Tecnoburocracia e pensamento desenvolvimentista em Minas Gerais (1903-1969) por Daniel Henrique Diniz Barbosa - Versão HTML
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contrário e; ii) a utilização do termo será aqui empregada para tratar de grupo muito
específico: o setor de formação técnica e tecnológica que passa, progressivamente de
forma mais forte e organizada a partir de determinado momento histórico, a compor
parcela crescente de uma burocracia cuja formação tradicional era o bacharelado em
Direito.
Assim que também se apresenta relevante uma breve nota sobre as elites
mineiras, primordialmente para situarmos com clareza nesta introdução – apesar de
supormos que isso se desenvolve no corpo dos capítulos subseqüentes – de qual grupo
especificamente estamos tratando neste trabalho. Segundo Dulci (1999), as elites
mineiras poderiam ser divididas, desde o princípio do século XX, a partir de duas
chaves distintas. No plano econômico, encontrar-se-ia a elite agrária (dividida entre
setor agro-exportador e setor de produção diversificada para consumo interno) e uma
emergente elite empresarial urbana que, com o correr do período, concentrou-se,
sobretudo, nos ramos minero-siderúrgicos, conforme abordaremos adiante. No plano
social, dispunha-se uma elite política tradicional, baseando seu poder em relações
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clientelistas, coronelismo, por meio de lutas de famílias e por vezes o uso da força
(Martins Filho, 2009) e, a partir do período em tela, uma também emergente elite
técnica, conquanto muito residual a princípio mas que, assim como a elite empresarial
urbana, foi capaz de se consolidar no médio prazo, notadamente nas empresas minero-
siderúrgicas e no poder público, principalmente. Essas chaves podem também ser
pensadas em dois eixos diferentes: setores políticos e agrícolas como elite tradicional e
setores urbano-industrial e técnico como elite moderna (Dulci, 1999: 107).
Longe de entrar aqui no longo e caloroso debate sobre o perfil dessa elite e,
notadamente, sobre o papel exercido por ela tanto no arranjo político da República
Velha,9 especificamente com a elite cafeicultora paulista, como na própria composição
material da economia mineira no período em tela, interessa-nos compreender como um
grupo específico – o corpo técnico –, essencialmente baseado no discurso sobre o
moderno, a indústria, o fomento e o planejamento do desenvolvimento regional, emerge
justamente em quadro de tão profunda influência de grupos políticos e econômicos
tradicionais. Parece-nos válida, nesse sentido, a hipótese de Dulci (1999), para quem há
um acordo de interesses variados no entorno do projeto de modernização da economia
regional, caracterizado não pela contradição de projetos mas, ao contrário, pela
justaposição de objetivos. Assim que, ainda segundo o autor, estas elites regionais
teriam criado mecanismo de transformação econômica sem, contudo, estabelecer
rupturas no bojo da condução política ou mesmo inflexão no processo social. No que
tange às elites tradicionais, Dulci (1999) aponta a convergência política no entorno
primeiramente do PRM, posteriormente na divisão entre PSD e UDN que, ao cabo,
convergiam no plano social e econômico – não obstante distassem profundamente no
plano político. No que concerne ao empresariado, o autor ressalta a emergência de
grupos técnicos transitando da órbita estatal para a privada, com ligações objetivas com
as elites tradicionais. Já no concernente à elite técnica, ele sublinha estas relações com a
elite tradicional (ou sendo um técnico de procedência de famílias políticas tradicionais
ou por casamento).
Embora concordemos com Dulci (1999) no geral, supomos que a avaliação
acerca da elite técnica carece de qualificação. Realmente, em uma sociedade em que
houve pouca mobilidade social no período deste trabalho, parece correto mesmo afirmar
9 Ver Resende (1982); Mata Machado (1987); Martins Filho (2009); Viscardi (2001), dentre outros.
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que o corpo técnico tenha se constituído, justamente, por meio de excertos da elite
tradicional, correspondendo àquilo que Barbosa (1993) considerou por uma
diferenciação de formação da elite, valendo-se do discurso técnico como marca do
diferencial em detrimento do bacharel em Direito ou dos eclesiásticos. E isso
notadamente a partir do início do século XX quando, segundo Dutra (1989), lentamente
configurava-se no entorno dessas elites um arremedo de discurso burguês, pautado pela
defesa da industrialização, embora não apenas por ele.
Personagens como Pandiá Calógeras, João Pinheiro, Costa Senna, dentre outros,
ou representavam famílias tradicionais ou haviam se casado, como Pinheiro, com filha
de cafeicultor. Além disso, e o caso de Pinheiro é relevante conforme abordaremos no
corpo deste trabalho, possuir o conhecimento técnico configurava grande diferencial,
mas a formação no Direito ainda era determinante para compor a elite política. Na
medida, contudo, que esse processo amadureceu, paulatinamente se pode perceber um
leve descolamento da elite técnica desse padrão. Este é o caso, por exemplo, de
Américo Renné Giannetti, bem como de um grupo majorado de engenheiros e
economistas, já ao final do período. Assim, não obstante Lucas Lopes tenha laços com a
tradicional família mineira pelo lado materno, é impossível dizer o mesmo da maioria
da equipe de engenheiros ligados à CEMIG a partir de sua fundação – sendo que, aliás,
dos mais proeminentes a maioria nem era nascida em Minas ou possuía qualquer laço
de casamento ou assemelhado. Compreendemos essa elite tecnoburocrática mineira,
portanto, como grupo que, não obstante se articulasse plenamente com os demais
grupos formativos da elite econômica regional e com a elite política tradicional, valia-se
de sua qualificação técnica como elemento distintivo e determinante no processo
político em que se projetava socialmente. É relevante a posição de Lucas Lopes, nesse
sentido, quando argumenta sobre o mecanismo de defesa dos pressupostos de seu grupo
no embate constituído no espaço do poder público em prol, especifica mas não
exclusivamente, da política energética. Assim que ele afirma, por exemplo, que
Só foi possível convencer os políticos mineiros, Juscelino e os demais, de que
tínhamos um programa importante na mão porque eles olhavam para os cinco
volumes do Plano de Eletrificação e não sabiam como contraditar. (...) De
certa forma, reunimos um exagero de informações com a preocupação de
liquidar debates inócuos, sempre freqüentes nos clubes de engenharia e
associações de classe. De modo que, se eles não quisessem fazer o que
propúnhamos, diríamos: “está muito bem, então tragam cinco volumes iguais
a estes, que poderemos debater”. (Lopes, 1991: 115)
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A postura de Lopes, no entanto, não era inédita. Se forem observados os
engenheiros atrelados à campanha pela implantação da grande siderurgia em Minas, na
década de 1930, poder-se-á notar a presença desse mesmo tipo de argumento,
primordialmente em relação à elite política e, sobretudo, contrastando o diferencial do
argumento em detrimento dos grupos empresariais urbanos. O mesmo se pode perceber
em relação ao economista na década de 1960 e seu argumento em favor da ciência
econômica como chave de suplantação do problema material mineiro – todos assuntos
devidamente abordados nos capítulos deste trabalho. Desse modo que, conquanto essa
elite tecnoburocrática possa se relacionar aos quadros das elites políticas tradicionais,
dos setores economicamente tradicionais ou modernos, ela consegue definir um espaço
específico de atuação. Isso que a permite, notadamente a partir dos anos 1950, grau a
grau desvincular-se da estrutura econômica e vincular-se progressivamente mais à
estrutura acadêmica e intelectual. O perfil dos economistas da fase final deste trabalho,
notadamente no entorno do BDMG e de carreiras públicas entre a universidade e órgãos
técnicos governamentais, com pequena atividade no mundo privado, parece indicar a
consolidação dessa tendência.
Este estudo procura dedicar-se, nesse sentido, à reconstrução histórica de
período de absoluta relevância para a história de Minas Gerais, procurando abordá-la a
partir da importância assumida por esta elite tecnoburocrática mineira especialmente
articulada ao debate estabelecido acerca das características fomentadas em processos de
industrialização em regiões periféricas, para as quais alguma intervenção política e
determinado grau de organização e atuação diretiva se tornam primordiais.
Pensar a transição de uma economia em sua fase primário-exportadora para uma
fase de industrialização avançada pressupõe, em princípio, considerar que, conforme
aponta Bendix (1994), inexiste um quadro claro e definido que oporia “Sociedades
Tradicionais” e “Sociedades Modernas” como variantes isoladas. Esse paradigma
evolucionista clássico, ao explicar a transição, definir-se-ia pela construção de uma
sucessão de etapas a serem enfrentadas pelas sociedades tradicionais que, em linhas
gerais, assemelhar-se-iam àquelas vencidas pelo caso ideal originário, o inglês. Para a
abordagem clássica, portanto, tradição e modernidade se definiriam por uma lógica
“antes-e-depois”, em que a generalização das experiências originais se imprimisse
sempre nas sociedades tradicionais. Bendix (1994), contudo, ao propor uma crítica à
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visão clássica, enfatizará a necessidade de se observar a pertinência dos fatores internos
e específicos a cada sociedade quando de sua transição de uma fase rural e tradicional
para uma fase moderna, guardando à persistência de traços tradicionais importante papel
na definição do escopo característico do processo de transição vivenciado por cada
sociedade. Assim, diferentemente da visão clássica, a transição da tradição para a
modernidade não se definiria, necessariamente, pela superação de um conjunto de
etapas invariáveis surgidas como reflexo dos casos clássicos de industrialização. Antes,
a transição assumiria perspectiva própria em cada caso específico.
É na crítica ao modelo clássico, por exemplo, que pode ser inserido o esforço
por se constituir uma leitura mais específica dos casos latino-americanos de transição
entre suas economias primário-exportadoras para dinâmicas industriais avançadas a
partir, principalmente, da reordenação do capitalismo mundial, pós-1929. A crítica
estabelecida nesses países, em especial a partir das formulações teóricas da CEPAL,
dirigia-se às possibilidades limitadas da teoria liberal clássica de se promover o
desenvolvimento industrial em países cujas economias prescindiam de uma estrutura
efetiva de produção industrial e de acúmulo endógeno suficientemente capaz de, por
meio da estrutura mesma do mercado, promover o desenvolvimento industrial
avançado.
O conceito de subdesenvolvimento então formulado pressupunha a ideia de um
pequeno acúmulo interno da riqueza produzida, aliado a uma situação atávica e delicada
de dependência em relação ao centro do capitalismo mundial, requerendo, portanto,
estratégias alternativas ao modelo clássico e vislumbrando o desenvolvimento pleno do
potencial industrial destas economias.
Evidentemente, esse subdesenvolvimento engendraria, na busca de sua
superação, a formulação de um conjunto teórico e prático que, ao cabo, se expressaria
tanto no papel desempenhado pelos agentes internos a cada realidade, bem como em
suas relações estabelecidas com os sistemas econômicos avançados. Segundo Martins
(1971:44-5),
A história das nações neste século [XX], notadamente a partir da Segunda
Guerra Mundial, é sobretudo a história das relações de dependência dos
sistemas periféricos aos sistemas centrais e da luta para superá-la. Entender a
situação do subdesenvolvimento e a tipicidade histórica dos países nela
inseridos é entender o jogo das respostas adaptativas resultantes dessa
interação.
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É na perspectiva de se suplantar o subdesenvolvimento econômico, gerando
mecanismos característicos às realidades em situação de dependência, que a discussão
acerca dos rumos da industrialização nos países latino-americanos passou, a partir da
década de 1930, a enfatizar os arranjos internos, suas possibilidades e limites, como
meios plausíveis de se elaborar uma alternativa industrializante em que, por exemplo, a
ação do poder público, pelo planejamento e o investimento estatal, ocupassem espaço
privilegiado – conquanto não exclusivo. É fato, também, que o advento da teoria
keynesiana trouxe uma contribuição capital ao problema, não obstante uma longa
tradição de intervenção econômica e organização diretiva dos ditames econômicos
pudesse ser observada nos países latino-americanos gerando possível caldo de cultura a
ser assimilado sobretudo por Raul Prebisch, com o advento da CEPAL.10 Segundo
sugere Bielschowsky (1989:12), o pensamento heterodoxo formulado em oposição ao
liberalismo clássico, no que concerne à teoria do subdesenvolvimento, diferencia-se do
modelo elaborado por Keynes, entretanto, na medida em que
(...) a heterodoxia relativa à alocação de recursos em países
subdesenvolvidos não significava apoio à intervenção do Estado para uso
adequado de poupança ociosa, como no caso keynesiano, e sim a existência
de protecionismo, planejamento e outras medidas governamentais como
meios de industrializar e maximizar a renda a partir de poupanças escassas.
Uma perspectiva principal, portanto, nesse encaminhamento representou a
importância assumida pelo Estado, enquanto agente propulsor, no campo econômico, da
dinamização essencial do processo produtivo, como um formulador e um investidor
privilegiado do desenvolvimento econômico. E um dos modos de atuação desse Estado,
portanto, especialmente nos casos de regiões em situação de atraso relativo, será o de
promover o desenvolvimento econômico a partir daquilo que Moore Jr (1976)
considerou como modernização conservadora. Nessa perspectiva, o processo de
industrialização perpassa uma relação adaptativa entre os setores mais tradicionais e
uma perspectiva desenvolvimentista que, embora aparentemente sejam paradoxais,
confluem no interesse pelo desenvolvimento econômico – não obstante em boa parte
das vezes gerado em ambiente politicamente autoritário.
Nessa perspectiva, o Estado não apenas congrega os interesses variados dos
grupos tradicionais, como também filtra as particularidades destas intenções, encetando
10 A este respeito, ver percuciente análise de Fonseca (2000), especialmente relevância da influência do
Positivismo e de List na formação do pensamento econômico latino-americano.
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um rumo efetivo para o processo. Emerge, então, a importância do corpo burocrático
que não apenas consubstancia a estrutura estatal, aquilo que Draibe (1985) considera
como uma ossatura material do Estado, como ainda demarcará as vias pragmáticas de
atuação da esfera pública.
Nesse sentido, mostra-se bastante significativo o fato de que, no caso brasileiro,
duas das três correntes definidas por Bielschowisky (1995) como desenvolvimentistas
tenham ligação direta com o setor público, conformando uma burocracia apta a propor e
efetivar o desenvolvimentismo brasileiro. Mas a consolidação da burocracia não
implica, necessariamente, a conformação do pensamento desenvolvimentista, em que
pese lhe seja elemento importante. Antes, o conceito de desenvolvimentismo implica a
elaboração de uma proposta de ação concernente ao rumo a se seguir no processo de
suplantação do subdesenvolvimento.
Por desenvolvimentismo compreende-se, seguindo a conceituação proposta por
Bielschowsky (1995), uma ideologia de transformação da sociedade brasileira,
emergente após 1930, que se define por um projeto econômico centrado na
industrialização integral como forma de suplantação do subdesenvolvimento brasileiro;
com amplo apoio do Estado, principalmente no planejamento dessa empresa
(considerada a ineficiência do mercado em organizá-la por sua dinâmica própria
naquele momento específico). Além disso, um conjunto de ideais que, ao garantir ao
Estado centralidade, forjasse a possibilidade de que o poder público, quando necessário,
não apenas planificasse, mas, também, participasse do arranjo econômico, captando e
alocando recursos até mesmo na produção, quando a iniciativa privada se mostrasse
insuficiente.11
11 É preciso qualificar essa conceituação de Bielschowsky, entretanto, à luz do que sustenta Dutra da
Fonseca (2004) que, no que tange sobretudo à anterioridade do modelo na América Latina, notadamente
no que se refere a relevância do positivismo como elemento que pode ter, desde o final do século XIX,
sido determinante na germinação do desenvolvimentismo no Brasil. Para o autor, a dificuldade de
precisar o exato momento em que se assume como desenvolvimentista a atuação de determinado governo
é questão relevante no que concerne ao estudo do tema, especialmente por ser conceito que articula
processos correlatos (notadamente: defesa da industrialização e do intervencionismo – fomentando ou
mesmo planejando efetivamente, nacionalismo), somente podendo ser compreendido como fruto dessa
articulação. É neste núcleo de variáveis que o autor insere positivismo, de sorte que “Neste ideário, o
desenvolvimento não é apenas uma palavra de ordem a mais, mas o elo que unifica e dá sentindo a toda a
ação do governo , ao legitimar a ampliação de sua esfera nos mais diferentes campos, além da economia
propriamente dita: educação, saúde, legislação social, cultura, políticas públicas, etc. Torna-se um fim
em si mesmo (...)” (Fonseca, 1994: 03).
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O conceito de desenvolvimentismo, portanto, pressupõe a importância da ideia
de planejamento, principalmente estatal, como uma peça-chave. Segundo Lafer
(1975:17), “A técnica do planejamento consiste em assegurar o equilíbrio entre os
níveis de produção e a demanda de bens, dada a oferta de fatores de produção de
forma a atingir certos objetivos básicos”. Para Celso Lafer (2002), muito embora a
ideia de planejamento do setor econômico paute-se pela atuação técnica, na definição
dos objetivos básicos a serem alcançados, ela também requererá uma boa dose de
injunção política. Nesse sentido, ao pensar o planejamento, torna-se premente
compreendê-lo a partir de três fases distintas, quais sejam, a decisão de planejar, o plano
em si e a implementação do plano, sendo, segundo esse autor, as duas primeiras fases
eminentemente políticas e a última uma fase propriamente técnica.
A problemática do planejamento estatal da economia, por certo, não configurou
uma especificidade brasileira. Antes, fez parte de um amplo debate no bojo do
pensamento econômico mundial, essencialmente, a partir de 1930, configurando-se em
ao menos duas perspectivas centrais: o perfil do planejamento em uma economia
capitalista e seu contorno em uma economia socialista (Lafer, 1975). Em um contexto
capitalista, de acordo com Mendes (1978), os elementos que historicamente levaram o
Estado a intervir no ambiente econômico por meio de ação planificadora variam,
podendo ser compreendidos a partir de três eixos: i) características do sistema
econômico e político; ii) grau de evolução e complexidade da administração pública e;
iii) circunstâncias econômicas e políticas conjunturais.
Segundo Kaplan (1982: 84),
Toda política que expressa uma estratégia de conservantismos, de mero
crescimento ou de desenvolvimento, manifesta-se através de níveis e etapas
de ação do Estado, que vão desde o simples intervencionismo, passando pelo
dirigismo, até as possíveis variantes do planejamento.
Ainda de acordo com o autor, enquanto o intervencionismo caracteriza-se pela
ingerência assistemática do Estado, agindo não sobre as causas mas sobre as
consequências do processo sócio-econômico, o dirigismo é mais sistemático e
organizador, podendo articular-se em política econômica unificada, conquanto não
engendre transformação estrutural relevante no quadro econômico. Ambos diferem, na
essência, do planejamento que, para Kaplan (1982: 84) “(...) constitui uma intervenção
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deliberada, baseada no conhecimento racional mínimo do processo sócio-econômico e
de suas leis (...)”.
Nesse sentido, e estritamente sob a perspectiva técnica, pode-se definir
“planejamento”, de acordo com Muinhos (1991: 46),
(...) como um conjunto de critérios de tomada de decisões que enfatiza a
escolha de objetivos explícitos e determina os meios mais apropriados para a
sua consecução a fim de que as decisões tomadas possam ser adequadas aos
anseios da população.
Tecnicamente, portanto, a natureza do planejamento pode ser considerada sob
algumas variáveis, ainda de acordo com o autor. Em se tratando i) de alocação de
recursos escassos para propósitos e objetivos múltiplos, tem-se o caso típico do
planejamento econômico propriamente dito; ii) da escolha de um caminho ótimo para a
obtenção de um objetivo específico como uma questão meramente de eficiência, o
planejamento seria técnico; iii) de problema de disposição de certas estruturas e
elementos sobre o território, o p1anejamento é espacial; iv) da modificação das relações
de poder entre os diferentes setores ou grupos sociais, define-se o planejamento político
e; v) de problema que visa aos aspectos ecológicos, tem-se o planejamento ambiental.
Para Kaplan (1982: 85), algumas características definem a agenda do
planejamento, dentre elas i) a capacidade de controlar de maneira consciente e integrada
um projeto de futuro que articule “um complexo de meios, mecanismos e processos
sociais” com “sujeitos, agentes, estruturas, comportamentos e movimentos que
constituem a sociedade”; ii) a eleição de subgrupos dentre o todo que serão beneficiados
por sua agenda em detrimento dos demais; iii) a priorização de determinados tipos de
progresso, escolhendo polos ou focos de formação e incremento de produtos, em
detrimento dos restantes; iv) a desqualificação de ações pontuais dos grupos envolvidos,
em favor de uma orientação geral; v) a constituição de autoridade apta a julgar os
interesses e demandas pontuais, notadamente, quando conflitivos, consolidando normas
para os interesses e demandas; vi) a formulação de estratégia concebida como corpo
orgânico de decisões gerador de programa minimamente preciso capaz de balizar
atuação de órgãos públicos de intervenção e planejamento; vii) determinação de
estratégia que deve consolidar-se como conjunto também orgânico de meios a serem
constituídos e objetivos a serem alcançados gerando atribuições, tarefas e indicadores a
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serem conferidos e; viii) configuração de sua natureza parcial e flexível ou total e
imperativa.
Assim que, também na avaliação de Muinhos (1991: 46), deve-se ressaltar o
caráter notadamente político do planejamento, sobretudo determinado pelo peso das
influências exercidas pelos grupos sociais na dinâmica de sustentação do Estado.
Segundo Manos (1986),
O p1anejamento é uma atitude essencialmente política, destinada a dar
direção e coerência a um concreto processo social, baseado no exercício de
poder dos grupos sociais. Buscando assegurar o nível requerido de
coordenação das ações encaminhadas, o planejamento tenta lograr a maior
aproximação possível ao cumprimento dos principais objetivos do processo
político vigente (Manos apud Muinhos, 1989, p. 46).
Também Kaplan (1982: 85-6) defenderá que o planejamento
Representa um conjunto de atos que configura um processo singular
dentro de outro processo mais geral, o das decisões de poder político. A
atividade planejadora do Estado, sua formulação e execução pressupõem e
exigem uma decisão política permanente.
Mas, quem pode afirmar que um tecnoburocrata não pode ser, ao mesmo tempo,
um representante político – mesmo quando se apresenta apenas como técnico? Em
outros termos, como compreender o papel exercido por determinados atores, em
processos específicos, que se articulam entre categorias profissionais, classes sociais e
grupos políticos diferentes, funcionando tanto como consciência reflexiva do processo
como ponte entre os grupos divergentes? Uma das hipóteses que norteiam este trabalho,
inclusive, baseia-se justamente nessa possibilidade: técnica e política, em muitos casos,
são absolutamente convergentes, podendo mesmo ser esferas articuladas por um mesmo
grupo no entorno do poder público, visando a alcançar algum resultado pontual.
Dadas as características capitais do processo de industrialização brasileiro,
ocorrido de forma notadamente heterogênea – o que implicou que seus resultados
fossem distribuídos também heterogeneamente entre os estados – forjou-se a
necessidade, então, de uma política de planejamento voltada para a regularização das
possíveis distorções no escopo do quadro econômico brasileiro. Apresentava-se a
necessidade, portanto, de reenquadramento do desenvolvimento econômico brasileiro de
sorte a atender àquelas regiões não integradas ao surto de industrialização promovido
especialmente nas regiões centrais. Tratava-se de qualificar o desenvolvimento regional,
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ou o subdesenvolvimento ou não desenvolvimento das regiões não industrializadas no
país, independentemente de suas divisões essencialmente políticas.
Segundo Boisier (1989), planejamento regional, nesse sentido, é distinto de
planejamento estadual.
O fato de se planejar a nível subnacional (estadual) não é condição
suficiente para originar uma atividade de planejamento regional propriamente
dito. Por exemplo, planejar o comportamento das variáveis agregadas a nível
de uma região (produto, renda, emprego, investimento) e escolher objetivos é
simplesmente fazer planejamento econômico global em escala geográfica
reduzida, porém não representa uma práxis de planejamento regional (Boiser,
p. 619 IN Haddad, 1989, p. 51)
Assim que, para Boisier, o planejamento regional implica demandar recursos e
esforços para equacionar problemas locais decorrentes de macro-políticas econômicas e
a ativação de setores sociais regionais. Para o autor, inclusive, crescimento econômico
pode ocorrer sem desenvolvimento, uma vez que são elementos distintos. Enquanto o
crescimento econômico se percebe pelo aumento da produção da riqueza, o
desenvolvimento possui características distintas e específicas, quais sejam i) da
participação relativa da região no uso dos recursos nacionais; ii) do grau de afetamento
em cada região dos efeitos (regionais) implícitos ou indiretos das políticas
macroeconômicas nacionais e setoriais, constituindo-se importante papel do
planejamento regional verificar o impacto destas políticas em cada região (se este for
negativo, deve ser feita a negociação do esquema de discriminação regional das
políticas ou o estabelecimento de medidas compensatórias como, por exemplo, o uso
mais efetivo da política fiscal); iii) do desenvolvimento da capacidade de organização
social da região.
Realizadas estas considerações, define-se que uma região, como unidade
de análise, é representada por um conjunto de pontos do espaço que tenham
maior integração entre si do que em relação ao resto do mundo. Mais ainda,
contextualizando esta definição com o conceito de urbano – lócus da
produção diversificada e integrada do capitalismo –, pode-se definir uma
região como um conjunto de centros urbanos dotados de um determinado
grau de integração em oposição ao resto do mundo, composto por centros
urbanos com grau de menor de integração com os primeiros (LIMA
&SIMÕES, 2009, p. 6,7)
Dessa maneira que determinada região, de acordo com Lemos (1988), deve ser
compreendida notadamente pela dinâmica regional que resume, ou seja, pelo processo
de determinação da renda urbana que é a expressão e causa do movimento do capital no
espaço, segundo Gunnar Myrdal, Albert Hirschman, François Perroux, Jacques
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Boudeville e Douglass C. North. Para estes autores, segundo Lemos (1988), tendo sido
estabelecidas as vantagens e desvantagens comparativas dos espaços econômicos,
iniciam-se determinados movimentos migratórios do capital, que denotarão maior ou
menor fôlego no processo de acumulação de uma região gerando, assim, uma dinâmica
regional específica.
Nesse sentido, François Perroux produz, na década de 1950, crítica da visão
coeva que ligava espaços econômicos e humanos, gerando recomendações imprecisas
de políticas econômicas. O autor – uma das principais referências para os economistas
mineiros na década de 1960 – propunha, então, que espaços econômicos dependiam,
estritamente, dos fenômenos econômicos observados. Assim, o espaço econômico
transcende o espaço físico concreto; antes, ele é representado por suas dinâmicas
internas e externas, sendo mesmo que o espaço econômico nacional transcende a
própria barreira geográfica do país.
Estabelecido o conceito de espaço econômico, Perroux passa a análise do
processo de crescimento, que seria irregular: “o crescimento não surge em
toda parte ao mesmo tempo; manifesta-se com intensidades variáveis, em
pontos ou polos de crescimento; propaga-se, segundo vias diferentes e com
efeitos finais variáveis, no conjunto da economia
No caso de Minas foi necessária, inclusive, a criação da região, tendo em vista
que representava espaço historicamente delimitado pelo arranjo político, mas com eixos
econômicos externos (Wirth, 1982). Seu planejamento, nesse sentido, também visava à
definitiva consolidação do escopo regional de fato, no desenvolvimento do capital e na
política republicana, conforme inclusive é muito claramente explicitado desde a
construção de Belo Horizonte e reiteradamente defendido em cada plano econômico
mineiro a partir de 1930 tendo a capital, Belo Horizonte, como cerne do
desenvolvimento regional – fundando, então, a região para além do estado politicamente
determinado.
Pensar planejamento regional, portanto, pressupõe compreender movimento de
reorganização da dinâmica do capital em âmbito específico, determinado pela
capacidade de interação e integração de seus interesses particulares em detrimento do
restante do mundo, gerando política peculiar de promoção do crescimento material e, se
possível, do desenvolvimento econômico.
Há os dilemas do planejamento, contudo. Para Mendes (1978), por exemplo, o
planejamento é constantemente inibido por fatores como falta de pessoal técnico
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capacitado, precariedade e escassez de dados estatísticos e deficiências técnicas no
planejamento existente. Este também será o argumento de Caiden e Wildavsky, para
quem o planejamento falha especialmente nos países subdesenvolvidos notadamente por
que, além da carência de recursos, há carência de mão de obra especializada, dados úteis
e capacidade governamental para a mobilização de recursos existentes.
Era, portanto, no intuito de organizar minimamente um conjunto de dados e uma
lógica de intervenção no âmbito econômico que se vislumbrava não apenas a criação da
CEPAL mas, inclusive, dos setores dedicados ao planejamento nos governos latino-
americanos. Assim, será então, conforme já se procurou salientar, a partir do
diagnóstico da situação de dependência e subdesenvolvimento que, no caso brasileiro, a
problemática do planejamento estatal será incrementada pelo debate acerca da
intervenção direta do capital público e dos limites a serem impostos pelo Estado ao
capital estrangeiro.
Se a situação de dependência – que para a análise da CEPAL definia-se
estruturalmente – e de subdesenvolvimento são questões caras à formulação de um
conceito de desenvolvimentismo, no caso brasileiro, o que caracterizaria um
desenvolvimentismo em uma região em situação de atraso relativo ao centro dinâmico
da economia nacional? Em outros termos, como é possível compreender as estratégias
nacionais desenvolvimentistas se for considerada uma economia nacional heterogênea
em que, de um modo geral, podem ser observados níveis diferenciados de transição para
uma economia industrial, notadamente com regiões menos articuladas e centrais que
outras?
Na observação de um caso específico em que se denota uma situação de atraso
relativo em relação ao centro do desenvolvimento industrial brasileiro, mas em melhor
posição se comparado ao conjunto dos estados do Norte e do Nordeste brasileiro, o que
se propõe é investigar, também, como uma relação de dependência estruturada
regionalmente pode impulsionar a definição de um modelo alternativo ao geral. Ao se
considerar o conceito de desenvolvimentismo, por exemplo, em que a chave para a
suplantação da dependência se define pela industrialização, como se pode compreender
por desenvolvimentismo mineiro uma estratégia que, ao longo de seis décadas,
aparentemente se dividiu entre tentativas industrializantes e, também, de recuperação
agrícola?
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Acreditamos que houve, em Minas, a construção de um fio condutor proto-
desenvolvimentista que, desde o princípio do século XX (mais especificamente a partir
do I CAIC de 1903), foi articulado pelas elites políticas e econômicas tradicionais em
conjunto com os grupos emergentes, especialmente com a categoria profissional do
engenheiro que via, no processo de modernização da economia mineira, meio de
inserção política e econômica, e na industrialização especialmente pautada pela
siderurgia, possibilidade de ocupar o centro decisório do processo. Mas, além disso, que
percebia no Estado e na sua capacidade de intervenção na arena econômica, sobretudo
se amparado por conhecimento tecnicamente orientado, o caminho mais bem articulado
para prover Minas Gerais de desenvolvimento econômico em superação de um atraso
que fora, ao longo das sete décadas as quais se dedica este estudo, consciente e
sistematicamente reiterado como força aglutinadora e definidora do projeto comum.
Nossa hipótese central, nesse sentido, é a da existência de um corpo técnico
amplamente articulado em torno da percepção de que a superação do atraso relativo da
economia mineira deveria ser construída essencialmente pela via da interferência da
máquina pública, sustentando esse fio condutor ao longo das décadas por meio, em um
primeiro momento, de demarcação de espaço político e inserção na esfera pública para,
a partir daí, sustentá-lo por meio da formulação de projetos de intervenção
progressivamente mais sofisticados que tanto reafirmavam o discurso do atraso da
economia mineira como reforçavam o corpo técnico como elemento determinante para
sua superação. Mas, sobretudo, nossa hipótese é a de que este corpo técnico possuía
contradições internas suficientemente fortes para reordenar as perspectivas econômicas
regionais em alguns momentos decisivos, na medida em que se consagrava como grupo
fundamental no arranjo econômico e na arena pública.
Os trabalhos que discutem o processo de modernização da economia mineira ao
longo do período aqui recortado, e com o qual dialogaremos ao longo deste texto,
concordam quase que unanimemente com a hipótese de que houve um projeto comum, e
de que ele decorre do princípio do século XX. As contradições entre esses estudos
residem, contudo, nos papéis desempenhados pelo Estado e pelo empresariado no
projeto comum das elites mineiras. Para alguns destes estudos, o poder público é o
centro determinante do processo de desenvolvimento econômico por meio, sobretudo,
de uma forte e organizada tecnocracia mineira. Para outros, o núcleo do processo é
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determinado pelo empresariado (não obstante não se diminua a força do poder público
que, em Minas, seria mesmo expandido em relação aos demais exemplos similares). E
há abordagens que apontam para a importância de um tecno-empresariado, em uma
aproximação com o conceito de anéis burocráticos de Fernando Henrique Cardoso, em
que se ajuntariam interesses do estado e do capital privado por meio da atuação do
corpo técnico. Todos eles apontam para a pertinência do corpo técnico mineiro no
processo e percebem, em dado momento, que há aquilo que um desses trabalhos
apropriadamente considerou por transferência da dianteira decisória do processo de
planejamento da economia regional. Escapa a todos eles, no entanto, o que esta tese
procura sublinhar como hipótese central: esta transferência da dianteira decisória do
processo ocorreu mais que uma vez, ela marca etapas da própria consolidação do corpo
técnico mineiro e relaciona-se com o próprio processo de formatação profissional desse
corpo técnico, ela não se produz sem fissuras e contradições relevantes, ela repercute
diferenças determinantes de formação desse corpo técnico (vinculadas à influência das
instituições de formação desses grupos) e, por fim, e essencialmente, ela interfere
decisiva, conquanto não exclusivamente, nos rumos dessa economia mineira em
transformação, na medida exata de sua importância tanto no poder público como no
setor empresarial.
Nesse sentido que escapa, muitas vezes, aos trabalhos dedicados ao tema, essa
nuance importante. Esse corpo técnico, formado primeiramente pelo engenheiro de
minas de Ouro Preto, depois pelo engenheiro civil e elétrico da UFMG e por fim pelo
economista da FACE, transitou sim pelo mundo público e pela esfera privada, atuou
tanto no Estado como na empresa, e pode sim ser considerado como um tecno-
empresariado. Mas tão importante quanto perceber esse trânsito, nos parece observar as
estratagemas construídas pelas duas categorias profissionais em questão para ampliarem
seus poderes de influência e como isso se refletiu no arranjo da máquina pública, espaço
determinante de atuação desse grupo, refletindo, por fim, na própria dinâmica do
processo de desenvolvimento econômico regional.
Para tanto, este trabalho trabalha com três eixos, distintos e complementares, que
norteiam a construção de cada uma das três partes que compõem esta tese. O primeiro
eixo relaciona-se ao momento de fundação desse fio condutor proto-desenvolvimentista,
destacando-se o papel da Escola de Minas de Ouro Preto como fator determinante na
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orientação do corpo técnico emergente e de João Pinheiro como força de sistematização,
no mundo público, dessa corrente. O segundo eixo corresponde à influência que esse fio
condutor terá na construção de um discurso pautado pela eminência do atraso relativo
da economia regional, da decadência e do empobrecimento mineiro e da necessidade de
superá-lo por meio notadamente do planejamento e da intervenção do poder público,
especialmente definidos pela orientação predominantemente técnica. O terceiro e último
eixo está determinado pelas estratégias de ocupação da máquina pública, pela
consolidação da arena específica de atuação essencialmente técnica no intuito de
efetivar os projetos comuns e, por fim, no papel da disputa intra-elite técnica como
elemento de redefinição da agenda econômica regional.
Para abordar o processo resumido brevemente nas linhas anteriores, dividir-se-á
este trabalho em três partes e em quinze capítulos. A primeira parte, relativa ao primeiro
eixo acima abordado, discorre sobre a relevância da Escola de Minas de Ouro Preto na
formação da categoria profissional do engenheiro em Minas Gerais e na construção de
uma burocracia adepta do planejamento e do dirigismo econômico (Capítulo I), a
importância especialmente do governo de João Pinheiro da Silva e do I Congresso
Agrícola, Industrial e Comercial de 1903 como lugares de memória do
desenvolvimento econômico e da tecnoburocracia mineira (Capítulos II; III e IV) e a
disputa no entorno da empresa Itabira Iron Ore Co. como exemplo de atuação deste
corpo técnico engajado (Capítulo V).
A segunda parte faz um sumário dos governos estaduais entre 1933 e 1969,
apresentando as principais características econômicas e políticas de cada período,
buscando apresentar as principais diferenças mas, sobretudo, sugerir as semelhanças
estruturais que revelam, no limite, um pouco mais do grande acordo intra-elite mineira
na busca da organização do desenvolvimento econômico regional (Capítulo VI).
Também procura reconstruir a história dos documentos dedicados ao planejamento
econômico regional, apresentando aqueles que configuram um mesmo fio condutor que
articula e reúne as fases distintas da história regional no período em tela, abordando
como se filiam ao lugar de memória representado por João Pinheiro e pelo I CAIC e
como constroem suas argumentações essencialmente pautadas pela crença no quadro de
espoliação de Minas pelos estados e regiões vizinhas, e pelo atraso relativo e inexorável
da economia mineira (Capítulos VII; VIII; IX; X e XI).
A terceira e última parte se propõe a observar com atenção os mecanismos de
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consolidação da elite tecno-burocrática regional, abordando conceitualmente a categoria
em evidência e reconstruindo historicamente sua formação (Capítulo XII), a
contribuição de suas instituições de formação na formulação de seus mecanismos de
atuação no meio público, notadamente no que tange ao processo de planejamento e
intervenção da economia mineira, além de buscar também observar os mecanismos de
construção institucional da política de planejamento, reconstruindo o percurso político e
legislativo de alguns órgãos e secretarias essenciais ao processo abordado (Capítulo
XIII) e observar sua disputa pela dianteira do processo decisório de direção do
desenvolvimento regional como mecanismo determinante do processo em destaque
(Capítulo XIV).
Cabe, por fim, um relato sobre o trabalho com as fontes documentais que
embasam este trabalho. Colimadas ao longo de todo o processo, representam conjunto
heterogêneo e diversificado de documentos, que se encontram arrolados ao final desse
volume e sobre os quais, no geral, apresentam-se alguns comentários.
Na primeira parte deste trabalho, dedicada aos fundamentos do projeto regional
de avaliação, planejamento e intervenção no quadro econômico regional, notadamente
relacionado ao papel da Escola de Minas no processo, foram fundamentais os Relatórios
de Presidente de Província de Minas Gerais, as Falas à Assembléia Legislativa de Minas
Gerais e, na república, as Mensagens de Presidente do Estado de Minas Gerais. Delas
foi possível depreender o encaminhamento oficial das políticas regionais, o quadro
apresentado e registrado pela força política do momento e perceber os temas e
perspectivas que se preferia sublinhar em detrimento de outros, além de apresentarem
dados gerais sobre o crescimento econômico, notícia sobre andamento de obras,
execução de orçamento e afins, embora sejam, ao longo de todo o período, documentos
oficiais e laudatórios da ação do governante de turno, de forma que se não compromete
integralmente sua validade para acompanhar os processos, impõe cuidado em seu trato.
Também foram úteis os documentos publicados por Claude Gorceix, desde a fundação
da Escola de Minas de Ouro Preto. Reproduzidos pela Revista da Escola de Minas ou
nas próprias Mensagens e Falas do Executivo ao Legislativo, são peças relevantes para a
compreensão do papel do professor tanto na instituição como na economia mineira do
período, permitindo também perceber o nível de relação estabelecido com parte da elite
política regional e sua capacidade de pautá-la.
Na segunda parte deste texto, os principais documentos foram os planos de
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desenvolvimento econômico apresentados ao longo dos capítulos, e neles criticados.
Cumpre ressaltar que, dado o interesse deste estudo em perceber o discurso
desenvolvimentista regional e sua articulação por meio do corpo tecnoburocrático
mineiro, estes documentos foram avaliados sobretudo pela força do discurso que
pretendiam impor como interpretação ideal e decisiva do quadro econômico coevo, não
obstante as contradições dos grupos proponentes. Eles nos serviram, principalmente,
como eixos por meio dos quais conseguimos perceber a formação do argumento do
corpo técnico regional em favor da intervenção e do planejamento econômico em
situação que se desenhava, documento após documento, de forma progressivamente
mais difícil. Se eles nos permitem perceber essa construção, são incapazes de nos falar
sobre a efetivação de suas propostas. Isso foi possível tangencialmente na terceira parte
deste trabalho, mas também pelos próprios documentos – notadamente pelo último
deles, o Diagnóstico da Economia Mineira, que elaborou justamente uma reflexão sobre
os dados econômicos regionais, inclusive sob a perspectiva da incapacidade, das
tentativas anteriores, de alcançar êxito nos processos em que influíram.
Por fim, na terceira parte da tese, os documentos estão relacionados à
formatação da elite técnica regional e suas relações com outros grupos da elite mineira,
além dos próprios marcos de sua disputa interna. Foram relevantes as Mensagens do
Governador de Minas Gerais à Assembléia Legislativa, de Benedito Valadares a Israel
Pinheiro (cuja validade e limite são os mesmos das Mensagens de Presidente de
Província, anteriormente relatado); as revistas de associações de classe e de categoria,
por permitirem dimensionar o foco e a grandeza dos problemas recortados pelos grupos
em questão, bem como para perceber seus discursos e construção argumentativa; o
conjunto de leis, decretos e decretos-lei que, a partir do governo do Estado, foram
utilizadas para normatizar o espaço de inserção do corpo técnico à máquina pública
(documento importante por permitir aquilatar o crescimento dessa normatização e dessa
emergência, conquanto limitado para observar seus resultados práticos e sua real
aplicação e efetivação); os discursos oficiais de várias personagens tratadas no trabalho,
que permitem perceber o tom, o tema e o cerne das preocupações do grupo em tela, não
obstante escondam bastidores importantes do processo, evidentemente; matérias de
jornais que, identificados mais com um ou outro grupo, conforme se procurou apontar
quando possível, tendiam a repercutir boa parte das disputas em questão, não obstante
sempre cumprindo agenda de interesses do grupo ao qual se filiava. Ao cabo, teve
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grande importância o conjunto de entrevistas que, por meio da metodologia da História
Oral, se produziu ao longo do tempo com personagens relevantes do processo em tela,
notadamente entrevistas realizadas no âmbito da história da CEMIG, do BDMG, pelo
CPDOC/FGV, ou mesmo algumas que realizamos no âmbito de projeto ligado à
reconstrução histórica do Diagnóstico da Economia Mineira, filiado ao
CEDEPLAR/UFMG e coordenado pelo professor Marcelo Magalhães Godoy, do qual
participamos como colaboradores. Mesmo não diretamente explicitamente citadas, estas
entrevistas foram determinantes por permitirem esclarecimento sobre questões pontuais
e, notadamente, para tentar alcançar, mesmo que tangencialmente, a ambiência política
e econômica do período em tela.
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Parte I – Elementos formativos do desenvolvimentismo mineiro12
A existência de um elemento mobilizador da elite mineira no entorno de um
projeto regional de desenvolvimento econômico, visando a suplantar situação
interpretada como de atraso relativo, é noção bastante difundida entre os trabalhos que
se dedicam à observação tanto da construção econômica regional, e notadamente de seu
pensamento, como do edifício político que sustenta a mineiridade. De acordo com essa
perspectiva, desde o início do século XX um conjunto de fatores econômicos, políticos
e culturais teriam sido mobilizados, de forma difusa conquanto eficiente, especialmente
pelas classes conservadoras de Minas, procurando engendrar percepção de que se
poderia arregimentar estratégia pactuada para a suplantação do atraso econômico,
pensada politicamente, e tendo o poder público como principal fiador e articulador
dessa prática.
12 Cumpre esclarecer que, ao longo do texto, na medida em que se citarem as mensagens remetidas pelo
poder executivo mineiro ao legislativo de Minas Gerais, optar-se-á pela utilização de sigla, abreviando a
leitura. Considerando-se que até 1891 essas mensagens se dividiam em Relatórios e Falas e que a partir
de 1892 são chamadas de Mensagens, e que serão utilizados excertos destes três tipos de documento, a
citação será feita da seguinte forma (sempre antecedida do autor e seguida do ano do documento):
RPPMG (Relatório do Presidente de Província de Minas Gerais); FPPMG (Fala do Presidente de
Província de Minas Gerais) e; MPEMG (Mensagem do Presidente do Estado de Minas Gerais).
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Minas Gerais teria, nesse sentido, configurada a situação de desequilíbrio
regional que se estabelece sobretudo a partir da consolidação da industrialização no
Brasil, enfrentado perda de substância econômica que, no limite, a colocava em delicada
situação material e política quando do advento republicano. Ao cabo, essa situação
pontual teria iniciado amplo processo, politicamente acordado, dedicado ao
desenvolvimento econômico regional. Seria uma espécie de desenvolvimentismo
mineiro, tomando por correta a definição de Otávio Soares Dulci (1999), que defende
ter havido, em Minas, esforço de suplantação de quadro econômico recessivo por meio
de pacto entre as elites políticas, econômicas e técnicas determinado pela premência de
um poder público que assumiu, regionalmente, o papel de organizador e fomentador da
arena econômica, com meta minimamente estabelecida no sentido do recobramento da
economia regional.
Não obstante se considere a necessidade de se manter cuidado em qualificar por
desenvolvimentismo uma política econômica fundada na passagem do século XIX para
o século XX sem um claro e articulado discurso industrializante (o que se pretende
abordado na discussão apresentada na introdução deste trabalho), parece válido
interpretar a agenda emergente em Minas Gerais no período por meio dessa chave
explicativa. Há, no período em tela, alguns elementos que se conjugam essencialmente
configurados no entorno de três grandes eixos.
O primeiro, a ideia da modernização produtiva. Originalmente vinculada à
questão agrícola – mas nunca exclusivamente a ela –, a noção da modernização
(compreendida coetaneamente pelo grupo aqui em evidência como introdução de
conhecimentos técnicos e maquinário tecnologicamente avançado na produção)
permeou de forma capital o pensamento emergente em Minas no período. O apuro
técnico, o desenvolvimento de novo e moderno maquinário bem como de novas
tecnologias de produção, além da estruturação e organização de seu ensino e difusão,
são elementos constantes nos debates sobre a produção agrícola, mas também sobre a
extração mineral, sobre os transportes voltados ao sistema produtivo ou mesmo à
implantação da grande siderurgia. Em segundo lugar, a ideia de defesa do interesse
nacional ou regional, sempre em relação a uma suposta espoliação estrangeira.
Especialmente no tocante à questão minero-siderúrgica, este foi tema que mobilizou de
forma vertical o debate econômico regional. E, por fim, e articulando todos os demais
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eixos, o papel do Estado como ponto de convergência e intervenção, como elemento de
equilíbrio e atuação no arranjo econômico regional, configurado como determinante por
que percebido como agente externo, imparcial, tecnicamente orientado.
É em nome dessa agenda que surgem, desde 1903 e do I Congresso Agrícola,
Industrial e Comercial, as avaliações que regionalmente abordam os programas
administrativos dedicados ao fomento econômico do Estado e que tratam de seu
desenvolvimento econômico.13 Mas é esta mesma agenda que está, desde o último
quartel do século XIX, sendo gestada por meio sobretudo de uma elite técnica ligada,
institucional e intelectualmente, à Escola de Minas de Ouro Preto.
A hipótese que estrutura o fio condutor desta primeira parte desta tese é,
portanto, a de que houve um desenvolvimentismo mineiro originado no período, que
preferimos classificar por proto-desenvolvimentismo (por ser ainda elemento em
formação, não acabado). Este proto-desenvolvimentismo mineiro caracteriza-se pelo
empenho na modernização produtiva, na defesa dos interesses nacionais (ou regionais)
em relação a uma suposta espoliação proveniente de forças externas e pelo papel
ampliado do Estado, como articulador, planejador e financiador dessa agenda. Mas,
sobretudo, que sua origem está íntima e determinantemente relacionada ao pensamento