Trabalho e política no cotidiano da autogestão: o caso da rede Justa Trama por Cris Fernández Andrada - Versão HTML
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
Cris Fernández Andrada
Trabalho e política no cotidiano da autogestão:
o caso da rede Justa Trama
São Paulo
2013
i
Cris Fernández Andrada
Trabalho e política no cotidiano da autogestão:
o caso da rede Justa Trama
(versão original)
Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo como parte dos requisitos
para obtenção do grau de Doutora em Psicologia.
Área de Concentração: Psicologia Social
Orientadora: Prof.a Dra. Leny Sato
São Paulo
2013
ii
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E A DIVULGAÇÃO, TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA
FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogação na publicação
Biblioteca Dante Moreira Leite
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Andrada, Cris Fernández.
Trabalho e política no cotidiano da autogestão: o caso da rede Justa
Trama / Cris Fernández Andrada; orientadora Leny Sato. -- São Paulo,
2013.
217 f.
Tese (Doutorado – Programa de Pós-Graduação em Psicologia.
Área de Concentração: Psicologia Social) – Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo.
1. Trabalho 2. Política 3. Cotidiano 4. Autogestão 5. Psicologia
Social 6. Etnografia (Método de pesquisa) I. Título.
HD4831
iii
Trabalho e política no cotidiano da autogestão: o caso da rede Justa Trama
Cris Fernández Andrada
Banca Examinadora
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iv
para
meus avós, Juan Manuel e Ercília ( in memoriam),
meu filho, Ernesto,
e às trabalhadoras da Economia Solidária.
v
Agradecimentos
Este trabalho tem como tema uma experiência coletiva, de encontro e de partilhas.
De certa forma, também ele é alvenaria feita por muitas mãos. Várias pessoas
trabalharam ou colaboraram com ele, direta ou indiretamente.
É uma grande alegria perceber a presença de cada um de vocês nele e sentir que, de
fato, ele só faz sentido no plural. A cada um de vocês, minha mais viva gratidão!
à Justa Trama, a cada empreendimento e pessoa que a compõe, e que me receberam, de
modo farto e sincero, em suas vidas, trabalhos e casas. Não raramente perguntava-me como
podiam ser tão generosos comigo. Pelas contribuições à pesquisa, na forma de inesquecíveis
conversas ou entrevistas, agradeço especialmente a Rogaciano, Chagas, Lino, Chiquinho,
Dalvani, José Ribeiro, Idalina, Márcia, Ismael, Terezinha e Nelsa. Também agradeço as
contribuições de Denise Laitano e de Letícia Balester.
à Nelsa, Terezinha, Isaurina e Idalina. As expressões de amizade de vocês, em momentos de
alegria, cansaço ou aflição em campo, serão eternas companheiras da memória.
à professora e amiga Leny Sato, pela orientação dedicada e vivaz, deste e de outros trabalhos.
E pelo tanto vivido e aprendido contigo, em tantos anos de convívio. Sobretudo agradeço, por
oferecer a nós, seus alunos e orientandos, companhia, confiança e liberdade - liga
especialmente rica no cultivo do ofício de pesquisar.
aos professores Maria Helena Souza Patto e Peter Kevin Spink, pela leitura generosa e pelas
preciosas contribuições ao trabalho, especialmente no Exame de Qualificação. As reflexões,
por vocês estimuladas, serviram-me de guia dos trabalhos, e de companhia também.
aos professores Paul Singer e Sylvia Leser de Mello, mestres queridos, que tanto ensinam, e
que demonstram, por meio das linhas de seus textos e de suas práticas militantes, que ainda é
possível “restituir ao trabalho o seu sentido maior”, como uma vez disse a Professora Sylvia.
aos professores José Guilherme Cantor Magnani, Marilena Chauí, Leny Sato, Marilene
Proença Rebello de Souza e Marcelo Afonso Ribeiro, pelos aprendizados propiciados nas
disciplinas cursadas, pelas importantes sugestões de bibliografia, entre outras contribuições.
ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social (USP), pelos apoios recebidos, inclusive
o custeio de grande parte das despesas de campo.
À equipe da Secretaria do Departamento (PST). Em especial, agradeço a Nalva Gil, por seus
inestimáveis apoios, socorros e estendidas de mão.
À CAPES, pela concessão da bolsa de estudos, que permitiu a realização deste trabalho.
vi
À Andréa Ferrara, pelo cuidadoso trabalho de transcrição das entrevistas.
A Rafaela Crespo e Eduardo Secchi, pela valiosa ajuda com o abstract. O incentivo e os
apoios de vocês, especialmente na reta final do trabalho, foram muito importantes.
aos colegas do Grupo de Orientandos e do Grupo de Estudos sobre Trabalho e Cotidiano,
pelo tanto que aprendemos e nos divertimos juntos. Em especial, agradeço à Fabiana Jardim,
Fábio de Oliveira e Juliana Braz, pelos apoios e referências bibliográficas preciosas.
às companheiras e companheiros do movimento da Economia Solidária, trabalhadores e
militantes, pelo tanto vivido e partilhado, desde 1999, em diversos espaços, fóruns e arenas.
aos representantes das cooperativas e instituições que tão bem me receberam nas viagens de
campo: UNISOL Brasil, ESPLAR, CEPESI. À Red del Sur, FCPU, Coopima, Cooperativas
Ahora se Puede, Caminos, Camino Natural e Factor Común - de Uruguay. À CONOSUD,
SETEM, Intermón-Oxfam e Fundació Ateneo de Sant Roc - da Espanha. Nessa viagem,
agradeço especialmente os apoios de Gabriel Abascal e Salvador Goya (CONOSUD), além da
generosa acolhida do casal Juanje e Ana, com quem tanto aprendi.
aos amigos e familiares, pelos incontáveis amparos, na forma de cartas, abraços, telefonemas,
livros, visitas. Especialmente agradeço a Alcione Silva, Daniela Catherall, Laura Fernández,
Fernando Carpani, Eduardo Fernández, Mônica Kumimoto, Mariluz Gómez, Lilia Mary,
Anibal Esteves, Rafaela Crespo, Tatiana Neves, Allan Dias, Fábio de Oliveira, Jaqueline
Kalmus, Juliana Breschigliari, Maria Luísa (Malu) Schmidt, Liana Soares, Fernando Almeida,
Lia Schucman, Valéria Santos e Márcia Ávila.
a meus pais, Cristina e Eduardo, e a meus avós, Juan Manuel e Ercília ( in memoriam). Pelos
incentivos e pelo essencial - aquilo que foge às palavras, mas cabe solto num olhar.
A Egeu e a Ernesto, pelas melhores horas. E pelas esperanças que gostamos de cuidar, ver
crescer e colher, todos os dias.
vii
Perdón por irme tan lejos, cuando la historia aún no se llamaba así, allá en el remoto
tiempo de las cavernas: ¿cómo se las arreglaron para sobrevivir aquellos indefensos,
inútiles, desamparados abuelos de la humanidad? Quizá sobrevivieron, contra toda
evidencia, porque fueron capaces de compartir la comida y supieron defenderse
juntos. Y pasaron los años, miles y miles de años, y a la vista está que el mundo raras
veces recuerda esa lección de sentido común, la más elemental de todas y la que más
falta nos hace. […] El punto de partida de una cultura solidaria está en las bocas de
quienes hacen cultura sin saber que la hacen, anónimos conquistadores de los soles
que las noches esconden, y ellos, y ellas, son también quienes hacen historia sin saber
que la hacen. Porque la cultura, cuando es verdadera, crece desde el pie, como alguna
vez cantó Alfredo Zitarrosa, y desde el pie crece la historia. […]
A primera vista, el mundo parece una multitud de soledades amuchadas, todos contra
todos, sálvese quien pueda; pero el sentido común, el sentido comunitario, es un
bichito duro de matar. La esperanza todavía tiene quien la espera, alentada por las
voces que resuenan desde nuestro origen común y nuestros asombrosos espacios de
encuentro. Yo no conozco dicha más alta que la alegría de reconocerme en los demás.
Quizás ésa es, para mí, la única inmortalidad digna de fe. Reconocerme en los demás,
reconocerme en mi patria y en mi tiempo, y también reconocerme en mujeres y
hombres que son compatriotas míos, nacidos en otras tierras, y reconocerme en
mujeres y hombres que son contemporáneos míos, vividos en otros tiempos. Los
mapas del alma no tienen fronteras.
Eduardo Galeano
viii
RESUMO
Andrada, C. F. (2013). Trabalho e política no cotidiano da autogestão: o caso da rede Justa
Trama. Tese de Doutorado. Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São
Paulo.
O crescente desenvolvimento da Economia Solidária no Brasil, disparado pela Crise do
Emprego dos anos 90, exigiu de muitos trabalhadores a dedicação a ações econômicas e
políticas mais amplas. Por meio da interação com diversos atores e instituições, passaram a
criar e a modificar processos, nos modos de gerir o trabalho, de comercializar produtos, de
obter crédito, de praticar intercooperação, no ânimo resistente de gerar trabalho e renda e de
organizar “outra economia”. Esta pesquisa propõe compreender uma dessas experiências, a
Justa Trama, rede autogestionária que reúne cerca de seiscentos trabalhadores, de sete
empreendimentos de todas as regiões do país. Abarca grande parte dos elos da cadeia
produtiva têxtil, do plantio do algodão agroecológico à confecção final. A pesquisa objetivou
identificar e descrever as principais relações entre trabalho e política no cotidiano desses
trabalhadores . Como referencial metodológico, adotou a etnografia, e como ferramentas, a
observação etnográfica combinada a entrevistas prolongadas. Um extenso trabalho de campo
permitiu acompanhar atividades políticas da rede entre 2010 e 2012, em onze incursões.
Como resultados, apresenta casos que ilustram como os trabalhadores conciliam demandas do
trabalho e da política, e assim constroem e sustentam a rede no cotidiano; que alimentos e
entraves encontram e que recursos têm desenvolvido para operar com eles. As entrevistas
fundamentaram a exposição de narrativas sobre o processo histórico de organização da rede,
outro importante resultado. Os principais apoios teóricos da pesquisa são as obras de Agnes
Heller sobre cotidiano e história. Concluiu-se que os espaços políticos da rede não são os elos
em separado, mas os encontros onde estão representados e ativos todos os elos. Ali os
trabalhadores comungam de uma identidade coletiva e dedicam-se ao desenvolvimento do
empreendimento que criaram. As práticas cotidianas da rede revelaram uma tensão dialética
constante. Significa viver, enquanto trabalhadores, os efeitos das contradições do modo de
produção capitalista mas também construir recursos para esquivar-se deles e, muitas vezes,
agir politicamente no sentido de criar outro paradigma econômico, não sem dificuldades. A
rede Justa Trama revelou-se dialeticamente como organização econômica, cujo fim é gerar
renda, e como organização política, de resistência ao modo de produção capitalista, por meio
de práticas apoiadas em valores humano-genéricos. Concluiu-se também que a política no
cotidiano da autogestão da rede pode ser entendida como inerente ao trabalho. E o trabalho,
por sua vez, pode ser tomado como objeto da atividade política do grupo de trabalhadores.
PALAVRAS-CHAVE: 1. Trabalho 2. Política 3. Cotidiano 4. Autogestão 5. Psicologia
Social 6. Etnografia (Método de Pesquisa) I. Título.
ix
ABSTRACT
Andrada, C. F. (2013). Work and politics in everyday life of self-management: the case of the
Justa Trama network. Doctoral Thesis. Instituto de Psicologia, Universidade de São
Paulo, São Paulo.
The increasing development of Solidarity Economy in Brazil, triggered by the Employment
Crisis of the 1990s, demanded from many workers dedication to more comprehensive
economic actions and policies. Through interaction with various actors and institutions, they
began to create and modify processes, in ways to manage the work, to trade products, to
obtain credit, to practice intercooperation, in the tough-mind towards generating jobs and
income and to organize "other economy ". This research proposes the understanding one of
these experiences, the Justa Trama, a self-managed network that brings together about six
hundred workers of seven economic enterprises from all regions of the country. It
encompasses most of the links in the textile production chain, from agroecological cotton
plantation to the final making. The research aimed to identify and describe the main
relationships between work and politics in the daily lives of these workers. Ethnography was
adopted as a methodological framework while ethnographic observation combined with long-
lasting interviews was used as tools. An extensive fieldwork enabled to monitor the political
activities of the network in eleven surveys between 2010 and 2012. As a result, it presents
cases that illustrate how workers reconcile the demands of work and politics, and thus builds
and maintain the network in everyday life; and what inputs and barriers they face and what
resources they have developed to deal with them. The interviews, in turn, justified the
exhibition of the historical process of organizing the network, another important result. The
works of Agnes Heller about daily life and history are the main theoretical framework of this
research. It was concluded that the political spaces of the network are not separate links, but
the join where all links are active and represented. There, workers share a collective identity
and are dedicated to developing the enterprise they created. The everyday practices of the
network revealed a constant dialectical tension. It means living, as workers, the effects of the
contradictions of the capitalist mode of production but also, to build resources to evade them
and often act politically to create another economic paradigm, not without difficulties. The
Justa Trama network proved dialectically as an economic organization, whose purpose is to
generate income, and as a political organization, resistance to the capitalist mode of
production, by means of practices sustained in human-generic values. It was also concluded
that politics in the daily self-management of the network can be regarded as inherent to the
work. And the work, in turn, can be taken as an object of political activity of the group of
workers.
KEYWORDS: 1. Work 2. Politics 3. Everyday Life 4. Self-management 5. Social
Psychology 6. Ethnography (Research Method) I. Title.
x
LISTA DE SIGLAS
ABPES
- Associação Brasileira de Pesquisadores de Economia Solidária
ADEC
- Associação de Desenvolvimento Educacional e Cultural de Tauá
ADS
- Agência de Desenvolvimento Solidário
ANTEAG
- Associação Nacional dos Trabalhadores e Empresas de Autogestão e Participação Acionária
CEPESI
- Centro Público de Economia Solidária de Itajaí
CGIL
- Confederazione Generale Italiana del Lavoro
CONAES
- Conferência Nacional da Economia Solidária
CONOSUD - Associació de Coperació Internacional Nord-Sud
CPAT
- Centro de Psicologia Aplicada ao Trabalho
CPS
- Cadeia de Produção Solidária
CUT
- Central Única dos Trabalhadores
DIEESE
- Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos
EES
- Empreendimento Econômico Solidário
FBB
- Fundação Banco do Brasil
FBES
- Fórum Brasileiro de Economia Solidária
FCPU
- Federación de Cooperativas de Producción del Uruguay
FLO
- Fairtrade Labelling Organizations
FSM
- Fórum Social Mundial
FUCVAM
- Federación Uruguaya de Cooperativas de Viviendas por Ayuda Mutua
GAM
- Grupo de Agroecologia e Mercado
IBASE
- Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas
IBD
- Instituto Bio Dinâmico
INCRA
- Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
ISCOS
- Istituto Sindacale per la Cooperazione allo Sviluppo
ITCP
- Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares
MST
- Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
MTE
- Ministério do Trabalho e Emprego
NAPES
- Núcleo de Ação e Pesquisa em Economia Solidária
OP
- Orçamento Participativo
PET
- politereftalato de etileno
SEBRAE
- Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas
SENAES
- Secretaria Nacional da Economia Solidária
SESAMPE
- Secretaria da Economia Solidária e Apoio à Micro e Pequena Empresa
SIES
- Sistema Integrado de Informações em Economia Solidária
SNCJS
- Sistema Nacional de Comércio Justo e Solidário
Unisol Brasil - União e Solidariedade das Cooperativas e Empreendimentos de Economia Social do Brasil
xi
SUMÁRIO
Como um vitral: os antecentes da pesquisa .............................................................................. 1
I.
Circunscrições: o contexto, o tema, os campos ................................................................ 5
1.
Autogestão como modo de trabalho e de vida social ....................................................... 7
2.
Trabalho e política no cotidiano de uma cadeia produtiva autogerida ........................... 10
3.
Justa Trama: breve apresentação da rede ....................................................................... 16
II. Os meios no centro: o método e o trabalho de campo .................................................... 35
1.
Psicologia Social e método etnográfico: nortes semelhantes ......................................... 36
2.
Os trabalhos, as viagens e os múltiplos deslocamentos ................................................. 48
3.
Quando o campo é plural: um aparte sobre etnografia multissituada............................. 61
III. Entre mapas, retratos e diários: o cotidiano político da rede .......................................... 66
Cotidiano como lugar de História: um convite à leitura dos textos etnográficos ................... 69
1.
Diário de Tauá: Onde a Justa Trama acontece? O cotidiano dos elos e da cadeia ........ 80
2.
Diário de Fortaleza: o encontro com a rede e com seus fenômenos ............................. 93
O campo exige revisões ........................................................................................................ 106
3.
Notas de Pará de Minas: diferenças e desigualdades entre os elos ............................. 108
4.
Notas de Montevideo: Justa Trama também tece história ............................................ 112
5.
Notas de Porto Velho: o trabalho como objeto da política........................................... 124
6.
Notas de Badalona: uma experiência de intercâmbio político ..................................... 129
7.
Notas de Itajaí: entre o vigor da política e a fragilidade da economia ......................... 135
IV. Valores, parcerias e outros marcos do percurso: sobre a história da rede .................... 140
1.
A Justa Trama pelas lentes de seus protagonistas ........................................................ 143
2.
Memórias do sonho, dos primeiros encontros e dificuldades ....................................... 144
3.
As primeiras ações em rede .......................................................................................... 150
4.
Entre o sonho e a loucura: as primeiras reações ao projeto .......................................... 152
5.
Marcos distintivos do percurso ..................................................................................... 154
6.
Pactuando princípios e modos de fazer ........................................................................ 160
7.
Modos de fazer – dificuldades e recursos para enfrentá-las no cotidiano .................... 162
8.
Sobre as lideranças da rede ........................................................................................... 165
9.
As relações de parceria: a importância da política externa à rede ................................ 171
10. O futuro como parte da história: atuais necessidades, novos sonhos ........................... 173
V. Trabalho e política no cotidiano da autogestão da rede................................................ 176
1.
Da dialética desta história: resistência e transformação ............................................... 180
2.
Trabalho e Política: tramas indissociáveis da autogestão ............................................. 196
Considerações Finais ............................................................................................................ 206
Referências Bibliográficas .................................................................................................... 210
1
Como um vitral: os antecentes da pesquisa
2
A imagem de um grande vitral surgiu ao pensar como apresentar esta pesquisa. Como
um vitral, ela é resultado da reunião de partes distintas e ao mesmo tempo dialógicas.
Ainda na graduação, por intermédio da Profa. Leny Sato1 e da equipe do CPAT2,
escolhi trabalhar na perspectiva da Psicologia Social do Trabalho, campo de pesquisa e de
intervenção que toma o trabalho como objeto das lentes psicossociais, sempre a partir de seus
habitantes, os trabalhadores. Em 1999, fiz parte de um grupo de alunos que, sob orientação de
Leny Sato, propôs conhecer a recém-lançada Incubadora Tecnológica de Cooperativas
Populares (ITCP-USP), como parte de um estágio curricular. Passado o estágio, permaneci ali
como formadora em cooperativismo, participando de instigantes experiências de autogestão: a
dos trabalhadores organizados em cooperativas, e a da própria equipe da ITCP.
Foi na ITCP-USP que tive os primeiros contatos com o grande-campo deste estudo, a
Economia Solidária. Ali também aprendemos muito sobre trabalho, sobre política e sobre as
relações entre estas dimensões da vida social3. O interesse por estas relações, no cerne da
autogestão, tema desta pesquisa, nasceu no solo da ITCP-USP, especialmente nas reuniões
com o grupo de artesãs da Itacooperarte. Entre outras coisas, as trabalhadoras nos ensinaram
que um trabalho de bases autogestionárias pode inspirar mudanças nas relações vividas em
outras esferas da vida social, como no âmbito da família ou da comunidade (Andrada, 2006).
Outra parte do vitral das influências desta pesquisa foi a Verso Cooperativa, fundada
em 2001. Éramos 26 psicólogos, a princípio, muitos de nós, também envolvidos com a
proposta do cooperativismo autogestionário. Durante anos experimentamos em nosso trabalho
os mesmos princípios de que tratávamos nas ações da ITCP-USP, com toda sorte de
exigências e delicadezas, próprias do cotidiano da autogestão, pouco visíveis à distância4.
Resultado desses encontros, esta pesquisa é, sobretudo, desdobramento e continuidade
de investigação anterior, mestrado defendido em 2005, neste Programa, também sob
orientação de Leny Sato. Tratou-se de um estudo de caso, desenvolvido junto às costureiras
1 Leny Sato é Professora Titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e orientadora desta
pesquisa. Sobre os efeitos de suas aulas à época, escrevi em 2005: “Em pequenos círculos, falávamos inquietos
de questões como a centralidade do trabalho, de seus diferentes modos de organização e das possíveis
repercussões que a vivência de cada um deles poderiam ocasionar aos trabalhadores. E as angústias cresciam
mais quando tratávamos das mazelas do desemprego crescente e do aumento da freqüência e das formas de
precarização das condições de trabalho das pessoas ainda empregadas. Pensávamos também em como poderia
ser uma experiência de trabalho que salvaguardasse princípios humanistas bastante simples, porém, a nossos
olhos fundamentais, como igualdade, autonomia e pertencimento. [...] recordo ter ouvido pela primeira vez os
nomes economia solidária, cooperativismo, autogestão” (Andrada, 2009a, pp. 19-20).
2 CPAT - Centro de Psicologia Aplicada ao Trabalho, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
3 Neste percurso, foram fundamentais as orientações práticas e teóricas do Prof. Paul Singer, tanto no interior da
própria ITCP, quanto por meio do grupo de estudos que coordenava à época.
3
da Cooperativa Univens, de Porto Alegre, que propôs compreender as principais repercussões
psicossociais da autogestão. De fato, identificamos uma série de mudanças significativas na
vida das trabalhadoras, disparadas pela vivência cotidiana da autogestão. Mas outra questão,
imbricada à primeira, também nos cativou. As cooperadas da Univens revelaram, aos poucos,
relações complexas entre trabalho e política no cotidiano da experiência de autogestão.
Nas ruas do bairro por elas transformado, na capela por elas erigida, nas reuniões do
Orçamento Participativo (OP), sítio simbólico da formação política do grupo, elas mostraram,
entre outras coisas, que aquilo que reluzia como repercussão da autogestão na cooperativa
poderia ser seu pressuposto. Por exemplo, em vez de ser incubada, a cooperativa, já
legalizada, „incubou a incubadora‟, ao pleiteá-la junto ao Orçamento Participativo. Outra
conclusão importante deste estudo foi apontar como a paulatina segurança conquistada pelas
cooperadas na égide do trabalho lhes permitiu alcançar mais liberdade para ações políticas em
horizontes mais amplos, nas terras do município, do estado e até em âmbito nacional.
Exemplo disto foi a proposição, por parte destas trabalhadoras, junto de outros companheiros,
da rede Justa Trama – a primeira cadeia produtiva autogerida de algodão agroecológico do
país, notável realidade hoje, que reúne cerca de 600 famílias em seis estados brasileiros.
Os dias vividos em companhia das cooperadas da Univens e a fortuna de ter visto
nascer a idéia desta rede, junto das demais experiências citadas, representam as principais
influências da presente pesquisa. Mas é preciso dizer ainda que o mundo do trabalho atraíra
cedo minha atenção, por razões biográficas que também compõem o quadro de motivações
deste estudo. Nasci numa família operária de Montevideo, nos anos 70, época em que a
política, e logo depois o trabalho, foram interditados pela ditadura militar. Interdições
violentas, de resultados devastadores, empurraram para o exílio (político e/ou econômico)
milhares de uruguaios. Estar em casa era ouvir falar muito de trabalho e de política, ainda que
“entre dentes” . Talvez pela conjuntura, talvez por um traço cultural dos uruguaios - la
nostalgia - recordava-se amiúde como era viver e trabalhar em outras épocas, épocas de
liberdade e de democracia, épocas das juventudes dos meus avós com quem convivi muito.
Seus cuentos de trabajo estavam entre os preferidos. Nessas narrativas, o trabalho não surgia
só, mas envolto em histórias. Hoje é possível dizer que tratavam de modos de viver o
trabalho, de sofrê-lo, mas também de ocupá-lo, dentro dos limites que toda resistência
4A Verso esteve ativa até 2010. Nestes dez anos, o grupo, suas propostas e ações viveram inúmeras fases e
mudanças. Algo, no entanto, sempre esteve presente: a satisfação de viver e pensar o trabalho coletivamente,
entre amigos. Revelar a todos nós esta possibilidade e dar-nos a senti-la foi, para mim, sua maior graça e legado.
4
conhece. Falava-se de trabalho com dor e também com entusiasmo; com pesar e com afeto.
Falava-se de trabalho, enfim, como se fala da própria vida 5.
Anos depois, grosso modo, escolho fazer isso: ouvir trabalhadoras e trabalhadores