Rodolfo Walsh, o criptógrafo: relações entre escrita e ação política na obra de Rodolfo Walsh por Silvia Beatriz Adoue - Versão HTML
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DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÍNGUA ESPANHOLA E LITERATURAS
ESPANHOLA E HISPANO-AMERICANA
RODOLFO WALSH, O CRIPTÓGRAFO.
Relações entre escrita e ação política na obra
de Rodolfo Walsh.
Silvia Beatriz Adoue
Tese apresentada ao Programa de
Pós-Graduação
em
Língua
Espanhola
e
Literaturas
Espanhola e Hispano-Americana
do
Departamento
de
Letras
Modernas
da
Faculdade
de
Filosofia,
Letras
e
Ciências
Humanas da Universidade de São
Paulo, para obtenção do título de
Doutor em Letras.
Orientador: Profa. Dra. Valeria De Marco
São Paulo
2008
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÍNGUA ESPANHOLA E LITERATURAS
ESPANHOLA E HISPANO-AMERICANA
RODOLFO WALSH, O CRIPTÓGRAFO.
Relações entre escrita e ação política na obra
de Rodolfo Walsh.
Silvia Beatriz Adoue
São Paulo
2008
2
A Trini e Lilia, insurgentes de 1956.
A Olavo, sempre.
Aos compas.
3
Gracias
Este trabalho aqui redigido é resultado de anos de trabalho. Mas ele não está
redigido como um diário que registra essas jornadas de labuta. Se assim
fosse, cada parágrafo estaria povoado de innúmeros nomes, daqueles que
participaram das dúvidas e das descobertas e dos que deram as condições
materiais para ir em frente. Quero deixar aqui registrados alguns desses
nomes, sem explicar os motivos. Eles sabem. E nunca é um motivo só. Os
nomes: Christina Diniz Leal, Valeria De Marco, Marilúcia Santos Teles, Cleide
Santos Sá Teles, Murilo Leal Pereira Neto, Gladys Beatriz Barreiro, Lucía
García, Darío Pignotti, Pedro Ortiz, Marco Fernandes, Lisandra Guedes,
Héctor López Girondo, Lilia Santiago, Pablo Alabarces, Miguel Croceri, Olavo
Adoue Leal, Susana Marta Lui, Adriana Brugués, Beatriz Collado, Silvana
Lopes Zamproneo, Claudete Bassaglia, Giovanni Augusto Vieira, Ana Claudia
da Silva, Heloisa Helena Reinert, Luciana Pinsky, Thaís Moll, Camila Moraes,
Clóvis Zanettin Pereira, Heloísa Fernandes, Maria Dolores Aybar, Sergio
Adoue, Tatiana Merlino, Dafne Melo, Augusto Juncal. Para todos eles, minha
imensa
gratidão.
4
RESUMO
O presente trabalho é um estudo da poética do escritor, jornalista e militante
argentino Rodolfo Jorge Walsh. Tradutor, editor e autor de relatos policiais,
soube fazer da atividade literária um ato de reflexão sobre a história do seu
país e da própria ação militante. Os procedimentos de escrita utilizados
dentro da sua obra procuravam a eficiência persuasiva, mas também a
eficiência na representação dos problemas que estavam colocados para o
escritor na sua ação política. São objeto de estudo deste trabalho: a
passagem do policial de enigma para o hard-boiled e o posterior abandono do
subgênero; a opção pela forma breve do conto e não do romance; o
abandono da escrita estritamente literária que seria retomada só nos últimos
meses da sua vida -processos que coincidiram com o desenvolvimento de
investigações sobre crimes de Estado e seu ingresso na militância- e a
retomada da autoria, pouco antes de morrer, para a produção de uma série
de cartas pessoais no contexto da ditadura que se iniciou em 1976 e da
polêmica do autor com a direção da organização Montoneros, na qual
militava.
Palavras-chave: Rodolfo Walsh; literatura argentina; jornalismo militante;
literatura
policial;
literatura
e
testemunho.
5
ABSTRACT
The present work is a study of Rodolfo Jorge Walsh's poetry. He was an
author, a journalist and an activist. Also a translator, editor an author of police
short stories. He knew how to transform the literary activity into an act of
reflexion about the history of his country and the activist action itself. The
writing procedures used inside his works searched not only for a persuasive
efficiency, but also the efficiency in representing the problems faced by the
author in his political action. They are object of study: the passage from police
enigma to hard-boiled and the following desertion of the sub gender; the
option for the brief form of the short story and not the novel; desertion of the
writing strictly literary that would be taken up again in the last months of his
life - processes that coincided with the development of State crime
investigations and his participation in an activist life - and getting back the
authorship, shortly before his death, into a production of personal letters in a
dictatorship context that began in 1976 and the controversy of the author in
relation to the direction of the Montoneros organization, for which he was an
activist.
Key words: Rodolfo Walsh; Argentinian Literature; Activist Journalism; Police
Literature;
Literature
and
Testimony.
6
SUMÁRIO
Resumo ........................................................................................................... 5
Abstract ........................................................................................................... 6
Introdução ....................................................................................................... 9
Capítulo 1: A literatura policial. Entre Hunter e o profeta Daniel ................... 17
Las tres noches de Isaías Bloom. O policial de enigma ................................ 17
La aventura de las pruebas de imprenta. A imersão nas fontes ................... 28
Zugwang. Transposición de jugadas. En defensa propia. Um ponto de
inflexão: do policial de enigma ao hard-boiled .............................................. 37
Do relato policial ao relato testemunhal ........................................................ 48
Capítulo 2: A trilogia de investigação. Jornalismo, testemunho e militância . 53
As particularidades da obra investigativa de Walsh ...................................... 62
Operación Masacre ....................................................................................... 68
Caso Satanowsky ......................................................................................... 78
¿Quién mató a Rosendo? ............................................................................. 84
A poética da investigação e da escrita .......................................................... 95
Capítulo 3: Literatura: “un avance laborioso a través de la propia estupidez”
......................................................................................................................100
Los ojos del traidor. Como narrar a violência? ............................................ 105
7
La máquina del bien y del mal. A escrita como um ofício e a captura da voz
do não letrado como ato político ......................................................................
110
Nota al pie. A batalha pelo sentido............................................................... 114
A “série dos irlandeses”. As relações de poder e o fim do herói individual ..123
Imaginaria. Astúcia como inteligência de pobre ..........................................
127
Esa mujer. Obra literária e peça de inteligência ......................................... 131
Os contos como espaço de experimentação .............................................. 135
Capítulo 4: As cartas pessoais .................................................................... 138
Carta a Vicky. Carta a mis amigos .............................................................. 142
Carta abierta a la junta militar ..................................................................... 150
Considerações Finais ................................................................................. 162
Referências Bibliográficas .......................................................................... 169
Obra do autor .............................................................................................. 169
Bibliografia geral ......................................................................................... 175
Anexos ........................................................................................................ 188
Carta a Vicki ................................................................................................ 189
Carta a mis amigos ..................................................................................... 191
Carta abierta a la junta militar ..................................................................... 196
8
INTRODUÇÃO
No es un arma guardada que
rememora los disparos, sino un hacer
violento, en los cuales la escritura agrede la
molicie y espanta los oropeles.
Daniel Camels .
Argentino de família irlandesa, nascido em 1927, educado na fé
católica, escritor de relatos policiais e jornalista primeiro, militante depois,
Rodolfo Jorge Walsh aproxima-se da realidade com o olhar indagador do
detetive e do exegeta. Para ele, os fatos escondem e insinuam, dão pistas.
Há uma verdade ocultada pelo relato hegemônico e que é preciso que venha
à tona. A principal tarefa de Walsh será revelá-la. Aos procedimentos
ideológicos que constroem o relato hegemônico, o militante/escritor oporá
uma série de procedimentos literários que constituem as ferramentas do seu
ofício de “criptógrafo” e inauguram um registro estético, uma poética. Estudar
essas ferramentas, balizar esse registro, reconhecer essa poética são os
objetivos deste trabalho.
§§§§§
No dia 10 de junho de 1956, em Buenos Aires, uma mulher viaja no
banco do fundo de um ônibus urbano. O motorista tem o rádio ligado. O
locutor do informativo anuncia que o levantamento cívico-militar que pretendia
restaurar o governo peronista derrubado com um golpe militar no ano anterior
foi debelado e muitos dos seus quadros presos ou fuzilados. A mulher
também está envolvida no putch. Tem, num dos quartos da pensão onde
mora, um mimeógrafo caseiro. Nos dias anteriores rodou alguns panfletos e
distribuiu-os aos seus companheiros por meio de um homem que não sabe
9
de nada, mas que a ama. Desmaia. Os outros passageiros ajudam a
reanimá-la, solidários: não é a única que lamenta o fracasso da ação e todos
temem pelas represálias do governo aos peronistas, ou aos pobres, o que
naquelas circunstâncias vem a ser a mesma coisa. Por via das dúvidas, a
mulher consulta um médico. Ele lhe anuncia: está grávida. Em fevereiro de
1957, nascerá sua filha e a mulher abandonará a militância.
§§§§§
Na noite anterior, em La Plata, um partidário da Revolución Libertadora
-nome que se dava a si mesmo o governo de facto- estava jogando xadrez
num bar quando ouviu uns tiros. A notícia de um putch o levou para seu
bairro, no meio do enfrentamento entre militares leais e sublevados. Os
sublevados permitiram-lhe chegar à sua casa. O portal dela foi utilizado pelos
leais para defender posições. Com a luz desligada, através da persiana,
ouviu as últimas palavras sussurradas por um soldadinho agonizante : “¡No
me dejen solo, hijos de puta!”. Esta fala o incomoda, dói- lhe, há alguma coisa
errada. O soldadinho estava ali cumprindo o serviço militar obrigatório, não se
identificava com os leais; tampouco era um sublevado.
Algum desequilíbrio se produz no enxadrista, única testemunha,
involuntária, da morte do soldado. Pouco tempo depois, estará investigando
os fuzilamentos daquela mesma noite. Virará militante peronista, chamará o
golpe que derrubou Perón de Revolución Fusiladora, nome com que se
lembrará daquele período pós-peronista. Dedicará o resto da sua vida a
1
desvendar uma verdade vislumbrada às escuras, junto à janela da sua casa.
Vinte anos depois, perderá sua filha primogênita num enfrentamento com os
mesmos militares que antes tinham derrubado Perón. Ele próprio,
emboscado, responderá ao fogo do inimigo com uma arma de pequeno
calibre, será malferido e farão desaparecer seu corpo junto com os seus
escritos inéditos.
Nascida em fevereiro de 1957, ouvi durante toda a infância, a narrativa
popular daqueles acontecimentos de junho de 56. A narrativa incluía o relato
do ocultamento dos fatos e a sua revelação pelo enxadrista, já transformado
em jornalista militante. Vindo do campo contrário, tornou-se companheiro
daqueles que resistiam ao governo iniciado em 1955, vencendo com sua
palavra primeiro o silêncio e depois a versão oficial.
A narrativa popular é também narrativa dessa luta para se impor
enquanto narrativa. Ela é, desde a sua origem, um “contra-relato”. Uma
narrativa “ forçada ”. A identificação das armas dessa luta, seus recursos,
ocupa-me por razões que estão no cruzamento do pessoal com o coletivo,
mas que, em todo caso, levam-me a tomar partido.
Este trabalho é resultado do estudo da obra e da biografia de Rodolfo
Walsh na procura das linhas de tensão que definem sua poética. Para isso,
fiz uma aproximação às temáticas recorrentes, como linhas de continuidade,
mas que sofrem, ao longo da obra, permanentes metamorfoses, como as
imagens de um caleidoscópio; fiz também um reconhecimento das formas de
1
representação, enquanto apropriação de gêneros discursivos e vozes sociais
que Walsh faz nos seus escritos, e estudei a circulação de procedimentos
que vão da ação política e do texto de publicista à ficção e vice-versa,
passando às vezes pelo ofício “simples” de tradutor.
Há temáticas, gêneros e vozes que percorrem a atividade literária, a
jornalística e a militante do autor. Os objetivos deste trabalho são os de
encontrar percursos que vinculem as três séries, uma vez que a poética de
Walsh está inscrita nessa rede.
Alguns temas são revisitados pelo autor ao longo de sua obra, alguns
são símbolos, metáforas, outros são assuntos mais gerais permanentemente
metaforizados: o “soldadito”, os ofícios, a violência institucional, o cadáver.
Esses temas são introduzidos como sinais que irrompem nas suas
leituras, nas suas traduções e na sua história pessoal. São para Walsh sinais
de uma escrita cifrada a decriptar. Esse olhar do autor sobre o real e sobre as
suas leituras talvez possa ser atribuído a traços herdados de sua formação
católica, vindos à tona repentinamente, convocados por eventos vividos como
excepcionais. Em sua biografia, muitas vezes comparada à trajetória do
profeta Daniel, nome com que assinou muitos dos seus escritos e que
atribuiu ao protagonista de muitas das suas ficções, não faltaram pesadelos
bíblicos, como a coluna de fogo que reitera a sua presença após a morte da
sua filha primogênita.
1
Os acontecimentos agem sobre Walsh como revelações que se
propagam assumindo significados muito mais amplos. Essa relação do autor
com os fatos é facilmente detectada no momento em que Jorge Masetti
entrega para Walsh um telex recebido por engano, devido a um problema
mecânico, na agência de notícias Prensa Latina. O escritor estava em Cuba,
trabalhando num projeto jornalístico que ele ajudou a construir. O telex é uma
mensagem cifrada da CIA1 que indica o dia e lugar de desembarque da
invasão da Bahia dos Porcos, em 1961, sob o comando norteamericano.
Walsh consegue interpretá-la com a ajuda de um livro sobre escrita cifrada,
comprado num sebo. Com essa experiência, ele descobre sua condição de
criptógrafo, mesmo sem possuir conhecimento prévio ou talento especial para
a profissão. O curioso é que, ao decifrar a mensagem, ele percebe que,
conhecendo ou não o ofício, não fará outra coisa em toda sua vida2.
Esses temas renitentes inscrevem-se na sua literatura como sinais a
serem interpretados no decorrer da obra por autor e leitores. O autor os
recolhe justamente por considerá-los núcleos de transparência emergindo no
meio da opacidade do real, capazes de condensar verdades de profundidade.
Não são para o autor construções da sua própria criação. Walsh os apresenta
como impostos a ele de maneira implacável para que o autor e o seu leitor
lhes adivinhem o sentido.
O deciframento de enigmas constitui-se também, ele próprio, num dos
temas da sua obra: na literatura policial, na sua obra investigativa, na sua
1
Central de Inteligência dos Estados Unidos.
2
Este episódio foi investigado em: ARROSAGARAY, Enrique. Rodolfo Walsh en
1
atividade de inteligência na organização em que milita. Isto acontece porque
a literatura, para Walsh, é também um lugar de reflexão individual e coletiva.
No seu texto autobiográfico, Walsh confessa: “La idea más
perturbadora de mi adolescencia fue ese chiste idiota de Rilke. Si usted
piensa que puede vivir sin escribir, no debe escribir” 3. Mas foi esse mesmo
motivo que levou o autor a retomar a escrita e não mais abandoná-la.
Escrever tornou-se para ele um imperativo.
Walsh tinha começado -e abandonou- um curso de Letras. Lançou-se,
porém, à escrita no jornalismo e na indústria cultural, que eram seu meio de
vida. Seu ofício de tradutor colocou-o em contato com “a melhor literatura
policial”. Mas sua relação com o gênero não era ingênua.
A obra investigativa do autor, de alguma maneira, é caudatária do
gênero jornalístico e também da narrativa policial, de uma narrativa policial
em que o jornalista é, por sua vez, detetive/narrador e que inclui as vozes de
testemunhas, vítimas e suspeitos. Mas, pelo fato de os crimes investigados
serem crimes de Estado, encontramos também, nessas obras de Walsh,
elementos das narrativas de espionagem.
Muitas das características da sua escrita militante circulam na
produção de caráter jornalístico e literário do autor. Tanto é assim que é muito
difícil classificar algumas de suas obras, como é o caso das chamadas
Cuba. Agencia Prensa Latina, militancia, ron y criptografía. Buenos Aires: Catálogos, 2004.
3
WALSH, Rodolfo. “El violento oficio de escitor”. In: BASCHETTI, Roberto. Rodolfo
1
“cartas pessoais“.
O estudo da produção de Walsh neste trabalho está organizado em
quatro capítulos.
No primeiro capítulo, descrevem-se as mudanças na primeira parte da
obra ficcional de Walsh, que começa com literatura policial de enigma, passa
pelo hard-boiled para depois abandonar o gênero policial. No meio desse
processo, encontramos as “intromissões” da literatura de espionagem, a
testemunhal, a investigação jornalística e a reflexão existencial que leva o
autor para a ação e a literatura militante.
O segundo capítulo é dedicado à obra investigativa de Walsh e
reconhece a continuidade temática e formal com relação ao conjunto da obra
do autor. Também é estudada a relação entre o processo de investigação e o
de escrita, bem como a associação destes com a ação política do autor. Para
isto, não posso deixar de considerar a circulação das obras e a recepção que
elas tiveram e confrontá-las com as escolhas formais e a figuração da leitura
esperada por Walsh.
O terceiro capítulo focaliza os contos do autor, que conformam a parte
da sua obra considerada estritamente literária e que configuram um espaço
de experimentação e reflexão sobre as formas mais adequadas inclusive para
o conjunto dos seus textos. Mas estes contos também expressam certas
Walsh, vivo. Buenos Aires: de la Flor, 1994, p. 31.
1
linhas de tensão que vão pautar a atividade militante de Walsh: a questão da
autoria, o lugar ocupado pelo intelectual, a produção de narrativas que se
oponham às hegemônicas, as possibilidades de a literatura representar a
realidade histórica e o seu vigor para agir sobre ela.
O quarto e último capítulo trata das chamadas “cartas pessoais“ do
escritor, produzidas nos últimos meses da sua vida e que revelam, pelas
escolhas formais, soluções que o autor encontrou para algumas das tensões
que pautaram o conjunto da sua obra4.
Para responder às indagações propostas, o estudo do corpus dedica
atenção a alguns procedimentos de construção dos textos que o integram:
descrição da composição das narrativas policiais, suas mudanças e o
abandono dessa forma associado à militância de Walsh; análise de uso de
estratégias próprias ao cânone testemunhal e análise dos modos de
apropriação da oralidade e de gêneros discursivos.
4
Não vou focalizar neste trabalho as duas peças teatrais, nas quais Wlash tentou
uma aproximação ao conjunto da América Latina. Nelas, ele escolheu um registro lingüístico
de “castelhano neutro“, que não aparece no restante da obra. Os enredos, porém, estão
construídos como parábolas que condensam a maioria dos temas presentes na produção do
autor. Tampouco vou analisar as matérias jornalísticas, ainda que nelas circulem
procedimentos “ensaiados” nos outros gêneros freqüentados.
1
Capítulo 1: A literatura policial
Entre Hunter e o profeta Daniel
Rodolfo Jorge Walsh, depois de interromper seu curso de Letras,
chegou à atividade literária passando primeiro por ofícios vinculados à edição
de literatura “menor”: corretor, tradutor e adaptador de novelas policiais, de
terror, de suspense, de espionagem. Inicialmente, foi tradutor, primeiro para a
Serie Naranja e para a coleção Evasión, da editora Hachette, e para El
Séptimo Círculo, da editora Emecé; depois, tradutor e adaptador para a
revista Leoplán e para a Serie Negra, da editora Tiempo Contemporâneo.
Provavelmente, como o personagem de um conto bem posterior, o tradutor
León, de Nota al pie, o ainda tradutor e adaptador Walsh também sonhou em
ser escritor.
Un día extravié medio pliego de una novela de Asimov. ¿Sabe qué
hice? Lo inventé de pies a cabeza. Nadie se dio cuenta. A raíz de
eso fantaseé que yo mismo podía escribir.5
Las tres noches de Isaías Bloom.
O policial de enigma
Em 1950, com vinte e três anos, Walsh publicou Las tres noches de
Isaías Bloom, na revista Vea y Lea. Este, seu primeiro relato de ficção que
chega às nossas mãos, Walsh havia apresentado quatro anos antes em um
concurso organizado pela revista e pela editora Emecé. O júri, composto por
5
WALSH, Rodolfo. “Nota al pie”. In: Um kilo de oro. Buenos Aires: de la Flor, 1997, p.
1
Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares e Leônidas Barletta, atribuiu-lhe uma
das menções honrosas.
No seu artigo Modelos, géneros y medios en la iniciación literaria de
Rodolfo Walsh 6, Eduardo Romano sugere tratar-se de um conto que coincide
com as inclinações do júri. Chama a atenção para a filiação borgeana da
narrativa e para uma homenagem a Barletta presente no lunfardo das vozes
dos personagens. Se a primeira paternidade se tornará evidente, como se
pode observar na comparação, ainda neste capítulo, entre Las tres noches
de Isaías Bloom e La muerte y la brújula, escrito por Borges em 1942, o
suposto tributo a Barletta coincide também com outra possível paternidade: a
de Roberto Arlt.
Em 1948, Ernesto Sábato publicou pela primeira vez o romance El
túnel. No enredo, Hunter, um aspirante a escritor, imagina um personagem
que, como um Quixote do século XX, de tanto ler novelas policiais, vê o
mundo como ele é representado nesse gênero e age como se ele próprio
fosse um detetive de
novela. Por outro lado, na investigação do jornalista Enrique Arrosagaray,
Rodolfo Walsh en Cuba: Agencia Prensa Latina, militancia, ron y criptografía,
há uma entrevista a Juan Fresán na qual este último compara Walsh com o
detetive Erik Lönnrot de La muerte y la brújula, que peca por excesso de
literatura. Diz Fresán:
96.
6
ROMANO, Eduardo. ”Modelos, géneros y medios en la iniciación literaria de Rodolfo
J. Walsh”. In: LAFFORGUE, Jorge et ALL. Textos de y sobre Rodolfo Walsh. Buenos Aires:
Alianza, 2000, p. 73.
1
[...] empieza con la literatura policial, después pasa al periodismo
policial ficcionado y como el Quijote, que de tanto leer libros de
caballería ve molinos de viento – y cree que son gigantes enemigos
-, se vuelve loco y pasa de la ficción a la realidad pero jugando a la
ficción, como una especie de Sherlok Holmes que se ponía narices
postizas. Él mismo se disfrazaba cuando estaba perseguido.7
A propósito dessa comparação de Walsh com o Quixote, Jorge
Lafforgue comenta:
Alguien que no lo quería mucho supo comentar que Walsh se
parecía al Quijote: de tanto leer novelas policiales creyó ser uno de
sus héroes de papel (más: su paranoia paródica le hizo acompañar
la evolución del género, desde el fair-play hasta el hardboiled).
Pues sí. Desestimemos el sarcasmo y demos vuelta el comentario:
contra una realidad mentirosa se apelará a una escritura que la
revela; y si el poder de la ficción pareciera no alcanzar, se echará
mano de la denuncia política hasta sus últimas consecuencias.8
Mas, afinal, em que consistia esse excesso de literatura do detetive
amador de Borges, depois atribuído a Walsh? No conto de Borges acontece
um assassinato. O morto é um rabino. Os assassinos deixam uma pista falsa,
uma frase que remete a um texto religioso: “la primera letra del Nombre ha
sido articulada“9. O delegado de polícia, chamado Treviranus, procura uma
motivação material: o rabino é possuidor das melhores safiras do mundo. O
jornalista Lönnrot é arrastado pela pista falsa e procura uma explicação
espiritual. Erik Lönnrot diz ao delegado Treviranus:
7
FRESAN, Juan. Apud: ARROSAGARAY, Enrique. Rodolfo Walsh en Cuba. Agencia
Prensa Latina, militancia, ron y criptografía. Buenos Aires: Catálogos, 2004, p. 50.
8
LAFFORGUE, Jorge. “Epílogo provisorio”. In: ________________ e outros. Textos
de y sobre Rodolfo Walsh. Buenos Aires: Alianza, 2000, p. 334.
9
BORGES, Jorge Luis. “La muerte y la brújula”. In: Ficciones. Madrid: Alianza, 1998,
p. 159. Neste capítulo, as referências a “La muerte y La brújula” que aparecem a seguir
indicam as páginas desta edição.
1
Usted replicará que la realidad no tiene la menor obligación de ser
interesante. Yo le replicaré que la realidad puede prescindir de esa
obligación, pero no las hipótesis. En la que usted ha improvisado,
interviene copiosamente el azar. He aquí un rabino muerto; yo
preferiría una explicación puramente rabínica, no los imaginarios
percances de un imaginario ladrón. (p. 155)
Esse excesso levará Lönnrot à perdição. Red Scarlach, ladrão de
safiras, armou para ele uma cilada literária para acertar velhas contas. Para
Fresán, também Walsh enredou-se na cilada de acreditar que a vida era
como nas novelas policiais, o que o teria levado à morte.
Em todo caso, a cilada de Scarlach foi a de representar a realidade
como o faz o policial de enigma, com toda a sua beleza de labirintos
simétricos, seqüências numéricas e losangos repetidos anunciando
obsessivamente lugar e data do último crime para que o detetive compareça.
É ele o alvo. Scarlach não partilha essa paixão geométrica da sua vítima. La
muerte y la brújula é, mais que um policial de enigma, um comentário
paródico sobre as possibilidades do subgênero na Argentina, lá pela metade
do século XX, sublinhando a sua “irrealidade”, sua falta de verossimilhança
nessas latitudes. Para o autor de Pierre Ménard, autor del Quijote, e
pensando no discurso do Ingenioso Hidalgo sobre as armas e as letras, não
há ingenuidade possível. Ao contrário, o erro de confundir o mundo real com
a literatura é o tema do conto e a confusão de Lönnrot é o motor que
movimenta o enredo.
Red Scarlach é judeu, conhece a tradição. Sabe a quantidade de
letras do nome secreto de deus. Também sabe que Lönnrot, aquele que pôs
o irmão de Red na cadeia, obsessivo como é, não deixará de descobrir que o
2
nome de deus, na tradição judaica, tem quatro letras. Deixa três pistas,
correspondentes aos três primeiros assassinatos, que acontecem em pontos
geográficos eqüidistantes, como os vértices de um triângulo eqüilátero.
Qualquer um suporia que a série acabou com o terceiro assassinato, mas
não Erik Lönnrot. O assassino, o pleonástico Red Scarlach, deixa uma
redundância de pistas, às quais só Lönnrot pode prestar atenção: o desenho
repetido do losango. Os artigos do jornalista dão ao assassino a confirmação
da leitura que Lönnrot faz das pistas. Só ele está convencido de que a série
de assassinatos, que aconteceram com intervalo exato de um mês, se
completará com o quarto. No mapa, o triângulo eqüilátero tem seus vértices
ao Leste, ao Oeste e ao Norte. Para completar o losango, traça os
segmentos que se interceptam num vértice ao Sul. O primeiro crime
aconteceu no dia 3 de dezembro e os dois seguintes no dia 3 dos meses
seguintes. Para qualquer um essa pista redundante confirmaria que o terceiro
crime é o último. Não é assim para Lönnrot. Ele investiga a tradição judaica e
sabe que nela o dia começa com o por do sol. Isto é, o dia 3 do mês, é na
suposta contagem judaica, o dia 4. Lönnrot dirige-se ao local exato do vértice
Sul do losango, ao por do sol do dia 3 de março. Lá encontra uma construção
simétrica, redundante, assim como o losango, assim como o próprio nome
pleonástico de Red Scarlach. E assim Lönnrot é emboscado e morto.
A brincadeira geométrica do conto é um jogo de esconde-esconde do
assassino com o investigador e também do autor com o leitor. Quem se vê
surpreendido pela armadilha é justamente aquele que aposta na perfeição
matemática do modelo que, porém, não pela sua beleza, é verdadeiro dentro
2
do enredo. O conto não é, portanto, uma exaltação da beleza geométrica do
policial de enigma, e sim um comentário que nega sua eficácia para dar conta
da realidade.
A descrição do espaço remete permanentemente a Buenos Aires dos
anos 40 e os seus subúrbios, sem mencioná-los em momento algum. A
referência ao rio, ao Leste, e aos bairros onde acontecem as mortes não
deixam dúvidas. Também é significativa a multiplicidade de tipos humanos
que configura o aluvião migratório que se somou aos criollos na primeira
metade do século XX na cidade:
El primer crimen ocurrió en el Hotel du Nord –ese alto prisma que
domina el estuario cuyas aguas tienen el color del desierto.(p. 154)
El segundo crimen ocurrió la noche del 3 de enero, en el más
desamparado y vacío de los huecos suburbios occidentales da la
capital. Hacia el amanecer, uno de los gendarmes que vigilan a
caballo esas soledades vio en el umbral de una antigua pinturería
un hombre emponchado, yacente.(p. 158)
[...] Treviranus indagó que le habían hablado desde Liverpool
House, taberna de la Rue de Toulon –esa calle salobre en la que
conviven el cosmorama y la lechería, el burdel y los vendedores de
biblias. Treviranus habló con el patrón. Este (Black Finnegan,
antiguo criminal irlandés, abrumado y casi anulado por la
decencia)- le dijo que la última persona que había empleado el
teléfono de la casa era un inquilino, un tal Gryphius, que acababa
de salir con unos amigos. (p. 159-160)
El tren paró en una silenciosa estación de cargas. [...] Vio perros,
vio un furgón en una vía muerta, vio el horizonte, vio un caballo
plateado que bebía el agua crapulosa de un charco.(p. 165)
La muerte y la brújula como também La historia universal de la infâmia,
do mesmo autor, correspondem a um esforço, próprio das vanguardas
latinoamericanas, para acriollar subgêneros, procedimentos literários,
surgidos em outras latitudes.
2
Penso que La muerte y la brújula é influência fundamental para as
primeiras ficções policiais de Walsh. Também ele participava do esforço para
acriollar o subgênero. Acriollar, neste caso, é também testar quais são seus
limites para a verossimilhança, seus limites como modelo explicativo da
realidade. Parece que foram essa intenção e as frustrações que o policial de
enigma provocou em Walsh que o levaram a passar do fair-play ao hard-
boiled, primero, e ao abandono da literatura policial, depois.
Na exploração do policial de enigma, já em Las tres noches de Isaías
Bloom, Walsh constrói personagens e os coloca num cenário tipicamente
portenho. As vozes e os cenários “prefiguram” o Walsh de La máquina del
bien y del mal ou Corso, com seus registros de voz, seus ambientes e seus
personagens marginais. O já citado Romano atribuía a filiação desse
naturalismo na captura da linguagem coloquial/marginal à literatura de
costumes de Barletta. Mas esse tratamento das vozes dos personagens do
conto de Walsh também pode ser creditado a uma filiação arltiana. É o
lunfardo presente, por exemplo, em Los siete locos.
- Pero, decime, ¿vos no podés prestarme esos seiscientos pesos?
El otro movió lentamente la cabeza:
- ¿Te pensás que porque leo la Biblia soy un otario?
Erdosain lo miró desesperado:
- Te juro que los debo.
De pronto ocurrió algo inesperado.
El farmacéutico se levantó, extendió el brazo y haciendo
chasquear la yema de los dedos, exclamó ante el mozo del café
que miraba asombrado la escena:
- Rajá, turrito, rajá.
2
Erdosain, rojo de vergüenza, se alejó. Cuando en la esquina volvió
la cabeza, vió que Ergueta movía los brazos hablando con el
camarero.10
Essa filiação arltiana, assim como a borgeana, parece ser consciente e
intencional. Em diálogo com Francisco Urondo, Mario Benedetti e Juan
Carlos Portantiero, em 1969, Walsh apresenta a literatura argentina como um
campo de forças com dois pólos: Borges e Arlt:
Arlt forma uno de los dos polos válidos, válidos hasta el día de hoy
para cualquier narrador argentino. El otro polo es Borges. Ellos
polarizan las dos tendencias, las dos actitudes de la lucha de
clases en un poeta. 11
Além das vozes, a escolha do cenário de pensão em Las tres noches
de Isaías Bloom, assim como no posterior Nota al pie, é também um indício
da filiação arltiana. A pensão, ao contrário do cortiço, é morada de seres
desgarrados, solitários. O cortiço, por sua vez, cenário privilegiado da
literatura de costumes proto-peronista, reúne famílias que lutam pela
ascensão social coletiva. A sociabilidade do cortiço aparece no teatro de
costumes de Discépolo12 e de Vacarezza13, que produziram suas obras na
época prévia e durante o primeiro governo peronista, coincidindo com a
grande onda de industrialização, num período de pleno emprego.
Na pensão, a falta de referências conduz primeiro ao delírio e ao
10
ARLT, Roberto. Los siete locos. 13ª. Edição. Buenos Aires: Losada, 1997, p. 19.
11
PORTANTIERO, Juan Carlos; URONDO, Francisco e WALSH, Rodolfo. “La
literatura argentina del siglo XX”. In: BASCHETTI, Roberto (org.). Rodolfo Walsh, vivo.
Buenos Aires: de la Flor, 1994, p. 33-61.
12
Ver, por exemplo, DISCÉPOLO, Armando.”Mustafá”. In: Revista Teatral. Buenos
Aires: 1921, 3-40.
13
Ver, por exemplo, VACAREZZA, Alberto. El conventillo de la Paloma. Buenos Aires.
Ediciones del Carro de Tespis. 1965.
2
afrouxamento dos valores morais, depois à loucura e ao crime. A construção
desse espaço está presente em Los siete locos e nas Aguafuertes porteñas
de Arlt e também em obras de outros autores, como o romance Camas desde
un peso, de Enrique González Tuñón. E essa associação permaneceu como
um substrato latente de significados, recuperada na literatura posterior a
1955, quando as mudanças na legislação trabalhista e o crescimento do
desemprego provocaram uma desagregação social e novas ondas de
migração interna, sempre configurando um ambiente de incomunicação e
pobreza, povoado de personagens desenraizadas.
A dupla genealogia presente nesse relato inaugural de Walsh sintetiza
os esforços para acriollar o policial. Mas o autor não se limita a repensar o
que Arlt e Borges fizeram com aquela literatura que precisava ser traduzida.
Walsh bebe diretamente nas fontes. Ele as conhece profundamente: dedicou-
se a traduzi-la para o espanhol14.
Voltemos a Las tres noches de Isaías Bloom. Como em La muerte y la
brújula, mas também como na obra de Conan Doyle, há uma dupla que
desvenda o mistério. Porém, nos dois contos, de Walsh e de Borges, a dupla
é formada por um delegado de polícia e por um jornalista da seção policial.
No caso de Las tres noches de Isaías Bloom, o jornalista, Suárez, é antes um
rascunho malandro do que depois será Daniel Hernández15. Suárez e o
delegado, ao contrário de Lönnrot e Treviranus do conto de Borges, decifram
14
Walsh traduziu obras de William Irish, Ellery Queen, Cornell Wolrich, Evelyn Piper,
Victor Canning, Norman Berrow, Ambrose Bierce, John Dickson Carr, Adrian e Arthur Conan
Doyle, George Simenon, Edgar Alan Poe, Raymond Chandler, entre outros.
15
Alter ego do autor nas narrativas policiais posteriores.
2
o enigma simultaneamente. A presença da dupla justifica o diálogo e evita o
monólogo interior. Ambos são malandros, ninguém é virtuoso, a tensão é
aquela que existe entre as instituições que cada um representa.
Tanto no conto de Borges quanto no de Walsh, o crime se configura,
como projeto e como registro, na semivigília de nove e de três noites de
sonho interrompido, respectivamente. Em La muerte y la brújula, o projeto é
inspirado pelo discurso de um irlandês que pretendia converter Red Scarlach
à fé dos góim, durante nove noites de delírio febril do segundo. Em Las tres
noches de Isaías Bloom, os indícios que, decifrados, permitem descobrir o
assassino estão plasmados no sonho de um homem com nome de profeta e
sobrenome irlandês, como o de Walsh. O autor assinará depois muitos dos
seus escritos com o pseudônimo de Daniel Hernández. Daniel é outro
profeta, o que decifra sinais e produz julgamentos. Só que o alter ego de
Rodolfo Walsh é um profeta Daniel acriollado: como (José) Hernández, o
autor do Martín Fierro. Daniel Hernández aparecerá depois também como
personagem nas suas ficções policiais, tirando para sempre o lugar de
Suárez, e o seu colega de dupla deixará também de ser um delegado
malandro.
No enredo, Isaías Bloom é estudante de medicina e mora num quarto
de pensão que partilhava com a vítima de um assassinato. Nas duas noites
que antecederam à do crime, Isaías sonhou. Ele toma nota dos seus sonhos,
porque está estudando psicanálise e quer refletir sobre eles. Na primeira
noite sonhou com um bosque e uma borboleta de luz que revoava entre as
2
árvores e que ele tentava pegar. Então sentiu um barulho metálico, acordou e
ficou olhando para a esfera do relógio despertador acima da escrivaninha. De
repente, não mais a enxergava e logo voltou a vê-la. Na segunda noite,
sonhou que ia por uma rua escura e viu cair uma taça que quebrou e
desapareceu deixando no pavimento uma poça de água verde com forma de
estrela. Depois, ele comprava um jornal com a manchete: “Se ha extraviado
una copa que responde a la nota Sol”16. A dupla de investigadores tinha
percorrido a pensão, observado o espaço e interrogado os moradores dos
outros quartos. Amarram fios soltos: a borboleta iluminada podia ser uma
lanterna e a desaparição momentânea da esfera do relógio podia ser alguém
que entrou no quarto e passava na frente dela; a taça podia ter quebrado
mesmo, quando o criminoso quis colocar nela veneno, e podia ter sido
embrulhada no tapete verde que foi substituído por outro que faltava no
quarto do assassino, para não deixar traços do líquido. Na noite seguinte,
quando Isaías Bloom estava de plantão no hospital, o assassino consumou o
crime com uma faca.
O sonho interpretado também evoca o bíblico José. Só que os indícios
nele presentes não são sinais de Deus. Os sonhos de Isaías Bloom são
vistos como tentativas de não interromper o sono, incluindo os estímulos
exteriores na narrativa onírica. O relato onírico aparecerá depois em El
soñador e na Carta a Vicky: no primeiro caso, como história subjacente que
termina se impondo sobre a outra que corre na superfície do conto; na Carta
a Vicky, encapsulando o núcleo traumático do relato, núcleo indizível pelo
16
WALSH, Rodolfo. “Las tres noches de Isaías Bloom”. In: Cuentos para tahúres y
otros relatos policiales. 3ª. Edição. Buenos Aires: de la Flor, 1999, p. 78.
2
próprio autor/testemunha de sua dor pela morte da filha. Nessa carta, Walsh,
assim como Isaías Bloom, é o que percebe os sinais. Não pode interpretar.
Comunica-os para que outros o ajudem a entender, a outros que, como o
delegado de Las tres noches de Isaías Bloom, aconselhem: “Seguí soñando,
pibe.“17, com esse inconfundível sotaque portenho.
Neste primeiro relato policial, a posição do autor em relação à
violência policial é muito diferente daquela postura crítica que assumirá
depois, em Operación Masacre e La secta del gatillo alegre. Censurando dois
estudantes hospedados na pensão, o delegado diz: “Pero si usted los mira
fijo, le dicen torturador“18. O autor percorrerá ainda um longo caminho que o
distanciará desta perspectiva.
La aventura de las pruebas de imprenta.
A imersão nas fontes
Depois dessa primeira incursão, Walsh publica, em 1953, uma
coletânea chamada Variaciones en rojo, com três novelas policiais: La
aventura de las pruebas de imprenta, Variaciones en rojo, que dá o título à
edição, e Asesinato a distancia. Também publica uma nota sobre Conan
Doyle na revista Leoplán e traduz La aventura de los jugadores de cera e La
aventura de los siete relojes e outros contos de Adrian Conan Doyle em
colaboração com Dickson Carr entre 1953 e 1954. As referências à literatura
17
WALSH, Rodolfo. “Las tres noches de Isaías Bloom”. In: Cuentos para tahúres y
otros relatos policiales. Ed. cit., p. 83.
18
WALSH, Rodolfo. “Las tres noches de Isaías Bloom”. In: Cuentos para tahúres y
otros relatos policiales. Ed. cit., p. 73.
2
dos Conan Doyle são explícitas. Variaciones en rojo, já pelo título é uma
homenagem a Um estudo em vermelho. No centro das narrativas La aventura
de las pruebas de imprenta e A aventura dos três estudantes de Conan
Doyle, estão as provas de gráfica.
No enredo de A aventura dos três estudantes, o detetive Sherlock
Holmes recebe a visita do professor do Colégio St. Luke. Ele havia preparado
uma prova de Grego Antigo para o concurso que daria acesso a uma