Um prato bonito com as beiradas quebradas: a produção do espaço na Rocinha (RJ) por Luciano Ximenes Aragão - Versão HTML
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIËNCIAS HUMANAS
LUCIANO XIMENES ARAGÃO
Um prato bonito com as beiradas quebradas – a produção do espaço na Rocinha (RJ)
São Paulo
2011
VERSÃO CORRIGIDA
LUCIANO XIMENES ARAGÃO
Um prato bonito com as beiradas quebradas – a produção do espaço na Rocinha (RJ)
Tese apresentada à Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da Universidade de São
Paulo para obtenção do título de Doutor em
Geografia Humana
Área de concentração: Geografia Humana
Orientadora: Professora Drª Amélia Luisa
Damiani
De acordo com as correções da presente
versão.
Profª Drª Amélia Luisa Damiani
São Paulo
2011
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Aragão, Luciano Ximenes
Um prato bonito com as beiradas quebradas – a produção do espaço na
Rocinha (RJ)/Aragão, Luciano Ximenes; Orientadora Damiani, Amélia Luisa.
135 f: il
Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, 2011.
1 . Rocinha. 2. Produção do Espaço. 3. Alienação. I. Damiani, Amélia L. II. Título. III.
Título: Um prato bonito com as beiradas quebradas.
CDD
4
Nome: Luciano Ximenes Aragão
Título: Um prato bonito com as beiradas quebradas – a produção do espaço na Rocinha
(RJ)
Tese apresentada à Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras, da Universidade de São
Paulo para a obtenção do título de Doutor em
Geografia Humana.
Aprovado em: 10/02/2011
Banca Examinadora
Prof. Dra. Amélia L. Damiani
FFLCH-USP
Julgamento:_______________________________________ Assinatura: _____________________________
Prof. Dr. Alvaro Henrique de Souza Ferreira
PUC – Rio de Janeiro
Julgamento:_______________________________________ Assinatura: _____________________________
Prof. Dr. João Rua
PUC – Rio de Janeiro
Julgamento:_______________________________________ Assinatura: _____________________________
Prof. Dr. Heinz Dieter
FFLCH-USP
Julgamento:_______________________________________ Assinatura: _____________________________
Prof. Dra. Ana Fani Alessandri Carlos
FFLCH-USP
Julgamento:_______________________________________ Assinatura: _____________________________
5
Dedico este trabalho a João Rua, Helion Povoa-Neto,
Álvaro Henrique e Rogério Haesbaert
6
AGRADECIMENTOS
Este trabalho contou com o apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq).
Muitos se envolveram neste trabalho, direta ou indiretamente, expressando elevado grau de
compreensão e ternura num momento que considero especial agradecer. É uma tarefa
difícil, porque sempre incorremos no medo de esquecer alguém. Sinto-me muito honrado e
agradecido por ter sido orientado pela Professora Amélia Damiani a quem agradeço
imensamente.
À banca de qualificação pelas ricas sugestões que reforçaram sobremaneira meu
aprendizado formada pela Professora Dra Ana Fani e Professor Dr. Ancelmo Alfredo – e
pelas inesquecíveis indicações que tive o privilegio de receber de ambos.
Aos amigos do Labur: Márcio, Luciano Marini, Jean, James, Zé, que ofereceram o clima
necessário de um rico aprendizado, de trocas mútuas e de acolhimento, os quais foram
essenciais nesses momentos.
Aos amigos do Rio: Alexandre, Jeremias, Edmar, Marcelo e tantos outros que, com
sabedoria, também entenderam minhas ausências.
A minha família, minha mãe, irmãos e irmã, demasiadamente compreensivos com minhas
ausências.
Aos meus colegas de trabalho, em especial às Profª Giorgina, Ana Beatriz e ao Professor
Paulo Rebelo, e, Iolanda, incontestavelmente compreensíveis.
À Cacilda, D. Narcisa, sempre muito acolhedoras nas horas em que tomei tempo da
professora Amélia.
À Sophia ( in memorian), mesmo sem saber, trazia tranquilidade pela ternura que oferecia a
todos nós.
Aos amigos da Rocinha: Martins, Eliete, PC, e Maria Helena que souberam oferecer uma
convivência harmoniosa e respeitosa, repletas de descobertas, que sempre deixavam um
gostinho de quero mais nas nossas conversas e reuniões.
7
Então vi o Aleph. (...) começa aqui meu desespero de
escritor. Toda linguagem é um alfabeto de símbolos,
cujo exercício pressupõe um passado que os
interlocutores compartem; como transmitir aos
outros o infinito Aleph, que minha tímida memória
mal e mal abarca? (...) Mesmo porque o problema
central é insolúvel: a enumeração, sequer parcial, de
um conjunto infinito. Nesse instante gigantesco, vi
milhões de atos agradáveis ou atrozes; nenhum me
assombrou mais que o fato de todos ocuparem o
mesmo
ponto,
sem
superposição
e
sem
transparência. O que os meus olhos viram foi
simultâneo; o que transcreverei será sucessivo, pois
a linguagem o é. Algo, entretanto, registrarei.
Jorge Luis Borges
8
Resumo
Este trabalho foi desenvolvido na favela da Rocinha (RJ) e utilizando-se de observações de
campo, procurou sistematizar a noção de produção política do Espaço, suas implicações
sobre os metamorfismos vividos por sua população. Enumera as formas pelas quais se
estabelecem sucessivos processos de alienação, apoiando-se na dialética sócio-espacial.
Procedeu-se ao desvendamento desses processos de alienação, indicando os distintos
mecanismos em que estes se manifestam. A preocupação fundamental era a de partir do
concreto chegar às abstrações e por fim formatar a compreensão do complexo e
fragmentado cotidiano dos residentes na Rocinha.
9
ABSTRACT
This study was conducted in the slum of Rocinha (RJ), and using field observations, we
tried to systematize the notion of political production of space, its implications on
metamorphisms experienced by its people. It lists the ways in which they lay successive
processes of alienation, drawing on socio-spatial dialectic. Proceeded with the unveiling of
these processes of alienation, indicating the different mechanisms by which these are
manifested. The main concern was to get from the concrete and in abstractions, and finally
format the understanding of the complex and fragmented daily life of residents in Rocinha.
10
LISTA DE FIGURAS E ILUSTRAÇÕES
Lista de Fotos
Foto 1 – Rocinha e São Conrado, no início do séc. XX.
43
Foto 2 – São Conrado e Rocinha, no início dos anos 1950.
43
Foto 3 – Fábrica Sudantêxtil (década de 1950)
44
Foto 4 – Aspectos da Rocinha no final da década 1970.
44
Foto 5 – Construção do Túnel Dois Irmãos (início da década de 1970).
45
Foto 6 – O Túnel Dois Irmãos, logo após a sua construção
45
Foto 7 – Momento de negação
46
Foto 8 – Os percursos
59
Foto 9 – A segunda passarela (de ferro)
103
Foto 10 – A “terceira” passarela (de concreto)
104
Foto 11 – A “quarta passarela”
105
Foto 12 – Situação geográfica da Rocinha
106
Foto 13 - Fábrica Laranjeiras.
118
Foto 14 - Fábrica Bangu.
118
Foto 15 – Becos na Rocinha
119
Lista de Figuras
Figura 1 – Mapa esquemático da Rocinha
60
Figura 2 – O momento de operação do Negativo
125
Figura 3 – “Tendências” da Produção Política da Sociedade
125
Figura 4 – Momento que revela manipulação politica em função da candidatura de Claudinho da
Academia
126
Figura 5 – simbiose entre o legal e ilegal
126
Figura 6 – Momentos que revelam a mudança da quantidade em qualidade.
127
Figuras 7 e 8 – A potência das representações
128
Figuras 9 e 10 – As promessas (sic) das intervenções realizadas pelo PAC.
129
Figura 11 – Evidências da reedição da escola hausmanniana através do PAC
130
Figura 12 – Momento da mistificação – apresentação das “vantagens” do PAC
131
Lista de Tabelas
Tabela 1 - Crescimento da população total e residente em favela no Município do Rio de Janeiro
(1950/1991)
33
11
SUMÁRIO
Introdução – De janelas Abertas
13
Capítulo I – Adentrar as Janelas: A Perspectiva de seus Desdobramentos
25
Capítulo II – Os Labirintos Teórico-Metodológicos
52
Sobre os lugares e as coisas
54
Sobre os percursos metodológicos e ontológicos
62
Capítulo III – Os Seres e as Coisas, Produção e Valor
80
Capítulo IV – A Cidade se Ergue como Ser Estranho
87
Considerações Finais
113
Referências bibliográficas
117
Anexos
121
13
INTRODUÇÃO
DE JANELAS ABERTAS ...
A origem do espetáculo é a perda da unidade do mundo, e
a expansão gigantesca do espetáculo moderno revela a
totalidade dessa perda: a abstração de todo trabalho
particular e a abstração geral da produção como um todo
se traduzem perfeitamente no espetáculo, cujo modo de ser
concreto é justamente a abstração. No espetáculo uma
parte do mundo se representa diante do mundo e lhe é
superior. O espetáculo nada mais é que a linguagem
comum dessa separação. O que liga os expectadores é
apenas uma ligação irreversível com o próprio centro que
os mantém isolados. O espetáculo reúne o separado, mas o
reúne como separado .
Guy Debor,1997.
Era dia 5 de outubro de 2008, véspera da eleição municipal que definiria as
vagas para o exercício dos poderes executivo e legislativo na cidade do Rio de Janeiro.
Decidi ir à Rocinha para colher dados sobre esse pleito eleitoral. Ao chegar à Rua 1,
uma de suas localidades, desci do ônibus para fazer mais uma das inúmeras caminhadas
realizadas desde o início de minha pesquisa. Em um dos primeiros becos em que entrei,
observei uma das casas com uma janela de esquadria de alumínio aberta. Num dos lados
da janela, os residentes colaram material de propaganda política eleitoral, adesivos com
inscrições de nomes de candidatos políticos. Podia-se visualizar, de baixo para cima, o
adesivo de Leonel Brizola, que governou o Estado do Rio de Janeiro por dois mandatos
e candidatou-se à presidência da república por duas vezes; em seguida, estava afixado o
plástico de Anthony Garotinho, eleito para o governo do Estado do Rio de Janeiro após
a gestão de Marcelo Alencar em 1998. Na sequencia, pude identificar o adesivo de
Rosinha Garotinho, que governou o Estado do Rio de Janeiro no período de 2002 a
2006. Por fim, havia a inscrição “Claudinho da Academia”, concorrente, no presente
pleito eleitoral, a vereador pelo PSDC. Trata-se do atual presidente da UPMMR –
União Pró-Melhoramentos dos Moradores da Rocinha, associação que detém a
hegemonia do poder na comunidade em termos de cobertura territorial.
Os adesivos das propagandas destes candidatos expostos à janela retratam os
momentos políticos da metrópole carioca e ao mesmo tempo permitem explorar suas
14
transformações recentes, e podem ainda nos ajudar a colocar em perspectiva as suas
ambiguidades, de certa forma, inerentes à complexidade do momento presente.
Os nomes de Leonel Brizola e do casal Garotinho nos deixa entrever o apelo
populista e também a forma pouco “sofisticada” do procedimento da política no estado
ao longo de sua história recente. O período brizolista se revela como um momento
significativo para os moradores das favelas, pois foi um marco em que se destacava o
“voto revoltado” de seus moradores, na medida em que retrata um período de
esgotamento das históricas repressões e ameaças de remoção das favelas.
O então candidato Claudinho da Academia, por seu turno, não se enquadra no
perfil de “líder carismático”, sua trajetória não está inscrita num histórico de
aproximação às massas, tampouco se tem notícia de que seu passado esteja ancorado a
uma militância política. Embora tenha sido empossado em 2007, há em torno dele um
clima de desconfiança, conforme foi apontado por alguns moradores em conversas
informais, pois a sua ascensão ao poder, assim como seu ingresso na referida
Associação, na atual gestão, foi imposta pelo chefe do tráfico local1.
1 Gostaria de enfatizar esse ponto, na medida em que os processos políticos estão fortemente imbricados à
questão da apropriação e uso do espaço (social) mas também do tempo. Existe um certo aménagement
do território embotado de contradições no que diz respeito a essas temporalidades, sobretudo quando
se observa os discursos em torno da modernização e com certa carga de liberalismo. De um lado,
em que pese discursos em favor da livre-iniciativa, os arranjos políticos locais estão sobrepostos e
interpostos em distintas escalas do espaço social, cujo nível de análise possível é o da vida cotidiana,
como veremos ao longo da pesquisa. Mesmo que, na maioria das vezes, os discursos envolvendo a
modernização do Estado e da política sejam atravessados pela noção de modernização da política,
permanece, como se verá mais adiante, o mandonismo local, o clientelismo, o assistencialismo, a
política do favor, embutidas nas promessas de candidatos a cargos políticos, o que,
contraditoriamente revela-nos a tradição e não o seu contrário, a referida modernidade. Acrescente-
se no caso em particular das comunidades carentes do Rio de Janeiro – e aí se inclui a Rocinha – a
irrelevância das eleições para a presidência de associações de moradores, pois a quem cabe a
designação final dos líderes de associação de moradores são narcotraficantes. Pude acompanhar o
período das eleições para a sucessão à presidência da UPMMR (União Pró-Melhoramentos dos
Moradores da Rocinha) e embora seja um dos canais mais significativos da democracia na escala
intra-urbana, o seu inverso é que de fato procede. Não houve quorum significativo (revelando-se
desse modo a fraca participação de votantes e houve a suspeita de que seu atual presidente, como
apontado acima, foi designado pelos traficantes). A alienação política já se faz presente no cotidiano
mais imediato e com implicações sobre as práticas sociais. Nesse mesmo período também vem se
manifestando o controle de várias favelas por milicianos; os meios de comunicação chegaram a
divulgar as favelas que são dominadas pelos traficantes e as que o são pelos milicianos. O mais
curioso, entretanto, foram as frequentes negociações entre os políticos e esses grupos (milícias e
traficantes) para que houvesse a permissão de acesso de candidatos para realizarem suas campanhas.
A tensão entre o instituinte e o instituído se torna notável. Alguns desses políticos, por razões óbvias
– temendo intimidações ou mesmo por se beneficiar desses “fechamentos” das comunidades –
negavam, em entrevistas, que haviam sido impedidos de acessar as áreas faveladas. Outro aspecto
15
Essas notas sobre os adesivos à janela, assim, marcam certas temporalidades
inscritas no espaço e servem de pano de fundo para iluminar contradições,
continuidades e rupturas de maneira a vislumbrar a relação entre economia e política,
sociedade e espaço, a partir de suas complexas articulações ao cotidiano.
A reflexão sobre a situação acima impõe ainda questões que se inserem em
quadros mais amplos para a compreensão do modo de apropriação – simultaneamente
política e econômica – dos espaços de residência da classe trabalhadora e que,
certamente, apresentam impactos que afetam a vida cotidiana.
Convém assinalar, no caso das diversas comunidades de baixa renda do Rio de
Janeiro, e da Rocinha em particular, que a passagem de mandato, tempo de domínio do
casal Garotinho para um momento de centralização em torno de Claudinho da
Academia, enceta algumas implicações importantes, pois essa transição aparece como
indicador de mudanças na mencionada apropriação política do espaço (se atentarmos
para o caso da Rocinha), no sentido em que sobressaem formatos diferentes dos que
então vigoravam (mas que, sob determinadas perspectivas implicam em continuidades).
Se antes, por exemplo, era possível visualizar certo “cosmopolitismo”, traduzido pela
“capilaridade” em relação à penetração de políticos à comunidade para fazer suas
campanhas eleitorais, a situação atual é marcada pelo “fechamento” da Rocinha em
torno de apenas um candidato. Os jornais divulgaram recentemente notas de que outros
concorrentes estavam impedidos de aí ingressar com o mesmo intuito, isto é, o de
promover campanhas políticas. Em resposta, as áreas de favelas dominadas pelos
narcotraficantes (ou pelas milícias) foram ocupadas pelas forças militares do Exército
com o propósito de garantir o processo democrático durante as eleições de 2008. As
liberdades individuais e os direitos sociais, em certa medida, são tolhidos, pois ganham
visibilidade apenas na sua natureza formal (dentro de limitações possíveis).
A reflexão em torno da relação entre economia e política ganha relevância na
medida em que encontramos na outra face as relações entre capital e trabalho, sociedade
e Estado. É nesse quadro que se pretende inserir as transformações apresentadas nos
últimos anos na metrópole do Rio de Janeiro, e que abrem possibilidades para a
foi a presença das forças armadas – a partir de decisão negociada entre o Governo do Estado e a
União – para ocuparem as áreas sob a prerrogativa de garantir os processos democráticos.
16
compreensão do processo de degradação e fragmentação da vida cotidiana na favela da
Rocinha.
A título de propor as primeiras aproximações, dentro de uma perspectiva em que
a direção tomada é a da restituição da crítica da economia política ao espaço, cabe
apontar, ainda que de forma breve, a evolução da relação, aparentemente harmônica,
entre Estado e Economia. Acenamos desde já os pilares que sustentam a lógica desses
processos, indicando o necessário resgate do debate entre as tendências liberais e,
portanto, conservadoras, e as que procuram recuperar uma perspectiva crítica, aquelas
que pressupõem as transformações da sociedade. É importante observar a necessária
atualização desse debate porque isso traz implicações importantes para a compreensão
das práticas sociais envolvidas nas favelas; supõe-se que é uma das estratégias aqui
pensadas para por em perspectiva os processos de alienação e o espaço. Pretensamente,
sobrevém uma preocupação ontológica interna à ciência: uma reflexão sobre o real-
concreto em movimento, apesar de desafiadora, deve estar pressuposta sob a perspectiva
do espaço geográfico2.
É sob essa problemática que nos orientamos em busca de um recorte analítico, a
fim de compreender como a Rocinha se apresenta atualmente o que pretensiosamente,
inclusive, pode se estender para a compreensão de situações vividas nas demais áreas de
comunidades de baixa renda das metrópoles brasileiras. Procura-se, a partir da
caracterização desse quadro, restituir certo movimento nesse recorte, enfatizando os
processos sociais, ancorados na espacialidade. A prática social torna-se, assim,
simultaneamente, o ponto de partida e o de chegada para a compreensão da
complexidade que se impõe à relação entre sociedade e espaço. A essa problemática,
entretanto, se acresce a conformação de uma urbanização que transforma o espaço em
“território economizado”, com contornos (algumas vezes evidentes, outras não), de
reedição de processos de acumulação primitiva, porque envolve a despossessão e, num
2 Embora por demais pretensiosa, a seleção da abordagem escolhida se situa numa perspectiva do
materialismo histórico e dialético, como aponta o geógrafo Sérgio MARTINS (1999), para se pensar
nas contradições e na crítica da economia política do espaço, necessário se faz remontar a Marx,
retirá-lo dos “monturos da história” (p. 14). Mas não se trata, evidentemente, do marxismo ortodoxo
ossificado a que foi relegado o pensamento estruturalista, tendo à frente Althussser e seus
seguidores, assevera, decerto, o autor.
17
âmbito mais preciso, processos de alienação3. Eis o cerne da nossa problemática: os
paradoxos entre a crescente expropriação e a crescente despolitização e ausência de
ações que possam superar esse estado de coisas.
Uma vez que se busca o movimento que atravessa a relação entre sociedade e
espaço, na pretensão de restituir a este último a crítica da economia política, necessário
se faz, igualmente, recompor a história que contextualiza os processos sociais. Deste
modo, é necessário reforçar a perspectiva de que o capitalismo é um sistema histórico, e
daí torna-se possível compreender a tensão que se estabelece no debate atual entre os
apologistas liberais e as correntes críticas, necessárias para compor a sua oposição4. Eis,
assim, um dos eixos que nos auxiliam no processo de desvendamento das lógicas
perversas que tomaram assento nas décadas recentes, e que nos ajuda a desvendar a
sucessão de políticas, cujos resultados, demonstrados através de certa lógica da
produção do espaço urbano trazem como consequências injustiças sociais, revelando-
nos mais continuidades que, propriamente, rupturas em relação aos momentos
anteriores. Enfim, o que se deseja colocar em perspectiva é a permanência das
3 Uma interessante interpretação da ligação entre a produção de um “território economizado” e os
preceitos do que se poderia chamar de reedição da chamada acumulação primitiva nos é dada por
DAMIANI (2008), estudando o caso do Rodo-Anel paulista como fronteira para acumulação do
capital, transformando a sua composição orgânica através no/do espaço, considerado capital fixo.
Lógico que aqui consideramos os paralelos dessa situação para o caso do Rio de Janeiro, entretanto,
suas manifestações se dão de forma bem específicas, com táticas e estratégias diferenciadas, uma vez
que comparemos as duas metrópoles. Decerto, é uma característica própria do desenvolvimento
desigual e combinado inerente ao capitalismo, mantendo suas temporalidades, igualmente
diferenciadas e diferenciadoras (pois não estão dadas e nem pressupostas, estão implicadas no
processo mais geral). A pesquisa que ora desenvolvo foi inspirada em grande medida na combinação
dessas abordagens, considerando que aqui elas são adequadas para a compreensão da produção do
espaço na situação contemporânea. A contribuição mais marcante aparece ao se observar a tomada
de posição da autora, é quanto à operação do negativo, em suas complexas dimensões para a
compreensão sobre o modo como se processa a urbanização enquanto movimento. Desse modo, se
separa o que está pressuposto do que está em movimento.
4 Os anos 1980 foram marcados por transformações muito peculiares na economia mundial com
fortes rebatimentos sobre as da periferia. Desenvolveu-se um debate e, no caso do Brasil, uma
campanha em que o Estado deveria se manter à margem da economia, enxugar suas atribuições,
através dos processos de privatização. Nos anos 1990, a política oficializada pelo FMI, através do
conhecido Consenso de Washington propugna além das privatizações, cortes das atribuições do
Estado de bem-estar social. A era Reagan, Tatcher, para os EUA e Reino Unido, respectivamente, e
Collor para o Brasil, se reveste de forte apelo simbólico em que se destaca, no caso brasileiro, a
liberalização da economia, e seus corolários: a precarização/desregulação das relações de trabalho, a
terceirização, etc. Os apelos mais evidentes estavam ligados à livre-iniciativa, o empreendedorismo,
colocando-se o mercado como o grande regulador das relações sociais, notadamente, da relação
capital/trabalho. (Cf. FIORI, 2001 e PASSET, 2002)
18
contradições envolvidas na lógica da acumulação ampliada do capital, a qual inclui o
espaço na reprodução das relações de produção. (CARLOS, 2008)
Com o objetivo de recuperar o debate em torno de questões entre capital e
trabalho, sociedade, política e espaço, e considerando-se as continuidades, as rupturas e
as tensões latentes ou efetivamente presentes nas determinações sociais, observam-se
sequência de momentos que delineiam algumas ponderações a fim de alicerçarem
nossas proposições ou hipóteses.
O momento que sucede à superação da economia mercantil, baseada no
exclusivo colonial, constituinte dos monopólios e do forte controle das potências
imperialistas, é encetado pelo capitalismo concorrencial. Segundo os preceitos liberais,
não se admitia a intervenção do Estado na economia, ou pelo menos, defender-se-ia que
suas ações deveriam ser limitadas. Notadamente, a “mão invisível” do mercado
resolveria as ameaças de crise, pondo termo aos eventuais descompassos que se
estabeleciam entre oferta e demanda.
O período anterior à década de 1930 foi marcado, decerto, pela livre-
concorrência e pela dominância da “mão invisível” do mercado (mesmo que não se
possa aqui absolutizar sua primazia, uma vez que nos reportemos à constituição de
nações beligerantes e à consolidação de grandes monopólios, ou ainda ao destaque que
daremos mais adiante a chamada acumulação primitiva). Seguiu-se uma crise de
superprodução, podendo esta ser interpretada como uma crise de demanda, e obtendo
como resposta a intervenção estatal. Embora tenha havido crises em momentos
anteriores, vale lembrar que estas não atingiram de forma profunda o curso da
acumulação. Algumas delas foram resolvidas a partir do espaço, via expansão
horizontal do sistema de acumulação capitalista, incorporando com maior intensidade as
áreas periféricas. (HARVEY, 2005)
O intervencionismo estatal, com a generalização dos modos de regulação que lhe
são subjacentes, reunindo um conjunto de preceitos institucionais, políticos e macro-
econômicos (em especial no pós-Segunda Guerra), ao “tomar as rédeas da economia”,
contribuiu para promover um ciclo de forte crescimento, destacadamente nos países
centrais. Porém, esse período foi sucedido por uma crise que se instaura desde o início
dos anos setenta. É possível sustentar (ainda que incorra em certa ousadia) que a crise
desde então passa a ser, simultaneamente, do Estado, do Capital e do Trabalho. Logo,
19
as crises cíclicas – também do mercado – se tornaram inexoráveis. Os recursos e as
estratégias para a sua superação se manifestaram através da materialização de um
sistema de desregulação, consolidado em certo regime de acumulação e num modo de
regulação. (HARVEY, 1989; LIPIETZ, 1991).
Contudo, não se deve perder de vista as especificidades das economias
periféricas, pois nelas crescimento e desenvolvimento (quase) nunca coincidiram.
Como resultado, os benefícios sociais dos regimes de regulação absorveram um caráter
limitado. As medidas, ações (ou omissões) do Estado, no Brasil, estiveram ligadas às
necessidades da acumulação; jamais se contemplou o consumo (ou a esfera da
reprodução no sentido estrito) e – se quisermos atentar para um sentido mais amplo – à
cidadania. (OLIVEIRA, 2003)
Nas últimas décadas, considerando-se o caso particular de economias periféricas
como a brasileira – embora enseje, a princípio, um exame mais minucioso – é possível
apontar, na evolução recente da economia e da política nacionais, um momento inicial,
que corresponde aos anos 1980 e prossegue até o início dos anos 1990, em que o Estado
passa a administrar a crise a partir de mal sucedidos ajustes macro-econômicos; e
períodos recentes, marcados por tentativas de administração da exceção, embebidos em
contradições e ambiguidades.
Uma vez que a preocupação dos governos desde então passou a ser a de
administrar a crise, na busca da retomada do crescimento econômico em detrimento de
investimentos na esfera social, as possibilidades de formular políticas capazes de gerar
empregos e/ou de manter padrões redistributivistas através desses investimentos,
sofreram retrocessos em virtude da diminuição de recursos destinados à educação, à
saúde, à habitação e ao saneamento. Nas nações em que a população já sofria
precariedades e carências em função do modelo de acumulação que então vigorava, a
reestruturação produtiva não foi acompanhada por nenhuma medida compensatória, e
tudo isso redundou numa crise social que incluiu a cidade. A distância relativa ao
crescimento – agora em crise – se tornou ainda maior em relação ao desenvolvimento.
Houve momentos, em especial no final dos anos 1990, que se travou intenso debate
envolvendo a questão urbana dando-se ênfase à “governabilidade”, à “governança
urbana”; destacou-se também a relação entre governabilidade e pobreza, sugerindo-se,
grosso modo, que a crise da acumulação parecia travestida de uma crise política, na
20
medida em que a pobreza que assolava as metrópoles tinha como pressupostos a
violência, o descontrole e desajustes sociais então verificados por grupos mais
conservadores. Advogava-se que cabia ao poder local contornar a “(in)governança”5.
Nas últimas décadas, as condições de vida de grande parcela da população
brasileira foram alteradas por fatores como o aumento do trabalho informal, os baixos
salários e a ausência de um programa habitacional efetivo. Interrogamos: a situação
vivida hoje não seria um aprofundamento (ou desdobramento) do que foi experimentado
nos anos anteriores? Na atualidade, tal situação parece-nos agravada, ainda que se
tenham registrado elevados níveis de crescimento nesses períodos (como os que se
manifestaram na década de 1970), quando a economia era orientada pelos PNDs,
sustentados por investimentos estrangeiros e forte intervencionismo estatal. Nos anos
seguintes, acredita-se, não houve uma ruptura com os períodos anteriores, mas sim uma
continuidade, dir-se-ia, perversa. Dessa maneira, a luta pela sobrevivência passou a ser
cada vez mais marcada pela precariedade do acesso às ocupações, à moradia, entre
outros direitos sociais.