Reymond Rolland por Mark Brunkow - Versão HTML
Faça o download do livro em PDF, ePub, Kindle para obter uma versão completa.

1
markbrunkow@yahoo.com.br
Mark Brunkow
Reymond Rolland
Contra a
Ordem dos Cavaleiros do Sagrado Coração
Abril 2009
2
markbrunkow@yahoo.com.br
Por que jovens gostam de rock and roll?
Ora, porque os pais não gostam, é claro!
Chuck Berry
3
markbrunkow@yahoo.com.br
Um Tipo Simples de Homem
Com dificuldade, devido sua enorme barriga de
gestante, caminha até a porta de acesso ao porão. A
porta esta entre aberta deixando escapar uma melodia
que de onde está não consegue distinguir. Ao se
aproximar da maçaneta abre um largo sorriso por
reconhecer o som que tanto gosta o de seu marido
terminando de afinar mais um de seus instrumentos
musicais, suas obras de arte ou como ele gosta de
chamar, seus filhos.
Enquanto desce a escada segurando no corrimão pensa
o quanto adora aquele lugar. Sentir a madeira
escorregando por baixo de sua mão, o aroma de cedro
envelhecido, o cheiro do café feito no fogão à lenha
que seu marido comprou com tanto custo, as paredes
de pedra bruta que dão ao lugar uma incrível sensação
de segurança muito diferente dos materiais usados
atualmente. Era como se ao descer aqueles degraus
voltasse no tempo, um tempo que já não existe mais,
onde a tecnologia não superou nossa humanidade.
Onde a poesia ainda encanta e a vida não parece ser
tão fria e distante de tudo o que acreditamos ser
verdadeiro.
Fica parada alguns instantes ao pé da escada
contemplando seu marido que sentado em uma
cadeira de madeira com acento em palha, dedilha
afinando, o magnífico instrumento. Ao seu lado direito
o velho fogão e em cima a chaleira, com o café recém
passado, dando um delicioso aroma ao lugar. Em sua
frente à velha poltrona do “papai”, mais ao fundo a
bancada
de
trabalho
com
suas
ferramentas
4
markbrunkow@yahoo.com.br
rudimentares que segundo ele é o que dá alma ao
instrumento. No outro canto, em prateleiras que
cobrem toda a enorme parede, muito bem arrumada
sua incrível e inestimável coleção musical com
verdadeiras raridades da música de todos os tempos,
todos devidamente separados e etiquetados por estilos
musicais, shows, apresentações ao vivo, etc.
Ele absorto em sua tarefa leva ainda alguns segundos
para perceber a presença da esposa a observá-lo.
- Querida, o que você faz aqui em baixo? Você sabe que
não deve se arriscar em descer as escadas na sua
situação!
- Deixa disso Memphis! Estou grávida, não doente, e
você sabe o quanto eu adoro este lugar, o nosso
esconderijo. – sorrindo.
- Eu sei querida. – pegando a mão da esposa e a
encaminhando a poltrona do “papai” em couro
legítimo, bem puído, mais ainda confortável, perto do
fogão a lenha para que ela se aqueça.
- Nossa este violão ficou maravilhoso!
- Viola querida, viola, e modéstia parte, esta eu
caprichei!
Memphis era um homem bonito com um metro e
oitenta e cinco, oitenta quilos, corpo atlético, longos
cabelos negros que lhe caiam sobre os ombros e olhos
castanhos claros quase esverdeados além de ser um
luthier talentosíssimo, profissão essa que herdou de
seu pai. Com ele aprendeu todos os segredos de como
construir instrumentos de forma artesanal de maneira
única. Que sua profissão, a luthieria, se referia à arte da
construção e da manutenção de instrumentos musicais
levados à perfeição. E que sua origem se confunde com
a própria evolução da música.
5
markbrunkow@yahoo.com.br
- Já tem comprador Memphis?
- Já – decepcionado. - Foi feita por encomenda. É uma
pena na verdade! Uma obra de arte tão bela ir parar na
parede de um ricaço sem talento. Se tornar um objeto
de decoração, sem alma, quando poderia produzir
tanta beleza com suas notas e acordes perfeitos.
- Querido, para isso seria necessário um músico tão
talentoso quanto você para tocá-la. Mas realmente é
uma pena que a música, assim como as artes em geral
já não tenha mais seu merecido valor. As pessoas já
não se interessam pelo talento ou pela melodia e
poesia que a música encerra.
- Tempos modernos meu amor. Acho que infelizmente
este é o preço que pagamos pelo progresso. Tudo
muito rápido, muito pequeno e descartável. – com um
sorriso triste a escapar-lhe dos lábios. - As pessoas já
não têm tempo para apreciar as boas coisas da vida.
Tudo tem que ser rápido ou então fica ultrapassado.
Veja os jovens de hoje, só se interessam por essa
porcaria de música eletrônica ficam enfiados em seus
computadores como se a vida se resumisse a mundos
virtuais. Acredito que muitos deles nunca viram sequer
um violão de verdade.
- Quem diria querido, os “Nerds” – sorrindo –
dominaram o mundo e no mais nem todos têm a sorte
de ter tido um pai como o seu. Mas isso com certeza
não acontecerá com nosso filho, pois ele terá a sorte de
ter você como pai que irá ensiná-lo a dar valor à
verdadeira música e a tocá-la com alma.
Grace possuía uma beleza clássica com todos os
contornos muito bem delineados. Esguia e imponente a
primeira vista passava a impressão de fragilidade o que
era logo desmentido pela personalidade forte. Olhando
6
markbrunkow@yahoo.com.br
para esposa tinha certeza que ela era à única coisa que
ainda fazia com que ele quisesse colocar uma nova vida
naquele mundo tecnológico, com suas máquinas cada
dia mais inteligentes, rápidas e insensíveis. Acreditava
fielmente que afinal de contas se seu filho fosse um
pouquinho só parecido com a mãe já seria o suficiente
para tornar esse mundo um lugar muito mais belo e
melhor. Percebendo sua esposa cismada pergunta.
- O que foi querida? Você parece preocupada?
- Nada amor. – constrangida.
- Grace Land Rolland, eu te conheço! Desembucha
logo! O que está te incomodando?
- Seu irmão telefonou hoje. – olhando para o marido
tentando avaliar sua reação.
- O que ele queria? Te converter?
- Não fale assim querido, ele só ligou para dar um alô e
perguntar do bebê.
- Com o Abbey sempre existe uma segunda intenção.
Eu sei que ele é meu irmão, mas infelizmente tenho
que admitir que ele não é uma boa pessoa. É incrível
como um fruto pode cair tão longe da árvore. O que ele
disse?
- Você sabe que ele não gosta de ser chamado mais de
Abbey. Que agora seu nome é Július. Devemos
respeitar isso. E nada de mais. Perguntou como estão
às coisas e para quando é o bebê. Ele pediu para falar
com você e eu disse que você não estava. Fiz mal?
- Não. Claro que não. E seu nome é Abbey Rolland. –
com um ar entre indignado e irritado.
- Vocês deveriam se entender, afinal com a morte de
seu pai, agora são só vocês dois.
- Querida minha relação com ele nunca foi muito boa.
Ele é uma pessoa muito difícil de lidar. Sempre foi
7
markbrunkow@yahoo.com.br
extremamente egoísta, autoritário, intransigente.
Acredita que todos ao seu redor estão ali para servi-lo.
Ele escolheu seu caminho quando entrou para aquela
religião fascista. Um bando de fanáticos religiosos
intolerantes e ditatoriais como ele. Meu pai morreu de
desgosto. Ele que sempre defendeu a liberdade em
todas suas formas não agüentou ver seu filho mais
velho virar um ditador bitolado, sem opinião, um
cachorrinho domesticado, uma ovelha de um rebanho
intolerante.
- Não exagera querido, seu pai morreu em um acidente
quando voltava da turnê de sua banda pela Europa.
Ninguém teve culpa. E sei realmente que seu irmão
pode ser bem inconveniente às vezes. Mas a culpa não
é da religião, todas conduzem ao mesmo caminho, que
é Deus. Minha mãe dizia que a verdade é como um
espelho que caiu do céu e que cada religião pegou um
pedaço desse espelho. O problema são as pessoas que
as professam em causa própria, buscando ganhos
pessoais.
- Eu sei querida, mas a partir daquele dia que ele disse
ao meu pai que iria embora para se juntar aos
“fanáticos”, meu pai nunca mais foi o mesmo. Alguma
coisa dentro dele quebrou, morreu. Nem mesmo a
música que ele tanto adorava já não lhe proporcionava
a mesma alegria.
- O seu irmão nunca entendeu seu pai, por preferir
fabricar instrumentos e tocar com sua banda a
trabalhar em uma empresa como os outros. Ele é muito
ganancioso. Sempre acreditou que se seu pai fosse
como os outros, a vida de vocês seria melhor,
financeiramente.
8
markbrunkow@yahoo.com.br
- É verdade ele nunca aceitou o fato do papai não ter
um emprego normal assim como o pai dos outros
garotos. Ele tinha vergonha de dizer que papai era
músico. Ele sempre achou que a música era uma perda
de tempo. Ele dizia que meu pai vivia no passado, que
aquilo que ele e seus amigos “bêbados” faziam, um
simples computador doméstico fazia muito melhor,
mais rápido e mais barato. E que ninguém mais se
interessa por aquela porcaria feita por velhos em
instrumentos arcaicos.
- Seu irmão nunca entendeu o verdadeiro sentido da
música querido. Ele apenas escutava a música, não a
ouvia. Mas ele amava seu pai, a seu modo.
- Não querida, Abbey, ou melhor Július ama e sempre
amou somente ele e mais ninguém. Meu pai sempre
amou a vida com tanta força. Já ele sempre com medo
dela.
- Seu pai era como você, um apaixonado pela vida, pela
música, pela liberdade. Já o seu irmão...
- Para ele tudo era culpa de meu pai ou como ele dizia,
“DA MALDITA MÚSICA”! – com os braços erguidos ao
céu.
- Ele nunca perdoou seu pai por ter permitido que sua
mãe fosse embora. O fato dela ter os abandonado tão
novos só serviu para aumentar o ódio de seu irmão
pela música, amor.
- Mas meu pai nunca deixou faltar nada em casa e
sempre estava presente. Não tínhamos uma vida de
ostentações, mas éramos felizes. E em relação a minha
mãe como dizia meu pai não podemos exigir de alguém
aquilo ela não tem para nos dar. Ela fez suas escolhas.
9
markbrunkow@yahoo.com.br
- Eu sei querido. – colocando a mão sobre a barriga
enorme e sorrindo para o marido desviando o rumo da
conversa. – Ele esta terrível hoje, não para de chutar.
- E como vai o meu pequeno Hendrix Rolland? –
encostando o ouvido na barriga da mulher.
- Falando nisso querido, eu andei pensando e gostaria
de dar a ele o nome de outro grande músico, se você
não se importar?
- Claro querida. Que tal Elvis Aaron Rolland ou Lennon
Rolland?
- Eu estava pensando em Reymond Rolland. – olhando
fixamente para o marido tentando decifrar sua reação.
Ele fica parado olhando para Grace durante alguns
segundo e extremamente emocionado com os olhos
marejados fala.
- O nome do meu pai?
- Como eu disse um grande músico além de um
excepcional ser humano. – sorrindo.
- Ele ficaria orgulhoso querida e eu também, obrigado.
– vai até ela e lhe dá um beijo.
Pegando a viola que estava deitada em seu colo, como
um gato dormindo, começa a dedilhar uma canção que
seu bisavô tocava para seu avô que tocava para seu pai
que ele agora tocaria para seu filho. Uma canção muito
antiga, de um tempo muito distante, onde a música
ainda tinha valor e era verdadeiramente apreciada
pelas pessoas, um tempo em que ainda se falava de
amor e as pessoas escutavam. Enquanto tocava Simple
Man do Lynyrd Skynyrd refletia o quanto a letra fazia
sentido agora no ano de 2134, e se seus autores algum
dia acreditaram que ela seria tão atual agora quanto
quando foi feita.
10
markbrunkow@yahoo.com.br
Mamãe me disse quando eu era jovem
Venha sentar-se ao meu lado, meu único filho,
E escute com atenção o que eu digo.
E se você fizer isto irá lhe ajudar em algum belo dia.
Leve seu tempo... Não viva tão rápido,
Dificuldades virão e passarão.
Vá encontre uma mulher e encontrará amor,
E não esqueça filho, Há alguém lá em cima.
E seja um tipo simples de homem
Seja algo que você ame e entenda.
Seja um tipo simples de homem...
11
markbrunkow@yahoo.com.br
Mostre-me o Caminho
Enquanto caminha vagarosamente pelo longo corredor
Július absorto em seus pensamentos reflete sobre a
trajetória de vida de seu Mestre. Passando pelos
enormes vitrais na parede a sua direita, que projetam
sombras coloridas em formas geométricas pelo chão,
relembra a primeira vez que teve conhecimento de
Manoel Santiago de Castro. Os fatos em sua mente se
desenrolam como um filme e são tão vívidos que era
como se ele os tivesse vivendo naquele momento.
“Era uma tarde chuvosa e como sempre acontecia
quando seu pai saia para uma turnê com sua banda,
Július com dezessete anos, se trancava no quarto para
ver televisão e ficar remoendo o quanto odiava a vida
que seu pai levava e os obrigava a levar. Não aceitava
ter que trabalhar meio expediente para ter seus
caprichos realizados. Não conseguia entender o
fascínio que a música exercia sobre as pessoas e
porque elas ficavam tão contentes quando as ouviam.”
“De personalidade fechada e intolerante não gostava
de demonstrações de carinho ou afeto em público
sempre repreendendo com olhares ou mesmo palavras
seu irmão e pai quando os via abraçados. Não entendia
como seu pai podia gostar tanto de tocar com seus
amigos ao invés de procurar um emprego descente
para lhes proporcionar uma vida mais suntuosa.
Admitia que nunca lhe faltasse nada, nem a ele nem a
seu irmão, mais porque se contentar com o suficiente
quando se pode ter mais.”
“Enquanto divagava assistia à televisão quando viu uma
reportagem que contava a história do ex-playboy
12
markbrunkow@yahoo.com.br
multibilionário e agora líder religioso, Manoel Santiago
de Castro, dono de um império das telecomunicações
além de empresas nos mais variados setores
industriais, que durante uma viajem de passeio pela
floresta Amazônica fica dez dias perdido na mata e ao
ser encontrado semimorto com muita febre dizia ter
tido uma revelação. Segundo o empresário nesta
revelação, quando estava à beira da morte, uma voz
divina que o chamava dizia:
- Você foi abençoado com muito dinheiro, saúde,
beleza e poder. E o que você fez com esse presente que
lhe enviei. Gasta tudo com mulheres, bebida e farras
regada a muitas drogas. Mas seu destino é outro. Você
é o escolhido e deve conduzir meu povo a salvação.
Chega de desordem, excessos dos mais variados tipos,
libertinagem e falta de respeito a quem lhes deu a vida.
Salvarei sua vida para que você divulgue o novo
evangelho. Você deverá usar sua fortuna para divulgá-
lo. E conduzir meu povo a terra prometida. Você
fundará a Ordem dos Cavaleiros do Sagrado Coração.
Agora descanse, pois seu trabalho esta apenas
começando.”
“Neste instante ouve barulhos ao seu lado e vê a
equipe de resgate chegando, então adormece. Ao se
recuperar funda, assim como ordenado, a OCSC
(Ordem dos Cavaleiros do Sagrado Coração) constrói
um palácio para realizar as reuniões de evangelização,
divulga maciçamente sua doutrina utilizando seu
império das telecomunicações e em poucos anos tem
vários adeptos fanáticos espalhados pelos quatro
cantos do mundo.”
“Basicamente a nova religião pegou tudo o que é
considerado
pecado
no
Catolicismo,
Budismo,
13
markbrunkow@yahoo.com.br
Judaísmo e no fundamentalismo Mulçumano e
englobou em sua doutrina. Proíbe qualquer e todo tipo
de excesso sendo extremamente rígida com seus
adeptos. Prega que para atingir a salvação seus
seguidores devem abster-se das alegrias mundanas do
mundo. Que música, teatro, pintura as artes em geral
nos conduzem a questionamentos que nos desviam de
nossa missão na terra que é glorificar ao Senhor. E que
para isso devemos progredir financeiramente para
atingirmos nosso potencial máximo e proporcionar ao
Senhor uma digna adoração.”
“Július mal podia acreditar no que estava ouvindo, pois
em seu íntimo ele acreditava em tudo aquilo, que
realmente a felicidade nos conduz a ilusão de alegria
que logo é destruída pela dura realidade e o que resta
é apenas sofrimento. Que a felicidade e a esperança,
na realidade são uma mal com que nos fazem acreditar
que a vida pode ser boa quando na realidade a única
maneira de atingirmos isso é através da disciplina e
autocontrole de nossas emoções.”
“No mesmo dia saiu de casa para se batizar na nova
religião. Mudou seu nome profano de Abbey para
Július. Agora quinze anos depois com muito trabalho e
dedicação a doutrina que escolheu para sua vida colhe
os frutos de seu trabalho, é o braço direito, homem de
inteira confiança de seu mestre, Manoel Santiago de
Castro.”
Parado em frente à enorme porta de carvalho maciço
toda entalhada bate levemente com os nós dos dedos e
espera pacientemente como sempre fazia. Logo houve
a resposta esperada.
- Entre.
14
markbrunkow@yahoo.com.br
Apesar de já ter estado ali inúmeras outras vezes
sempre se impressionava com a beleza do escritório de
seu mestre. Era uma sala enorme toda decorada com
móveis rústicos o que dava um ar ainda mais solene,
quase sagrado ao lugar. O assoalho sempre
extremamente bem encerado brilhava como um
espelho. Ao fundo a mesa em mogno belíssima refletia
a luz das enormes janelas de onde se via o jardim
exuberante. Nas paredes laterais prateleiras repletas
de livros.
Parado em frente a uma delas Manoel Santiago de
Castro, seu mestre lê um livro com extremo interesse.
Olha durante alguns segundos para ele e sem saber se
deve interrompê-lo somente pigarreia. O homem de
cerca de sessenta anos, corpo atlético, um metro e
oitenta, cabelos grisalhos, ombros largos de estrema
elegância o que lhe impunha ainda mais respeito como
que se despertasse de um transe vira a cabeça na
direção de onde veio o som. Olhando para Július, sorri.
- Olá Július.
- Olá Mestre. – com uma leve reverência.
- Você não deve saber Július, mas foi basicamente
graças a este livro que tenho nas mãos que me tornei o
que sou hoje. – balançando o livro no ar.
- A Bíblia, Mestre?
- Não Július. A Bíblia foi um dos livros, assim como o
Torá, os Vedas e os Upanixades, o Alcorão entre outros
todos estes me deram a direção. Mas este aqui foi o
que fez com que eu descobrisse como realizar minha
verdadeira missão na terra. Foi o que abriu minha
mente.
- Se o senhor me permite saber, que livro é este
Mestre?
15
markbrunkow@yahoo.com.br
- Na realidade é um conto Július. Um simples conto.
Com poucas, mas reveladoras verdades sobre a alma
do ser humano meu rapaz. De autoria de um
extraordinário escritor antigo, Machado de Assis. O
nome deste conto é A Igreja do Diabo.
Percebendo o espanto do rapaz o senhor sorridente
logo trata de explicar.
- Calma meu amigo. Sente aqui que vou explicar. –
apontando uma cadeira em frente a sua mesa.
- Quando eu tinha mais ou menos a sua idade, cerca de
trinta anos e procurava uma maneira de cumprir minha
missão, me presentearam com este livro. Nele o conto
“A Igreja do Diabo” que narrarei para você. Espero que
eu consiga reproduzir e lhe transmitir toda a beleza e
genialidade de Machado de Assis. Se você não se
importar é claro? – olhando de canto e com um leve
sorriso a lhe escapar dos lábios.
- Claro que não Mestre, será uma honra, afinal um
conto que lhe serviu de inspiração para nos mostrar a
verdade sempre será bem vindo.
- Então vamos lá.
“Conta um velho manuscrito beneditino que um dia o
Diabo cansado de viver em segundo plano sempre
dependendo dos favores daqueles que se rebelavam
contra as ordens de Deus e esperando que lhe dessem
alguma coisa resolve fundar uma igreja. Apesar de ter
bastantes adeptos e seguidores e os lucros serem altos
sentia-se humilhado por estar em segundo plano. Sem
ordem, organização, regras, sem nada. Então uma
igreja era a solução. A Igreja do Diabo.”
“Cego por seu orgulho imaginava sua igreja belíssima,
imponente cheia de seguidores fiéis a final não haveria
quem pudesse com a Igreja do Diabo onde tudo o que
16
markbrunkow@yahoo.com.br
é pecado nas demais igrejas na sua seria permitido e
tudo que é permitido nas outras na sua seria pecado.
Seu credo seria único enquanto todas as outras se
digladiariam com visões diferentes do mesmo tema e a
sua seria única. Afinal existem muitas maneiras de
afirmar, mas só uma de negar tudo.”
“Então cheio de orgulho segue para ter com Deus e
contar suas intenções. Não por respeito ou apreço, mas
para poder se vangloriar sobre seu antigo mestre, ou
em sua visão agora, antigo mestre vencido. Chegando
lá Nosso Senhor recolhe um velho ancião. O Diabo olha
para Ele e fala.”
- Cuida bem deste ancião Senhor, colocá-lo no melhor
lugar que tem, pois com certeza será o último que
recolherá. - sorrindo zombeteiro.
- Que queres tu aqui? E conhece este homem? Sabe o
que ele fez?
- Não, mas hoje venho comunicar que estou fundando
minha igreja. A Igreja do Diabo. Uma hospedagem
muito mais em conta, digamos assim, que os altos
preços que o senhor prega para entrar em seu reino.
- E por que veio até aqui comunicar isso. Não é do seu
feitio já que sempre age de maneira mesquinha e falsa.
- Exatamente. Hoje venho comunicar que vou a terra
para anunciar a boa nova aos homens. Se o senhor não
se importar é claro. – sinicamente.
- Vai criatura tola. Funda sua Igreja. Recolhe aqueles
que assim desejarem.
“Já na terra o Diabo não perdeu tempo. Prometia a
seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as
glórias e riquezas o céu era o limite sem restrições
morais de qualquer forma. Confessava que era o Diabo.
Mas o verdadeiro, que durante milênios foi
17
markbrunkow@yahoo.com.br
espezinhado, difamado por todos. Que era afinal
Lúcifer, ou seja, o emissário da Luz. Falava de maneira
gentil dizendo lhes darei tudo, tudo, absolutamente
tudo, enquanto sorria satisfeito. Conclamava que a
soberba, a luxuria, a gula, a inveja, a preguiça, a
avareza, e a ira não passavam de condições inerentes
ao ser humano e que por isso mesmo não poderiam ser
negadas. As pessoas corriam atrás do Diabo se
deleitando em suas palavras. E logo tinha a seus pés
milhões de fiéis ávidos por seus ensinamentos.”
“As previsões do Diabo se concretizaram em
pouquíssimo tempo não havia uma única religião no
mundo que não conhecesse a Igreja do Diabo, uma
língua que não a traduzisse, uma raça que não a
amasse. Sua doutrina se propagou como fogo em
palha.”
“Um dia, porém, muitos anos após a fundação de sua
igreja notou o Diabo que muitos de seus fiéis pecavam,
praticando
antigas
virtudes.
Pessoas
ajudando
estranhos, sendo educadas, fiéis aos seus parceiros,
praticando tudo o que era proibido em sua crença. As
filas em seus confessionários todos os dias mais cheias.
Não teve dúvida e a julgar por suas ações acreditou
logo que isso não passava de uma artimanha de Deus e
segue furioso para ter com Ele.”
“Diante de Deus despejou tudo o que estava
acontecendo contando fatos ocorridos de pessoas
praticando boas ações e que a culpa deveria ser de
alguma artimanha de Deus. Este, calmo e tranqüilo,
apenas olha para o pobre Diabo e sorrindo fala.”
- E o que você queria, pobre Diabo? Está é a eterna,
contradição humana. Nunca estarem satisfeitos. Dê
18
markbrunkow@yahoo.com.br
escolha e eles experimentarão! É assim que eles
aprendem, com seus erros. – sorrindo complacente.
Ao terminar o texto olha atentamente para seu pupilo
preferido tentando identificar sua reação.
- Então Július o que achou?
- Fantástico senhor, mas desculpe minha ignorância
como este conto pôde influenciar o senhor em sua
missão?
O velho sorrindo olhando atentamente para o rapaz
diz:
- Meu caro discípulo, durante milênios apareceram
diversos profetas, líderes espirituais, as mais diversas
vertentes religiosas e doutrinárias e todas fracassaram
em sua real finalidade que é conduzir o ser humano a
salvação de sua alma. E sabe por quê? – sem deixar que
o outro respondesse. – É por que todas estas religiões
possibilitam inúmeras interpretações de suas doutrinas
o que causa uma grande confusão entre seus
seguidores. Afinal como saber qual está correta se para
cada religião existe uma interpretação diferente do
mesmo texto.
O ser humano anseia por ser conduzido, ele necessita
que lhes digam o caminho a seguir. Não é a toa que
somos as ovelhas do Pai, seu rebanho. As pessoas
dizem que querem variedade possibilidades para seguir
o que acham correto, mas na realidade elas necessitam
é de orientação. Eu percebi este simples detalhe lendo
este magnífico conto.
A contradição humana existe porque existem muitas
possibilidades de mudanças. Muitos caminhos a
escolher. Todos os dias somos bombardeados com
informações das mais variadas possíveis. É só ligar a
televisão ou o rádio, folhear uma revista e só o que
19
markbrunkow@yahoo.com.br
teremos são sugestões para sermos mais felizes. Seja
mais magro ou o mundo não lhe aceitará. Seja mais
bonito, tenha dinheiro, compre um carro mais
possante, seja isso, seja aquilo.
As pessoas estão perdidas meu caro. Buscam uma
felicidade que não existe e assim ficam frustradas e
com isso vem a sensação de incapacidade e
incompetência e uma eterna insatisfação e logo a
depressão.
- O senhor esta coberto de razão Mestre e é por isso
que aqueles que se unirem a nossa causa estarão
salvos. Nós podemos providenciar tudo o que eles
necessitam. Mas as tentações do mundo são muito
fortes para alguns. Eles vivem na ilusão de achar a
felicidade nesse mundo mundano e profano. Como
iremos poder mudar isso?
- Exato Július, esta é a questão e foi por isso que lhe
chamei aqui hoje. Finalmente depois de anos em
batalhas jurídicas finalmente esta pronta Július!
Conseguimos a autorização para iniciarmos a
construção da nova terra prometida. A Torre da Vigília
sairá do papel.
Para podermos salvar nossos fiéis precisamos afastá-los
das influências malignas do mundo. Por isso comprei
uma vasta extensão de terras no mesmo lugar onde
tive a minha primeira visão, a floresta amazônica, e
construiremos uma cidade que poderá abrigar milhões
de nossos seguidores com toda infraestrutura
necessária para que não tenhamos que depender do
resto do mundo.
Será um farol a iluminar os caminhos dos escolhidos
em meio às trevas. Um norte a guiar os passos para
uma nova ordem mundial. – com os olhos fixos no nada
20
markbrunkow@yahoo.com.br
como se estivesse tendo uma visão. - Amanhã mesmo
começaremos a construção da Torre da Vigília. E se
tudo correr como o esperado, creio que dentro de dez
anos poderemos iniciar uma nova era. Será uma das
maiores obras arquitetônicas já construídas pela
humanidade e que durara mil anos antes que consigam
ultrapassá-la.
- Que maravilha Mestre, e o senhor quer que eu cuide
de todas as providências?
- Sim meu discípulo. Mas seu trabalho meu amigo será
muito mais importante do que isto. Quero que você
seja o regente supremo da Torre da Vigília. O mentor
da nova ordem mundial.
Július não podia acreditar no que estava ouvindo. Ser o
regente supremo da terra prometida. A Torre da Vigília
foi criada para desenvolver uma nova ordem mundial.
Seus moradores estariam totalmente alheios ao resto
do planeta livres de todas as tentações e impurezas do
mundo corrupto e impuro. Seria o terreno fértil pronto
para semear a nova ordem.
Ninguém seria forçado a entrar, mas aqueles que ali
entrassem nunca mais poderiam sair. Deveriam seguir
todos os ensinamentos do Mestre ao pé da letra. Se
entregar totalmente de corpo e alma a Ordem dos
Cavaleiros do Sagrado Coração. E o regente seria
considerado um Deus para seus moradores. Ainda
aturdido com a revelação Július pergunta:
- Mestre, mas este posto é seu por direito.
Como que sobre ele tivesse se abatido um cansaço
enorme o velho olhando fixamente para o nada fala:
- Eu nunca revelei isso a ninguém Július, mas aquele dia
na mata quando tive minha conversa com o criador Ele
disse que eu deveria conduzir o seu povo para a terra
21
markbrunkow@yahoo.com.br
prometida, mas não poderia entrar nela, assim como
Arão, por meus pecados anteriores. E é você meu
amigo que deve conduzi-los nesta jornada em busca da
luz.
Július com a boca aberta de espanto não consegue
dizer nada. O velho percebendo a surpresa do rapaz
fala.
- Não se preocupe Július você é mais do que qualificado
para esta missão. Seu caráter firme e severo será muito
importante principalmente nos primeiros anos da Torre
da Vigília. Nossos fiéis necessitarão de pulso firme e foi
por isso que Nosso Senhor o colocou em meu caminho.
Você será um grande líder.
Acostumado a nunca questionar seu Mestre Július
apenas abaixa a cabeça e cai de joelhos chorando
agradecendo a honra de ser o novo messias.
22
markbrunkow@yahoo.com.br
Nasce um “Rey”
Sentado na sala de espera do Hospital Geral da Capital,
um cubículo em cor pastel sem janelas com um sofá
pouco confortável e algumas revistas velhas, Memphis
balança a perna freneticamente aguardando notícias
de sua mulher que entrou em trabalho de parto a mais
de seis horas.
Cada vez que alguém saía pela porta, que dava acesso à
sala de cirurgia, o coração de Memphis quase saía pela
boca. Por várias vezes agarrou o braço de uma
enfermeira que passava por ali perguntando como
estava sua esposa. E por mais de uma vez foi avisado
que estava tudo bem e que a demora era normal e que
logo ele poderia ver sua esposa e filho.
Quando já não agüentava mais de apreensão e estava
prestes a invadir a sala de cirurgia, aparece em sua
frente à enfermeira dizendo que tudo esta bem e que
ele já poderia encontra sua esposa e filho que
repousavam no quarto.
Ao entrar no quarto, Memphis com os olhos marejados
abraça sua esposa e lhe dá um beijo na testa.
- Shiii! Cuidado querido ele esta dormindo.
Foi só então que Memphis percebe a pequena
trouxinha nos braços da esposa. Com cuidado puxa um
pouco do pano que cobria o rosto do pequenino
Reymond Rolland. Apesar de todo enrugado parecendo
um joelho Memphis achou o bebê mais lindo do
mundo. Muito cabeludo e com quase três quilos e
quatrocentas gramas era um bebê muito saudável.
- Ele é lindo querida. Puxou a mãe. – com a visão
embargada pelas lágrimas.
23
markbrunkow@yahoo.com.br
- Coitadinho estava apertado. Quando nasceu fez xixi
no colo da enfermeira. – rindo.
- Olá amiguinho eu sou seu pai, Memphis Rolland e
prometo que você será muito amado e se Deus quiser
um grande músico e um ser humano extraordinário
como seu avô.
- Disso não tenho a menor dúvida amor. – sorrindo.
A criança como percebendo a presença do pai agarra
firme com sua pequenina mão o dedo do pai.
- Como ele é forte querida. Olhe esses dedos querida.
Como são compridos. São dedos de músico. –
admirado.
- Você sabe que dia é hoje querido?
- Claro querida, o dia mais feliz de minha vida!
- Além disso, querido. – sorrindo. - Hoje é dia 8 de
Janeiro de 2135. – sorrindo.
- Não pode ser. Você tem certeza? – olhando para
esposa incrédulo.
- Sim querido. Hoje faz exatamente duzentos anos que
Elvis Aaron Presley nasceu. Nosso filho nasceu no
mesmo dia e mês que o rei do Rock and Roll. Não é
uma coincidência incrível!
- Coincidências não existem querida. Isto é um sinal.
Um presságio. Exatamente duzentos anos depois nasce
um novo “Rey”. – sorrindo.
Sua esposa como os olhos cheios de lágrimas vendo as
duas pessoas que mais ama no mundo em sua frente
começa a cantarolar suavemente ninando aos dois.
Lua azul, você me viu na maior solidão
Sem um sonho no coração
Sem um amor pra ser a minha paixão
Lua azul, você sabe bem porque eu estava ali
Você me ouviu pedindo aos céus
24
markbrunkow@yahoo.com.br
Por alguém por quem eu sentisse algo
E do nada, apareceu na minha frente
A única que meus braços poderiam querer abraçar
Eu ouvi alguém sussurrar por favor, me ame
Mas quando procurei só vi que a lua azul tinha ficado
dourada
Lua azul, agora não estou mais sozinho
Sem um sonho no coração
Sem um amor pra ser a minha paixão
Lua azul
25
markbrunkow@yahoo.com.br
Eu Coloquei um Feitiço em Você
Ainda atordoado com a notícia Július não podia
acreditar. Seus mais íntimos sonhos estavam se
tornando realidade. Ser o regente supremo de uma
nação inteira. Seria adorado por milhões. Enquanto
caminhava pelo enorme corredor em direção aos seus
aposentos relembra a insólita conversa que teve com
uma cigana poucos dias antes de sair de casa e juntar
se a Ordem dos Cavaleiros do Sagrado Coração. Mais
uma vez em sua mente os fatos se desenrolam como
em um filme.
Aguardava pacientemente o ônibus como fazia todo
santo dia depois de trabalhar em um emprego
medíocre que relutava em largar mesmo sabendo que
isto iria matá-lo. Olhava ao redor a procura de um
pouco de esperança, mas só conseguia ver rostos
cansados que assim como ele, já não acreditavam nos
sonhos que tiveram em quanto jovens.
Pessoas que também já não percebiam as singulares
maravilhas do dia-a-dia, como uma pequena flor que
bravamente brotava entre as pedras da calçada ou o
carrossel de cores produzido pelo por do sol entre o
cinza dos prédios da metrópole. Pessoas para as quais a
vida não passa de um tormento, dor e desesperança.
“Em sua frente uma senhora bem acima do peso ideal,
com cerca de sessenta anos, ombros caídos e olhar
estático
sugava
vorazmente
uma
mexerica
e
repetidamente
cuspia
as
sementes
no
chão
impregnando o ar com aroma de final de feira livre.
Ao seu lado um rapaz magrelo com calças dois
números maiores que ele, cueca aparecendo, masca
26
markbrunkow@yahoo.com.br
chiclete e nos ouvidos um pequenino fone que
produzia um chiado muito forte.”
Logo
atrás
um
senhor
estressado
fumava
compulsivamente dando pequenos passos de um lado
para o outro agitando os braços e reclamando consigo
mesmo da demora do lotação. Apenas mais um final de
tarde como tantos outros que já tivera e que tinha a
certeza de que não seriam os únicos.
Apesar de jovem, com os anos desenvolveu a arte da
indiferença o que permitia que se desligasse dos
demais seres humanos. Para tanto só precisava fixar os
olhos em um ponto qualquer e logo entrava em seu
mundinho particular tornando-se quase um autista.
Esta foi à maneira que encontrou para suportar as
horas, dias e anos de monotonia falta de perspectiva e
desilusão que tanto o afligiam.
Já emerso em seu “mundo de indiferença” começa a
ouvir um ruído muito distante. Prestando mais atenção
percebe que era uma voz que vinha de muito longe
dizendo palavras que não conseguia compreender,
algum tipo de dialeto ou algo parecido. Aos poucos o
som foi ficando mais alto. Percebendo então que o som
é real e vem de algum lugar próximo. Desperta de seu
“transe” olha ao redor a procura da origem daquela voz
misteriosa que mais parecia um encantamento.
Poucos metros à frente, sentada próxima a uma banca
de jornal, estava uma senhora de cabelos negros
longos encaracolados, que não via água há muito
tempo, se é que algum dia já vira, presos por fitas
coloridas. Tinha um rosto bonito apesar da idade já
avançada, denunciada pelas marcas de expressão
causadas pelo tempo e pela vida nas ruas, o que
indicava que na juventude fora uma mulher muito bela.
27
markbrunkow@yahoo.com.br
Vestia uma blusa vermelha enfeitada com babados e
uma saia que originalmente deveria ter sido branca
toda rendada. Em seus dentes, pescoço, pulsos e dedos
adereços em ouro puro. Ficou fascinado com a
estranha figura e perplexo por não ter percebido sua
presença até aquele momento. Era como se ela tivesse
surgido do nada ou de uma dimensão paralela onde à
vida é cheia de magia e beleza.” “Este fato só veio a
comprovar o que lera em um livro que dizia que
criamos uma redoma invisível de cerca de um metro ao
nosso redor e só prestamos atenção ao que entra no
perímetro dela. Não conseguia tirar os olhos da cigana
que por hora ou outra parava de falar para vasculhar
dentro de uma das várias sacolas que carregava. Em
uma destas buscas retirou um pequeno objeto
arredondado, que lembrava uma pedra de rio, preso a
uma fita vermelha. Pronunciou algumas palavras em
um dialeto á muito esquecido e levantou-se. Ajeitou
suas vestimentas e começou a caminhar.
Um caminhar altivo, como uma rainha cigana, que foi
abandonada por seus súditos e era obrigada a carregar
suas tralhas.
Julius olhava ainda fascinado para a cigana quando de
repente percebe que ela estava vindo em sua direção.
Mais do que rápido desviou seu olhar ficando de
costas, pois não queria ser incomodado por este tipo
de pessoa. Quanto mais próximo sentia a presença da
exótica mulher mais nervoso ficava. Pensava mesmo
em sair da fila para não ter que passar pelo
constrangimento de ser abordado por tal figura.
Quase em desespero, quando estava prestes a se
mover em direção à banca de jornal vê a cigana passar
28
markbrunkow@yahoo.com.br
por ele sem lhe dar muita atenção. A sensação de alívio
que sentiu foi indescritível.
Passado o susto, mais relaxado, tentou voltar a sua
habitual indiferença procurando um objeto qualquer
para voltar ao seu estado de alienação.
Já quase em “transe” sentiu em suas costas um toque
que fez com que seu corpo estremecesse. Olhou
assustado para trás e para sua surpresa diante de seus
olhos, parada sorrindo com seus poucos dentes, a velha
cigana.
- Olá filho não quer saber seu futuro?
Com a agilidade de quem já fez isto muitas vezes, antes
que o rapaz pudesse responder qualquer coisa ela
agarra e puxa sua mão. Ele sem reação diante da
inesperada situação fica como que paralisado olhando
atônito para a cigana.
- Vejo um grande futuro em sua mão e caberá apenas a
você escolher o caminho a tomar. Suas decisões
afetarão não só a sua vida, mas a de milhões. E mesmo
daqui a mil anos seu nome ainda será venerado.
O rapaz tentou puxar a mão, mas a cigana segurando
firme continua a falar como se estivesse possuída.
- Apesar de sua pouca fé, a vida não é preta e branca
meu filho, não existe a divisão entre o bem e o mal.
Existem sim, atos bons e maus. É a quantidade destes
atos que praticamos que indica quem somos. Ainda há
esperança para você. E conseqüentemente para nós
também. Lute contra o seu orgulho e abra seu coração.
Você poderá fazer um enorme bem a toda a
humanidade, mas esta decisão será só sua, assim como
as consequências por suas decisões.
Com um puxão firme o rapaz consegue soltar a mão.
- Não acredito nestas bobagens velha.
29
markbrunkow@yahoo.com.br
- O fato de você acreditar ou não acreditar em algo não
faz dela verdade ou mentira. A verdade é uma só, você
queira ou não.
- Suma daqui velha louca e me deixe em paz.
- Quando ele vier te procurar diga que não aceita. Não
é ele que conseguira preencher o vazio que você sente.
Mande-o embora. O que você procura é o amor.
Quando você encontrar o amor verdadeiro, este
sentimento
de
vazio
e
toda
esta
angústia
desaparecerão.
- Do que é que você esta falando velha? Esta louca? –
com uma mistura de medo e surpresa.
Neste momento escuta-se um estrondo violento. Todos
olham assustados para esquina para ver o que
aconteceu. Um ônibus fura o sinal vermelho e bate em
um caminhão que passava, mas felizmente ninguém
ficou ferido.
Július volta-se para falar com a cigana, mas ela havia
desaparecido. Procura por todos os lados e nada. Era
como se ela nunca tivesse estado ali. Olha para o
senhor atrás de si e pergunta:
- O senhor viu para onde foi àquela cigana que estava
aqui conversando comigo?
O senhor com olhar de espanto.
- Parece que não foram apenas as pessoas que estavam
no ônibus que bateram a cabeça. Não havia ninguém
conversando com você. Você estava parado aí sozinho
com esta mesma cara de bobo desde que eu cheguei
aqui.
Agora já segurando a maçaneta da porta de seu quarto,
sorri e apenas sussurra.
- Quem diria...
30
markbrunkow@yahoo.com.br
Continue Meu Filho Desobediente
A infância de Reymond Rolland corria como esperado.
Era um garoto muito ativo, esperto e terrivelmente
curioso não dava um minuto sequer de descanso para
os pais, ao menor descuido o menino logo aprontava
alguma. Mas o mais importante é que era
extremamente amado e feliz. Tudo corria normalmente
pelo menos até ele completar quatro anos de idade.
Em uma tarde tranqüila, sentada bordando uma camisa
para Memphis, um de seus passa tempo preferidos,
Grace percebe algo estranho em Rey. O garoto que
brincava com uma revista, rabiscando, começa ler as
manchetes que estavam na página. Grace no começo
achou que estava ficando louca, mas o garoto
continuou lendo freneticamente. Admirada chama
Memphis que sobe do porão apavorado.
- O que foi? – esbaforido.
- Querido acho que tem algo “diferente” com Rey.
- O quê? Do que você esta falando Grace?
- Rey. Nosso pequeno Reymond. Ele está lendo! –
sorrindo.
Memphis olha intrigado para o garoto que sorri para
ele.
- Lendo? Mas ele só tem quatro anos. Ele mal sabe falar
direito.
- Eu sei, não é fantástico! Ele deve ser superdotado. Eu
li sobre isso.
- Será querida. – ainda sem tirar os olhos do filho.
- Como você explica isso?
31
markbrunkow@yahoo.com.br
Grace pega a revista e mostra outras manchetes para o
garoto que lê todas. Vai até a estante apanha alguns
livros e o menino lê seus títulos.
- Viu, eu não falei querido!
- Espera um pouco querida. – e sai correndo em
direção ao porão.
Alguns minutos depois retorna trazendo um violão e
um teclado.
- O que você vai fazer com isso Memphis?
- Eu quero tirar uma dúvida.
- Que dúvida?
- Há alguns dias atrás eu estava com Rey no porão
enquanto fabricava um violão e ele brincava perto
deste teclado. Eu não conseguia concertar uma peça e
aquilo estava me deixando irritado. Então começa a
tocar uma música linda, apenas no piano, no rádio e
você sabe querida como a música me acalma. Ouvindo
aquela música maravilhosa eu consegui terminar o
violão rapidinho. Feliz da vida peguei Rey no colo e foi
só então que percebi que o rádio estava desligado,
estava até fora da tomada e no porão estávamos
apenas eu e Rey. Então de onde veio aquela música?
- Você não acha que Rey... – sorrindo.
- Vamos ver.
Ele coloca o teclado perto de Reymond e os dois ficam
olhando esperando para ver o que acontece. Esperam
algum tempo e nada.
- Acho que devemos chamar a atenção dele querido.
Memphis batendo em algumas teclas do teclado chama
pelo filho.
- Rey... Aqui filho, olha o que o papai trouxe para você.
E nada. O garoto continua entretido com seus
brinquedos.
32
markbrunkow@yahoo.com.br
Depois de várias tentativas de fazer com que o menino
tocasse no teclado eles acabam desistindo.
- Não fique assim querido ele aprenderá a tocar do
método normal, com seu pai.
- Eu sei querida. – sentado no canto da sala com o vilão
na mão meio desapontado enquanto dedilha
alheatoriamente o violão.
Reymond olhando o pai dedilhar o violão sorri e bate
palminhas de alegria.
- Você gosta disso não é sapeca. – com voz de bebe.
Então para surpresa de Memphis, Rey começa a
acompanhá-lo no teclado. Memphis toca uma nota e
Rey toca a mesma nota. Todos os pelos do braço de
Memphis se arrepiam vendo seu filho acompanhá-lo
em quanto dedilha o violão. Grace com os olha
marejados de lágrimas não acredita no que esta
ouvindo e vendo. Memphis empolgado começa a tocar
uma melodia e logo, ele e Rey, estão fazendo um dueto
de teclado e violão.
Com o passar dos anos os Rolland foram descobrindo
muitos outros talentos de seu filho assim como as
dificuldades de se criar uma criança tão especial. Como
muitos dos superdotados, Reymond não conseguiu se
adaptar as escolas tradicionais, pois era considerado
desobediente e desatento e foi educado em casa por
Grace com o apoio de especialistas, o que na realidade
não foi uma tarefa assim tão difícil.
Reymond aos doze anos foi considerado por
pesquisadores como um prodígio das inteligências
múltiplas. Teoria desenvolvida na década de 90, por
uma equipe de pesquisadores da Universidade de
Harvard liderada pelo psicólogo Howard Gardner.
33
markbrunkow@yahoo.com.br
Basicamente essa teoria identificou e descreveu sete
tipos de inteligências nos seres humanos que são: a
lógica-matemática, que é a capacidade de analisar
problemas e operações matemáticas e questões
científicas, a lingüística que caracteriza-se pela maior
sensibilidade para a língua falada e escrita, a espacial
que é a capacidade de compreender o mundo visual de
modo minucioso, a físico-cinestética que é a
capacidade de utilizar mais facilmente o corpo para a
dança e os esportes, a intrapessoal que é a capacidade
de se conhecer, a interpessoal que é a habilidade de
entender as intenções, motivações e desejos dos
outros, a naturalista que é a sensibilidade para
compreender os fenômenos e padrões da natureza, a
existencial que é capacidade de refletir sobre questões
fundamentais da existência, e a que Reymond mais se
destacava a musical que é a habilidade para tocar,
compor e apreciar padrões musicais de qualquer tipo.
Bastava para Reymond ouvir apenas uma vez uma
melodia ou música e nunca mais a esquecia e podia
reproduzi-la minuciosamente e com extrema perfeição.
A vida não poderia ser melhor para Rey. Crescia feliz e
saudável. Quando não estava na rua com outros
garotos, de sua idade, estava ouvindo ou tocando
músicas, na maioria das vezes clássicos do rock como
Carry on Wayward Son do Kansas, Kashmir do Led
Zeppelin, entre outras. Sua paixão pela música era
tanta, que aos treze anos era uma verdadeira
enciclopédia do rock graças à magnífica coleção
musical de seu pai.
Aprendeu o ofício do pai ajudando-o a fabricar
instrumentos musicais e com dezesseis anos já era um
multi-instrumentista talentoso capaz de fabricar e tocar
34
markbrunkow@yahoo.com.br
qualquer tipo de instrumento. Mas o que ele mais
gostava era no fim de tarde depois de um dia de
intenso de trabalho na oficina de seu pai sentar junto a
ele para poderem tocar uma canção. Mas se existe uma
certeza nesta vida é que as coisas mudam. Elas sempre
mudam e como diria Bob Dylan a resposta esta
soprando ao vento...
Quantas estradas um homem precisará andar
Antes que possam chamá-lo de homem?
Quantos mares uma pomba branca precisará sobrevoar
Antes que ela possa dormir na areia?
Sim, e quantas balas de canhão precisarão voar
Até serem para sempre banidas?
A resposta, meu amigo, está soprando ao vento
A resposta está soprando ao vento
35
markbrunkow@yahoo.com.br
Mantenha o Rock em um Mundo Livre
Reymond se tornou um rapaz muito bonito afinal
somou os traços marcantes de seu pai com a beleza
clássica de sua mãe. Com um metro e noventa, cabelos
castanhos dourados lisos e longos e olhos verdes,
corpo atlético não havia como não notá-lo. Fazia muito
sucesso com as garotas, mas até aquele momento sua
única paixão verdadeira era a música.
Entretidos no porão Memphis e Reymond terminam de
dar os últimos ajustes em uma guitarra, uma cópia
perfeita de uma Gibson Les Paul.
- Reymond o que você achou. – mostrando com
orgulho sua obra de arte.
- Magnífica pai. – sorrindo.
- Sabe Reymond a guitarra, ou violão, convencional de
seis cordas teve origem na Itália por volta de 1780. Já a
guitarra elétrica uma derivação desse violão surgiu em
1930, mas o som era suave e baixo então para
melhorar isto e dar maior potência ao instrumento,
para poder ser tocado para um grande público, foram
adaptados captadores eletrônicos. O problema é que
estes captadores faziam o corpo da guitarra vibrar
criando o temido feedback. Foi então que Lester
William Polfus mais conhecido como Les Paul, criou “O
Pedaço de Madeira” que era exatamente isso, um
pedaço de madeira maciço com captadores. Com isto
ele resolveu o problema do feedback e da sustentação
pois o som produzido pela vibração das cordas
desaparecia com menos facilidade. Depois de fazer
algumas modificações para dar uma aparência melhor,
de uma guitarra, ele tentou vender seu invento para
36
markbrunkow@yahoo.com.br
Gibson, mas eles não acreditaram no potencial do
instrumento. Mas então surgiu um californiano
chamado Leonidas Fender pioneiro na produção em
massa da guitarra elétrica além é claro criador da
cultuada Fender Stratocaster, e a Gibson não teve
escolha e teve que se render a genialidade do nosso
amigo Les Paul surgindo assim a Gibson Les Paul usada
por grandes nomes da música como Eric Clapton,
Jimmy Page, Kirk Hammett, Peter Townshend, Slash,
Zakk Wylde, entre outros.
- Sério pai? O vovô lhe contou isso?
- Entre outras coisas meu filho, o Rock tem muita
história. Jimmi Hendriz, por exemplo, era canhoto
então para poder tocar usava uma guitarra Fender
Stratocaster com as cordas invertidas.
Reymond adorava ouvir as histórias de seu pai sempre
tão cheias de vida e contadas com tanta paixão e
emoção. Como quando ele tinha oito anos e seu pai
contou como Jimmi Hendrix jogou fluido de isqueiro
sobre uma guitarra, um modelo Fender Stratocaster de
1965, e colocou fogo durante um show no Finsbury
Astoria, em Londres, em março de 1967. A imagem de
seu pai de joelhos imitando Hendrix com seus dedos
para cima como que instigando o fogo a queimar, até
hoje o faziam sorrir.
Conversavam animados quando ouvem Grace chamar.
- Querido venha, vai começar!
- Começar o que pai? – pergunta Reymond.
- Venha vamos rápido filho. - sem dar atenção a
pergunta de Rey.
Os dois sobem correndo as escadas e encontram Grace
sentada no sofá da sala em frente à televisão.
37
markbrunkow@yahoo.com.br
- Aqui querido. – indicando o lugar ao seu lado para
Memphis.
Reymond ainda curioso senta ao lado do pai.
- Vai começar o que?
- A entrevista do seu tio Július, querido. – fala Grace
sorrindo.
De um pequenino aparelho na parede surge uma
imagem extremamente nítida, era como se eles
tivessem sido transportados para o local da coletiva.
Mostrava uma enorme mesa coberta por uma tolha
muito branca e na frente, no centro, saltando aos
olhos, bordado em vermelho vivo as letras OCSC. Em
cima dela inúmeros microfones e ao fundo a imagem
de uma enorme muralha branca com cerca de seis
metros de altura com seguranças fortemente armados
patrulhando o lugar.
Apesar da enorme quantidade de repórteres no local o
silêncio era impressionante exigência essa de Július que
afirmou que se houvesse baderna e desordem a
coletiva seria imediatamente encerrada. De repente o
silêncio é quebrado pela abertura da porta por onde
passa Július com sua habitual altivez, como se um rei
estivesse entrando na sala.
Reymond simplesmente não acredita no que esta
vendo, de boca aberta olha espantado para seus pais
que riem muito. E com dificuldade balbucia.
- Mas é você papai! – apontando para Július.
- Sim querido seu pai e seu tio são gêmeos idênticos.
- Idênticos é pouco, a não ser pelo cabelo eles são
absolutamente iguais! Vocês não diziam que o papai
era o mais novo?
- Sim. Eu sou dois minutos mais novo.
38
markbrunkow@yahoo.com.br
- Mas não se engane com as aparências filho, não
poderiam existir duas pessoas tão diferentes quanto
seu pai e seu tio. É como a imagem no espelho
absolutamente igual, mas invertida.
- Olha querida vai começar. – apontando para tela.
Július se posiciona no meio da mesa na frente dos
inúmeros microfones e olhando diretamente para
frente fala.
- Boa tarde, harmonia e ordem a todos. Estou hoje aqui
diante de vocês para responder as perguntas
pertinentes à inauguração da Torre da Vigília que
dentro de poucos meses estará recebendo os eleitos os
primeiros e privilegiados moradores. Com isto
estaremos dando início a um novo estágio na evolução
da raça humana. Uma humanidade mais justa e
equilibrada onde os males deste mundo corrupto e
devasso ficarão para traz. Criaremos uma sociedade
onde não existirá a criminalidade, a fome, as diferenças
sociais e todas as mazelas que nos afligem desde o
princípio dos tempos. Um lugar onde a ordem, a
harmonia, a disciplina e o temor a Deus nosso criador
serão respeitados e levados ao estremo. Um lugar onde
os eleitos poderão cumprir seu verdadeiro destino
neste planeta que é preparar sua alma para poder
encarar o criador sem máculas. Um lugar de
aprendizado e profunda reflexão de seus atos e ações.
Onde todas as tentações e distrações ficarão para traz.
Agora de maneira ORDENADA responderei uma
pergunta de cada vez. Começaremos por esta mocinha.
– apontando com o dedo indicador.
- Boa tarde. Sou Aretha Louise do jornal estrela da
manhã. Como o senhor gostaria que lhe chamássemos?
Július ou Regente?
39
markbrunkow@yahoo.com.br
- Como melhor lhe convir. – com um sorriso quase
imperceptível mais parecendo um espasmo.
- Ok. Senhor Július como o senhor mesmo disse no
início, não serão todos que terão o privilégio de
ingressar na Torre da Vigília. Que somente os “eleitos”
poderão entrar. Bom, pelo que sabemos até agora
somente os membros mais abastados, digamos assim,
estão recebendo estes convites. O senhor poderia
explicar por quê?
- Como a senhorita mesmo disse isto é o que vocês
estão sabendo. Posso lhe assegurar que todos aqueles
que forem dignos de participar desta nova fase da