Sortilégio de outono por Joseph von Eichendorff - Versão HTML
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Sortilégio de outono
("Die Zauberei im Herbst", 1808-9)
Eichendorff (1788-1857), poeta e narrador, é um dos mais felizes e leves autores do
romantismo alemão; sua obra-prima é o breve romance História de um vagabundo
(1826). Na novela que aqui apresento — a primeira que ele escreveu, aos vinte
anos, mas publicada postumamente —, ele dá uma versão romântica de uma
famosa lenda medieval, a história de Tannhäuser, que passa uma temporada no
paraíso pagão de Vênus, visto como o mundo da sedução e do pecado. Essa lenda
— que mais tarde Wagner transformou em ópera lírica — inspirará um outro conto
de Eichendorff, "A estátua de mármore" (1819), ambientado na Itália. Mas aqui o
país do pecado é uma espécie de duplo do nosso mundo, um mundo paralelo,
sensual e angustiado. Passar de um mundo a outro é fácil, e mesmo o retorno ao
nosso mundo não é impossível; mas o homem que, após ter sofrido um feitiço e ter
escapado a ele, queria expiar suas culpas tornando-se um eremita opta no último
momento pelo mundo encantado e se deixa arrastar por ele.
Saindo à caça numa serena tarde de outono, o cavaleiro Ubaldo afastara-se bastante
dos seus e seguia a cavalo por entre solitárias montanhas cobertas por
bosques quando de uma delas viu descer um homem com insólitas roupas coloridas.
O estranho não deu pela sua presença até chegar bem perto dele. Ubaldo viu então,
para sua surpresa, que o homem vestia um elegante gibão de ornamentos
suntuosos que, à força do tempo, perdera contudo o brilho e saíra de moda. Seu
rosto era belo, mas pálido e coberto por uma barba revolta.
Ambos se cumprimentaram perplexos, e Ubaldo explicou que tivera a infelicidade de
perder-se por aquelas bandas. O sol já mergulhara atrás das montanhas, e aquele
lugar era distante de toda habitação humana. Assim, o desconhecido propôs ao
cavaleiro que pernoitasse com ele; na manhã seguinte, à primeira luz, indicar-lhe-ia
o único caminho de saída daquelas montanhas. Ubaldo aceitou de bom grado e pôsse
na trilha de seu guia por desfiladeiros de mata deserta.
Logo chegaram a um pico elevado, ao pé do qual fora escavada uma caverna
espaçosa.
No centro dela havia uma grande pedra, sobre a pedra um crucifixo de madeira.
Um catre de folhas secas preenchia os fundos da cela. Ubaldo amarrou seu
cavalo junto à entrada, enquanto seu anfitrião trazia em silêncio pão e vinho.
Tomaram ambos os seus assentos, e o cavaleiro, a quem as roupas do
desconhecido pareciam pouco adequadas a um eremita, não pôde conter a pergunta
sobre o seu passado.
"Não queiras saber quem eu sou", respondeu secamente o eremita, e seu rosto fezse
sombrio e hostil.
Em contrapartida, Ubaldo notou que ele escutava com toda a atenção e depois
ficava absorto em pensamentos quando o cavaleiro começava a contar algumas de
suas jornadas e os feitos gloriosos que praticara na juventude. Exausto, Ubaldo por
fim deitou-se no leito de folhas que lhe era oferecido e logo pegou no sono,
enquanto seu anfitrião sentava-se à entrada da caverna.
No meio da noite, perturbado por sonhos agitados, o cavaleiro despertou e ergueuse
na cama. Fora, a lua muito clara banhava o contorno silencioso das montanhas.
Na boca da caverna, viu seu anfitrião andar inquieto de lá para cá sob árvores altas,
oscilantes. Entoava com voz surda uma canção da qual Ubaldo só podia ouvir, a
intervalos, mais ou menos as seguintes palavras:
O medo me arranca do abismo,
Velhas melodias me estendem a mão —
Doces pecados, deixem-me em paz!
Ou me lancem de vez por terra
Ante o feitiço dessa canção,
Escondendo-me no seio da terra!
Deus! Eu queria orar com fervor,
Mas as imagens do mundo sempre
Sempre se põem entre mim e ti,
E o sibilo dos bosques ao redor
Enche a minha alma de terror,
Ó Deus severo, tenho medo de ti!
Ah, rompe também meus grilhões!
Para salvar toda a humanidade
Sofreste afinal em morte amarga.
Vagando junto aos portões do inferno,
Ah, como me encontro perdido!
Jesus, ajuda-me na minha aflição!
Terminada a canção, sentou-se numa pedra e pareceu murmurar umas preces
imperceptíveis que mais soavam como confusas fórmulas mágicas. O rumor dos
riachos das montanhas vizinhas e o leve farfalhar dos pinheiros uniram estranhamente
as vozes num só canto, e Ubaldo, vencido pelo sono, deixou-se cair
outra vez no leito.
Mal luziram os primeiros raios da manhã entre as copas das árvores e o eremita já
se achava de pé diante do cavaleiro, para lhe indicar o caminho entre os
desfiladeiros. Bem-disposto, Ubaldo montou seu cavalo e a seu lado cavalgava em
silêncio seu misterioso guia. Logo alcançaram o cume da última montanha, de lá se
abriu subitamente a seus pés a planície fulgurante de rios, cidades e castelos na
mais bela claridade da manhã. O próprio eremita parecia surpreso.
“Ah, que beleza é o mundo!", exclamou, comovido, cobriu o rosto com as duas mãos
e às pressas tornou aos bosques.
Balançando a cabeça, Ubaldo tomou então o caminho familiar rumo a seu castelo. A
curiosidade no entanto logo o fez voltar a essas paragens ermas, e com algum
esforço encontrou a caverna onde, dessa vez, o eremita o recebeu de forma menos
sombria e taciturna.
Que ele desejava sinceramente expiar pecados graves, isso Ubaldo já concluíra
daquela canção noturna, mas lhe parecia que esse espírito lutava em vão com o
inimigo, pois em seu comportamento nada havia da serena confiança de uma alma
devotada a Deus, e muitas vezes, sentados juntos para conversar, uma ansiedade
terrena fortemente reprimida irrompia com força quase hedionda dos irrequietos
olhos flamejantes do homem, parecendo embrutecer estranhamente todas as suas
feições e transformá-las por completo.
Isso instigou o pio cavaleiro a amiudar as suas visitas a fim de proteger e resguardar
essa alma vacilante com toda a força de um espírito puro, imaculado. Sobre seu
nome e vida pregressa, no entanto, o eremita guardou silêncio todo esse tempo; o
passado parecia fazê-lo estremecer. Mas a cada visita ele se tornava visivelmente
mais calmo e confiante. Por fim, o bom cavaleiro logrou até mesmo convencê-lo a
que o seguisse a seu castelo.
Já caíra a noite quando chegaram ao forte. O cavaleiro fez acender uma lareira
aconchegante e mandou vir do melhor vinho que possuía. O eremita pareceu sentirse
à vontade pela primeira vez. Observou com toda a atenção uma espada e outras
armas que cintilavam à luz do fogo penduradas na parede, e então contemplou o
cavaleiro em silêncio, longamente.
"És feliz", disse, "e admiro a tua figura robusta, elegante e viril com verdadeiro temor e reverência, como vives impassível a mágoa e o júbilo e levas a vida sereno, ao
mesmo tempo que pareces entregar-te a ela por inteiro, tal qual um marinheiro que
sabe muito bem como manejar o leme e não se deixa confundir em seu curso pela
maravilhosa canção das sereias. Na tua presença já me senti várias vezes como um
tolo covarde ou como um louco. Há pessoas inebriadas de vida — ah, como é
terrível ficar sóbrio outra vez de um só golpe!"
O cavaleiro, que não queria perder a oportunidade de tirar proveito desse singular
arroubo de seu hóspede, insistiu com bondade que ele afinal lhe confiasse a história
de sua vida. O eremita ficou pensativo.
"Se me prometeres", disse por fim, "manter eterno segredo daquilo que te contar, e me permitires omitir todos os nomes, eu o farei."
O cavaleiro estendeu-lhe a mão e prometeu-lhe satisfeito aquilo que ele pedia, e
mandou chamar sua esposa, por cujo silêncio se responsabilizava, a fim de que ela
também tomasse parte na história pela qual ambos ansiavam havia tempo.
Ela apareceu, com uma criança no colo e levando a outra pela mão. Era uma figura
alta, bela em sua juventude em declínio, quieta e doce como o crepúsculo, a própria
beleza minguante refletida nas adoráveis crianças. O estranho perturbou-se
seriamente ao vê-la. Abriu as janelas de par em par e contemplou por alguns instantes
a extensão noturna da floresta, para refazer-se. Mais calmo, tornou a eles; todos
se aninharam ao redor da lareira chamejante, e ele pôs-se a falar da seguinte
maneira:
"O sol de outono erguia-se ameno e tépido sobre a névoa colorida que cobria os
vales em torno do meu castelo. A música dissipara-se, a festa chegara ao fim, e os
joviais convivas retiravam-se para todos os lados. Era uma festa de despedida que
eu oferecia a meu melhor companheiro, que naquele dia, junto com seu séquito,
abraçara a causa da Santa Cruz para ajudar o exército cristão a conquistar a Terra
Prometida. Desde a nossa mais tenra juventude essa empreitada era o único objeto
de nossos desejos, esperanças e sonhos, e ainda hoje me invade muitas vezes uma
indescritível nostalgia daqueles tempos tranqüilos, de manhãs tão belas, quando nos
sentávamos juntos sob as tílias esguias na encosta rochosa de meu forte e
seguíamos em pensamento as nuvens que vogavam para aquele abençoado país de
maravilhas onde viviam e lutavam Godofredo e outros heróis no esplendor da glória.
Mas como tudo mudou rápido dentro de mim! Uma donzela, a flor de toda a beleza,
que eu vira apenas algumas vezes e por quem, sem que ela soubesse, nutri desde o
início um amor invencível, mantinha-me cativo no calmo baluarte dessas montanhas.
Agora que eu era forte o bastante para combater, era incapaz de me separar e
deixava que meu amigo partisse só. Ela também estivera presente à festa, e eu me
regalava com desmedida felicidade no reflexo de sua beleza. Quando de manhã ela
fez menção de partir e eu a ajudei a montar no cavalo, atrevi-me a revelar-lhe que
somente por causa dela eu desistira da expedição. Nenhuma resposta ela deu, mas
arregalou-me os olhos como que assustada e partiu a galope."
A essas palavras, o cavaleiro e sua mulher entreolharam-se com visível sobressalto.
O estranho, porém, não percebeu e continuou:
"Todos haviam ido embora. O sol brilhava pelas altas janelas ogivais nos aposentos
vazios, onde agora só ecoavam meus passos solitários. Debrucei-me longamente na
sacada; dos bosques tranquilos embaixo ressoava o golpe de um ou outro lenhador.
Um indescritível arroubo de nostalgia apoderou-se de mim nessa minha solidão. Não
pude mais suportar, lancei-me sobre meu cavalo e saí à caça, para desafogar meu
coração oprimido.
"Vaguei por um bom tempo e encontrei-me afinal, para surpresa minha, numa parte
do território que até então me era totalmente desconhecida. Cavalgava pensativo,
com meu falcão no braço, por uma campina magnífica, sobre a qual os raios do sol
poente incidiam oblíquos; as teias de outono voavam feito véus pelo sereno ar azul;
acima das montanhas sopravam as canções de adeus das aves migratórias.
"Súbito ouvi várias trompas de caça que, a certa distância das montanhas, pareciam
responder uma à outra. Algumas vozes as acompanhavam com canto. Nunca antes
música alguma me preenchera com nostalgia tão maravilhosa como esses timbres, e
ainda hoje me recordo de várias estrofes da canção, tal como me soprou o vento
entre os acordes:
Em riscas amarelas e vermelhas
Migram os pássaros lá no alto.
Aflitos vagueiam os pensamentos,
Ah!, não encontram refugio algum,
E as queixas sombrias das trompas
Golpeiam só a ti, coração solitário.
Vês a silhueta das montanhas azuis
Ao longe, erguendo-se da floresta,
Os riachos que no vale tranqüilo
Seguem murmurejantes ao longe?
Nuvens, riachos, pássaros alegres,
Tudo se confunde na distância.
Dourados meus cachos ondeiam,
Doce meu corpo jovem floresce —
Logo a beleza também fenece,
Tal como esmorece o brilho do verão;
A juventude tem de vergar suas flores,
Ao redor as trompas todas silenciam.
Braços delgados para abraçar,
Boca vermelha para o doce beijo,
Brancos seios para neles se aquecer,
Ricas, plenas juras de amor
Oferecem-te os timbres das trompas.
Vem, amor, antes que se dissipem!
"Fiquei deslumbrado com esses acordes que me penetraram o coração. Meu falcão,
assim que se ergueram as primeiras notas, espantou-se, alçou vôo com um guincho
estridente, desapareceu nos ares e nunca mais voltou. Mas eu fui incapaz de resistir
e continuei a seguir a sedutora canção das trompas, que, confundindo os sentidos,
ora soavam como que à distância, ora se avolumavam com o vento.
"Assim foi até que eu finalmente saí da floresta e avistei um castelo rutilante situado
sobre uma montanha bem à minha frente. Ao redor do castelo, do cume até a
floresta embaixo, um magnífico jardim nas cores mais variadas, circundava o edifício
como um anel mágico. Todas as suas árvores e seus arbustos, tingidos pelo outono
com muito mais força que noutras partes, eram vermelho-púrpura, amarelo-ouro e
vermelho-fogo; sécias elevadas, esses últimos astros do verão minguante ardiam ali
em múltiplo esplendor. O sol poente lançava os seus raios no adorável outeiro, nas
fontes e nas janelas do castelo, que luziam ofuscantes.
"Percebi então que os acordes de trompa que ouvira antes provinham desse jardim,
e em meio ao fulgor de sarmentos selvagens de videira eu vi, com o mais íntimo
assombro, a donzela que povoava todos os meus pensamentos, andando de lá para
cá, ela própria a cantar entre os acordes. Ao avistar-me, calou-se, mas as trompas
seguiram soando. Belos jovens com roupas de seda acorreram solícitos e levaramme
o cavalo.
“Atravessei o portão gradeado finamente revestido de ouro no terraço do jardim onde
se achava a minha amada e sucumbi, subjugado por tamanha beleza, a seus pés.
Ela usava um vestido vermelho-escuro; véus longos, transparentes como os fios
leves do outono, adejavam ao redor dos cachos louro-dourados, apanhados sobre a
fronte por um suntuoso diadema de pedras preciosas.
"Ela ergueu-se afetuosa e, numa voz enternecedora, como entrecortada por amor e
pesar, disse: 'Jovem belo e infeliz, como eu te amo! Há muito eu te amo, e quando o
outono dá início a seu misterioso festival, a cada ano desperta o meu desejo com
nova e irresistível força. Infeliz! Como vieste parar no círculo dos meus acordes?
Deixa-me e foge!'.”
Estremeci a essas palavras, e implorei-lhe que continuasse a me falar e se
explicasse em mais detalhes. Mas ela não respondeu, e andamos lado a lado em
silêncio pelo jardim.
"Nesse meio-tempo fez-se noite. Espalhou-se então uma grave majestade sobre
toda a sua figura.”
"Pois fica então sabendo', disse ela, 'que teu amigo de infância, que hoje se
despediu de ti, é um traidor. Fui forçada a ser sua noiva. Por puro ciúme ele escondeu
de ti o seu amor. Ele não partiu para a Palestina; virá amanhã para me
buscar e me esconder para sempre num castelo distante, longe dos olhos humanos.
Agora tenho de ir. Se ele não morrer, nunca mais nos veremos.'”
"Dizendo essas palavras, pousou-me um beijo nos lábios e desapareceu nas
passagens escuras. Uma pedra de seu diadema cintilou com brilho gélido em meus
olhos quando ela se foi; seu beijo queimava-me com volúpia quase terrível em todas
as minhas veias.”
"Ponderei então com pavor as palavras funestas que, ao despedir-se, ela instilara
como veneno em meu sangue impoluto, e vaguei longamente, absorto em
pensamentos, pelas veredas solitárias. Exausto, por fim estirei-me nos degraus de
pedra diante do portão do castelo; as trompas continuavam a soar, e eu adormeci
em meio a estranhos pensamentos.”
"Quando abri os olhos, já clareara o dia. Todas as portas e janelas estavam
firmemente cerradas, o jardim e toda a paisagem estavam calmos. Nessa solidão,
despertou a imagem da amada e de todo o sortilégio da tarde anterior com novos
matizes de beleza matutina em meu coração, e senti em cheio a felicidade de ser
correspondido no amor. Às vezes, é verdade, quando aquelas terríveis palavras me
voltavam à lembrança, meu impulso era fugir para longe dali; mas o beijo ainda me
ardia nos lábios, e eu era incapaz de sair do lugar.”
"Soprava um vento cálido, quase sufocante, como se o verão quisesse voltar atrás.
Saí andando ao léu pela floresta vizinha, perdido em devaneios, para distrair-me
com a caça. Foi então que vi na copa de uma árvore um pássaro de plumagem tão
magnífica como jamais vira antes. Quando retesei o arco para atirar, voou rápido
para outra árvore. Segui-o com avidez, mas o belo pássaro continuava a esvoaçar
de copa em copa, suas asas rebrilhando à luz do sol.
"Cheguei assim a um vale estreito, cercado de rochas escarpadas. Nem ao menos
um bafejo de ar infiltrava-se até ali; tudo ainda estava verde e florido como no verão.
Um canto avolumou-se inebriante do centro desse vale. Atônito, verguei os galhos
do arbusto cerrado junto ao qual me encontrava — e meus olhos baixaram-se ébrios
e ofuscados pelo encanto que lá me era revelado.
"No círculo das rochas escarpadas havia um lago de águas calmas, junto ao qual
heras e singulares flores de junco trepavam com opulência. Várias moças banhavam
seus belos corpos ao som de cantigas, submergiam-nos e tornavam a emergi-los
das águas tépidas. Acima de todas elas estava a donzela suntuosa, sem véus, que,
em silêncio, enquanto as outras cantavam, contemplava as ondas brincando
voluptuosas ao redor de seus tornozelos, como que fascinada e absorta na imagem
de sua própria beleza refletida no extasiado espelho d’água. De pés plantados, com
ardentes calafrios lá fiquei por longo tempo, até que o belo grupo deixou a água e eu
me afastei às pressas para não ser descoberto.
"Meti-me na floresta mais densa para arrefecer as chamas que devoravam meu
íntimo. Mas quanto mais fugia, mais vivas aquelas imagens dançavam diante de
meus olhos, mais eu era consumido pelo fulgor daqueles corpos juvenis.”
“A noite que caía apanhou-me ainda na floresta. O céu inteiro transformara-se e
escurecera nesse meio-tempo; uma tempestade agreste passou sobre as
montanhas. 'Se ele não morrer, nunca mais nos veremos!', eu não parava de repetir
para mim mesmo, e corria como se acossado por fantasmas.”
"Por vezes me parecia ouvir a meu lado o estampido de cascos de cavalos na
floresta, mas eu me furtava a todo rosto humano e fugia de todo ruído tão logo
parecia aproximar-se. O castelo de minha amada eu avistava várias vezes quando
chegava a uma elevação, situado à distância; as trompas tornaram a cantar como na
noite anterior; o brilho das velas difundia-se como um tênue luar por todas as janelas
e iluminava magicamente à volta o círculo das árvores e flores adjacentes, enquanto
lá fora toda a paisagem atracava-se em tempestade e trevas.”
“A ponto de perder o controle dos meus sentidos, escalei finalmente uma rocha
íngreme sob a qual corria um ribeirão estrondeante. Quando cheguei ao topo, ali
avistei uma figura escura sentada sobre uma pedra, quieta e imóvel, como se ela
própria fosse de pedra. As nuvens lançavam-se pelos céus, dilaceradas. A lua surgiu
vermelho-sangue por um instante — e eu reconheci meu amigo, o noivo de minha
amada. Ergueu-se assim que me viu, rápido e a prumo, tanto que estremeci por
dentro, e agarrou sua espada. Em fúria, caí sobre ele e o prendi com os dois braços.
Lutamos por alguns momentos, até que por fim arremessei-o pedra abaixo no
abismo.”
“Súbito fez-se silêncio nas profundezas e ao redor, só o ribeirão embaixo rugia com
mais força, como se toda a minha vida pretérita estivesse sepultada sob essas
águas turbulentas e tudo fosse para sempre passado.”
"Corri em disparada para longe daquele lugar terrível. Foi então que me pareceu
ouvir uma risada estrepitosa, perversa, como se viesse da copa das árvores às
minhas costas; ao mesmo tempo, na confusão dos meus sentidos, supus rever o
pássaro que perseguira antes, nos galhos acima de mim. Acuado, transido de medo
e meio desfalecido, corri pelas selvas e transpus o muro do jardim rumo ao castelo
da donzela. Com todas as forças sacudi os gonzos do portão fechado. 'Abram', gritei
fora de mim, 'abram, eu matei meu irmão do peito! Agora és minha na terra e no
inferno!'”
“As folhas do portão rapidamente se abriram, e a donzela, mais bela do que eu
jamais a vira, atirou-se com abandono em meu peito dilacerado, revolto por
tempestades, e cobriu-me de beijos ardentes.”
"Haveis de permitir que eu cale sobre o luxo dos aposentos, a fragrância de flores e
árvores exóticas entre as quais se entreviam belas criadas a cantar, as vagas de luz
e música, a volúpia furiosa e inefável que nos braços da donzela eu..."
Nesse ponto o estranho estacou de repente. É que lá fora se podia ouvir uma
estranha canção que passava esvoaçante pelas janelas do forte. Eram apenas
algumas
notas, que ora soavam como a voz humana, ora como os acordes mais
agudos do clarinete quando a floresta os faz soprar sobre as montanhas distantes,
tomando o coração de assalto e partindo ligeiros.
“Acalma-te", disse o cavaleiro, "estamos habituados a isso. Dizem que nos bosques
vizinhos costuma haver bruxaria, e muitas vezes na época de outono tais sons
chegam à noite até o nosso castelo. Eles se vão tão rápido quanto chegam, e não
nos preocupamos mais com o assunto."
No entanto, uma grande comoção parecia agitar o peito do cavaleiro, e só a custo
ele a reprimia. Os acordes lá fora já haviam sumido. O estranho permanecia
sentado, como se ausente, perdido em profundos pensamentos. Após longa pausa,
recompôs-se e retomou a sua história, embora não tão calmo como antes:
"Eu notava que a donzela, em meio ao esplendor, era acometida às vezes de uma
involuntária melancolia quando via que fora do castelo o outono queria dar adeus às
campinas. Mas uma noite de sono bem-dormida bastava para que tudo voltasse ao
normal, e o seu rosto magnífico, o jardim e a paisagem toda ao redor miravam-me
de manhã sempre com viço, frescor e como que recém-criados.”
"Só uma vez, eu a seu lado diante da janela, ela ficou mais calada e triste que de
hábito. Lá fora no jardim a tempestade de inverno brincava com as folhas caídas.
Percebi que várias vezes ela estremecia furtivamente ao contemplar a paisagem
empalidecida. Todas as suas criadas nos haviam deixado; as canções das trompas
soavam naquele dia só à infinita distância, até que afinal extinguiram-se. Os olhos da
minha amada haviam perdido todo o brilho e pareciam extintos. Atrás das
montanhas o sol se pôs e encheu o jardim e os vales ao redor com seu brilho pálido.
Então a donzela envolveu-me com os braços e começou a cantar uma estranha
canção que eu nunca ouvira de seus lábios e que penetrava a casa inteira com seus
acordes infinitamente melancólicos. Ouvi encantado, era como se essa melodia me
tragasse lentamente para baixo com a noite que caía, meus olhos se fecharam a
contragosto, e eu adormeci em meio a sonhos.”
"Quando despertei já era noite e tudo estava em silêncio no castelo. A lua brilhava
muito clara. Minha amada dormia deitada a meu lado num leito de seda. Contempleia
perplexo; estava pálida feito cadáver, os seus cachos pendiam em desalinho sobre
o rosto e o peito, como se desgrenhados pelo vento. Todo o resto ao meu redor
permanecia intocado, tal como antes de adormecer; pareceu-me que muito tempo
havia decorrido. Aproximei-me da janela aberta. A paisagem lá fora me pareceu
transformada e bem diferente daquela que eu sempre vira. As árvores farfalhavam
misteriosamente. Vi então lá embaixo, junto ao muro do castelo, dois homens que
murmuravam e conferenciavam às ocultas, curvando-se sempre do mesmo modo e
inclinando-se um para o outro num movimento de vaivém, como se quisessem urdir
uma teia. Eu era incapaz de entender o que diziam, só os ouvia de vez em quando
mencionar meu nome. Tornei a observar a figura da donzela, que agora era
iluminada em cheio pela lua. Pareceu-me ver uma imagem de pedra, bela, mas fria
como a morte, e imóvel. Uma pedra cintilava como olhos de basilisco em seu peito
hirto, sua boca parecia-me estranhamente desfigurada.”
"Um horror, desses que eu nunca sentira antes em minha vida, possuiu-me num
instante. Deixei tudo para trás e disparei pelos átrios vazios e desertos, onde todo o
brilho se extinguira. Quando saí do castelo, vi a certa distância os dois estranhos de
repente petrificados em sua tarefa e paralisados como estátuas. Do outro lado,
montanha abaixo, avistei junto a um estranho lago várias moças com trajes brancos
como neve que, entre cantigas maravilhosas, pareciam ocupadas em estender sobre
os campos estranhas teias, empalidecendo ao luar. Essa visão e esse canto
aumentaram ainda mais meu horror, e lancei-me com ímpeto tanto maior por sobre o
muro do jardim. As nuvens voavam ligeiras no céu, as árvores atrás de mim
farfalhavam, eu corria buscando fôlego para longe, para longe.”
"Aos poucos a noite tornou-se calma e mais quente, os rouxinóis cantavam nos
arbustos. Além, na profundeza das montanhas, pude ouvir vozes, e antigas
recordações havia muito esquecidas tornaram a alvorecer indistintas em meu coração
consumido pelo fogo, enquanto à minha frente a mais bela alvorada de primavera
erguia-se sobre as montanhas.”
"Que é isso? Mas onde estou?', exclamei, surpreso, e não sabia o que havia
acontecido comigo. 'O outono e o inverno se foram, a primavera está de volta à
terra. Meu Deus! Onde é que eu estive todo esse tempo?'”
"Finalmente alcancei o topo da última montanha. O sol levantava-se esplêndido. Um
arrepio de prazer encrespou a terra, riachos e castelos brilhavam, as pessoas, ah!,
cuidavam tranqüilas e alegres de seus afazeres diários como sempre, incontáveis
cotovias alçavam em júbilo um vôo alto pelos ares. Caí de joelhos e chorei
amargamente pela minha vida perdida.”
"Não entendia e não entendo até agora como tudo se passou, mas não queria ainda
descer ao mundo sereno e inocente com este peito cheio de pecado e volúpia
desabrida. Enterrado no mais profundo ermo, o meu desejo era rogar perdão aos
céus e não rever as moradas dos homens antes que tivesse lavado com lágrimas de
fervorosa penitência todas as minhas faltas, a única coisa sobre o passado de que
eu tinha clara e nítida consciência.”
"Vivi assim durante um ano, quando então me encontraste perto da caverna. Preces
fervorosas brotavam com freqüência do meu peito angustiado, e por vezes eu
supunha que tudo estava superado e que eu encontrara a graça de Deus, mas isso
era apenas a doce ilusão de momentos raros, e tudo passava rapidamente. E
quando o outono torna a estender sua maravilhosa rede de cores sobre vales e
montanhas,
então alguns acordes bem familiares voltam a desprender-se da floresta até
minha solidão, e vozes sombrias dentro de mim lhes fazem eco e lhes dão resposta,
e no meu íntimo ainda me deixam estarrecido as pancadas dos sinos da catedral
distante, quando me alcançam em claras manhãs de domingo transpondo montanhas,
como se buscassem o velho e sereno reino de Deus da infância em meu peito,
que nele não se acha mais. Como vês, há um maravilhoso e sombrio reino de idéias
no peito humano onde rebrilham com aterrador olhar enamorado cristais e rubis e
todas as flores petrificadas das profundezas, e acordes mágicos sopram de permeio,
tu não sabes de onde vêm e para onde vão, a beleza da vida terrena faísca de fora
para dentro em crepúsculo, as fontes invisíveis, tristemente sedutoras, murmuram
continuamente, e te tragam eternamente para baixo, para baixo!"
"Pobre Raimundo", exclamou então o cavaleiro, que observara longamente, com
profunda emoção, o estranho perdido nos devaneios de sua história.
"Santo Deus! Quem és, que sabes o meu nome?", exclamou o estranho num pulo,
como se atingido por um raio.
"Deus meu!", retrucou o cavaleiro, e com efusão envolveu em seus braços o homem
que tremia de alto a baixo, "então não nos reconheces mais? Eu sou seu velho e fiel
irmão de armas Ubaldo, e esta é a tua Berta, que amaste em segredo, que ajudaste
a montar no cavalo depois daquela festa de despedida em teu forte. O tempo e uma
vida movimentada embaçaram desde então nossas feições de fresca juventude, e
eu só te reconheci quando começaste a narrar tua história. Eu nunca estive num
lugar como aquele que descreveste, e nunca lutei contigo sobre pedra nenhuma.
Logo depois daquela festa parti para a Palestina, onde combati por muitos anos, e a
bela Berta que vês aqui se tornou minha mulher após meu retorno. Berta também
não te viu nunca mais depois da festa de despedida, e tudo o que narraste é pura
fantasia. Um feitiço maléfico, que desperta a cada outono e então sempre te põe a
perder, meu pobre Raimundo, te manteve seduzido durante muitos anos com ardis
de mentira. Sem te dares conta, viveste meses como se fossem dias. Ninguém
sabia, quando retornei da Terra Prometida, para onde tinhas ido, e nós te dávamos
há muito por perdido."
Feliz que estava, Ubaldo não notou que seu amigo tremia cada vez mais fortemente
a cada palavra. Com olhos cavos e arregalados ele fitava alternadamente um e outro
e reconheceu então de súbito o amigo e a jovem amada, sobre cuja figura
comovente, havia muito esmaecida, as chamas da lareira a brincar lançavam um
clarão bruxuleante.
"Perdido, tudo perdido!", exclamou do fundo do peito, desvencilhou-se dos braços de
Ubaldo e disparou rápido como uma flecha para fora do castelo na direção da noite e
da floresta. "Isso mesmo, perdido, e meu amor e toda a minha vida uma longa
ilusão!", não parava de dizer a si mesmo e corria, até todas as luzes no castelo de
Ubaldo desaparecerem às suas costas. Quase sem querer, tomou o rumo de seu
próprio forte, ao qual chegou quando rompia a aurora.
Fazia novamente uma serena manhã de outono como antes, quando havia muitos
anos ele deixara o castelo, e a lembrança daquele tempo e a dor pelo brilho e glória
perdidos de sua juventude abateram-se em cheio sobre toda a sua alma. As tílias
esguias no pátio de pedras do forte continuavam farfalhando, mas o lugar e o castelo
inteiro estavam vazios e desertos, e o vento sibilava pelos vãos das janelas em
ruínas.
Entrou no jardim. Ele também estava ermo e destruído, só uma ou outra flor temporã
ainda cintilava aqui e ali entre a relva descorada. Pousado numa flor elevada, um
pássaro trinava uma canção maravilhosa que enchia o peito de infinda nostalgia. Era
a mesma melodia que ele entreouvira na noite anterior ao narrar sua história no forte
de Ubaldo. Com assombro reconheceu também o belo pássaro dourado da floresta
encantada. Mas atrás dele, do alto de uma janela ogival do castelo, um homem
esguio admirava a paisagem enquanto seguia ouvindo o canto, imóvel, pálido e
salpicado de sangue. Era a imagem viva de Ubaldo.
Horrorizado, Raimundo desviou o rosto da imagem terrivelmente imóvel e baixou a
vista para a manhã clara à sua frente. Súbito, lá embaixo passou a galope num
corcel airoso a bela donzela encantada, sorridente, na flor da juventude. Fios
prateados de verão tremulavam às suas costas, o diadema em sua fronte lançava
raios ouro-esverdeados pela campina afora.
Com todos os sentidos turvados, Raimundo disparou pelo jardim em busca da
imagem arrebatadora.
A estranha canção do pássaro sempre o precedia à medida que avançava. Aos
poucos, quanto mais progredia, esses acordes transformavam-se magicamente na
antiga canção das trompas que então o seduzira.
Dourados meus cachos ondeiam,
Doce meu corpo jovem floresce —
tornou a ouvir de forma indistinta, como um eco na distância.
Os riachos que no vale tranqüilo
Seguem murmurejantes ao longe?
Seu castelo, as montanhas e o mundo inteiro abismaram-se em crepúsculo às suas
costas.
Ricas, plenas juras de amor
Oferecem-te os timbres das trompas.
Vem, amor, antes que se dissipem!
tornou a ecoar — e, perdido em loucura, o pobre Raimundo seguiu a melodia pela
floresta adentro e nunca mais foi visto.