,
Que à voz da mãe ouvia,
Olhava-as, e julgava que era a elas
Que tão sentidas preces dirigia.
Quando as via, tão jovens e já tristes,
Olhar a mãe chorando,
Eu cismava, e o infortúnio pressentia,
Vago ainda, os meus dias ameaçando.
E o infortúnio chegou. Era uma noite,
E eu ainda infante
Despertei aos gemidos dolorosos
Das órfãs junto à mãe agonizante!