Zanoni por Edward Bulwer-Lytton - Versão HTML
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Zanoni
O livro que vemos a seguir é o título do mais famoso romance ocultista do
escritor inglês Edward Bulwer-Lytton (1803-1873).
A narrativa se passa em Nápoles e tem por protagonistas o Conde Zanoni, a
cantora de ópera Viola Pisani, o aprendiz de pintor Clarêncio Glyndon e Mejnour.
O livro tem como pano de fundo os princípios da Ordem Rosa-cruz, tratando
metaforicamente da alma e da busca pelo ideal.
Zanoni, um homem com elevado grau de consciência por ser imortal, cai e
perde seus poderes por se apaixonar pela cantora de ópera Viola Pisani. O livro foi
traduzido pela primeira vez para o português por volta de 1930 (Editora
Pensamento), por Francisco Valdomiro Lorenz, ilustre estudioso de Esperanto e
poliglota que nasceu na República Tcheca em 1872 e radicou-se no Brasil, na
pequena cidade de São Feliciano, RS, agora chamada Dom Feliciano . Em 1997, o
livro já havia sido impresso em 8 edições, podendo ser encontrado ainda hoje nas
livrarias, especialmente aquelas dedicadas a literatura espírita ou esotérica.
Curiosamente, é um dos raros exemplos em que o tradutor, não se conformando
com o final trágico da estória, resolve dar-lhe continuidade, escrevendo "O Filho
de Zanoni", também publicado pela mesma editora, procurando preservar o estilo
do original, com grande sucesso e que também pode ser encontrado nas livrarias,
mesmo depois de 55 anos da morte do autor/tradutor.
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INTRODUÇÃO
É possível que entre os meus leitores haja alguns poucos
que ainda se recordem de uma antiga livraria, que existia, há
alguns anos, nas imediações de COVENT GARDEN; digo poucos,
porque certamente, para a grande maioria da gente, muito escasso
atrativo possuíam aqueles preciosos volumes que toda uma vida de
contínuo labor havia acumulado nas empoadas estantes do meu
velho amigo D.
Ali não se encontravam tratados populares, nem romances
interessantes, nem histórias, nem descrições de viagens, nem
“Biblioteca para o povo”, nem “Leitura recreativa para todos”. O
curioso, porém, podia descobrir ali uma rica coleção de obras de
Alquimia, Cabala e Astrologia, que um entusiasta conseguiu reunir
e que, em toda a Europa, talvez, era a mais notável em seu gênero.
O seu proprietário havia despendido uma verdadeira fortuna na
aquisição de tesouros que não deviam ter saída. Mas o velho D.
não desejava, na realidade, vendê-las. O seu coração não se sentia
bem, quando um freguês entrava em sua livraria; ele espiava os
movimentos do intruso, lançando-lhe olhares vingativos; andava ao
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redor dele, vigiando-o atentamente; fazia carrancas e dava
suspiros, quando mãos profanas tiravam de seus nichos algum dos
seus ídolos. Se, por acaso, a alguém atraia uma das sultanas
favoritas do seu encantador harém, e o preço dado não lhe parecia
ser demasiado exorbitante, muitas vezes era duplicado esse preço.
Se vacilasse um pouco, o proprietário com vivo prazer, lhe
arrebatava das mãos a venerável obra que o encantava; se aceitasse
suas condições, o desespero se pintava no rosto do vendedor; e não
eram raros os casos que, no meio do silêncio da noite, tinha bater à
porta da moradia do freguês, pedindo-lhe que lhe vendesse, nas
condições que desejasse, o livro que batia com prado, pagando-lhe
tão esplendidamente o preço estipulado. Um crente admirador do
seu Averrois e do seu Paracelso, ele sentia a mesma repugnância,
como os filósofos que havia estudado, em comunicar aos profanos
o saber que tinha adquirido.
Sucedeu, pois, que, nos anos juvenis de minha existência e de
minha vida literária, senti um vivo desejo de conhecer a verdadeira
origem e as doutrinas da estranha seita a que se dá o nome de
“Rosacruzes”. Não satisfeito com as escassas e superficiais
informações que, acerca deste assunto, se pode achar nas obras
comuns, opinei que talvez na coleção do Sr. D., que era rica, não
só em livros impressos, como também em manuscritos,
encontrasse alguns dados mais precisos e autênticos sobre aquela
famosa fraternidade, escritos, quiçá, por algum dos membros da
Ordem, e que confirmassem, com o valor de sua autoridade e com
certas particularidades, as pretensões à sabedoria e à virtude que
Bringaret atribuía aos sucessores dos Caldeus e dos Ginosofistas.
De acordo com estas suposições, encaminhei os meus passos ao
dito sítio, o qual era, indubitavelmente (embora eu tenha que me
envergonhar disso), um dos meus passeias prediletos. Porém, não
existem, acaso, nas crônicas dos nossos próprios dias, erros e
enganos tão obscuros, como os dos alquimistas dos tempos
antigos? E possível que até os nossos periódicos vão parecer à
nossa posteridade tão cheios de ilusões, como aos nossos olhos
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parecem os livros dos alquimistas; e, talvez, achem até estranho
que a imprensa é o ar que respiramos, quando este ar é tão
nebuloso!
Ao entrar na livraria, notei num freguês de venerável
aspecto, a quem nunca dantes ali havia encontrado, e cuja presença
chamou a minha atenção. Surpreendeu-me também o respeito com
que era tratado pelo colecionador, de ordinário desdenhoso.
- Senhor, - exclamou este, com ênfase, enquanto eu estava
folheando o catálogo, - nos quarenta e cinco anos que levo
dedicado a esta classe de investigações, é você o único homem que
tenho encontrado digno de ser meu freguês. Como pode nestes
tempos tão frívolos, adquirir um saber tão profundo? E quanto a
esta augusta fraternidade, cujas doutrinas, vislumbradas pelos
primeiros filósofos, lhes ficaram sendo misteriosas, diga-me se
existe realmente, na terra, um livro, um manuscrito, em que se
possam aprender as descobertas e os ensinos dessa sociedade?
Ao ouvir as palavras “augusta fraternidade”, excitou-se
muito a minha curiosidade e atenção, e escutei com avidez a
resposta do desconhecido.
- Eu não julgo - disse o velho cavalheiro - que os mestres da dita
escola tenham revelado ao mundo as “suas verdadeiras doutrinas, a
não ser por meio de obscuras insinuações e parábolas místicas”, e
não os
censuro por sua discrição.
Depois de ter dito estas palavras, calou-se e parecia que ia retirar-
se, quando eu me dirigi ao colecionador, dizendo-lhe, de um modo
algo brusco:
- Não vejo em seu catálogo, Sr. D., nada que tenha referência aos
Rosacruzes.
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- Os Rosacruzes! - repetiu o velho cavalheiro, olhando-me
fixamente, com certa surpresa. - Quem, a não ser um Rosacruz,
poderia explicar os mistérios Rosacruzes? E o Sr. poderá imaginar
que um membro dessa seita, a mais zelosa de todas as sociedades
secretas, tenha querido levantar o véu que oculta ao mundo a Isis
de sua sabedoria?
Ah! Pensei eu comigo, esta será, pois, a “augusta fraternidade” de
que falou. Louvado seja o céu! Com certeza, topei agora com um
membro dessa fraternidade.
- Porém, - respondi em voz alta, - onde poderia eu, senhor, obter
alguma informação, se não se encontra nos livros? Em nossos dias,
não pode um literato arriscar-se a escrever sobre qualquer coisa,
sem conhecê-la a fundo, e quase nem se pode citar uma frase de
Shakespeare, sem citar ao mesmo tempo o titulo da obra, o
capítulo e o versículo. A nossa época é a época dos fatos, senhor, a
época dos fatos.
- Bem, - disse o ancião, com um amável sorriso; - se nos virmos
outra vez, poderei talvez, ao menos, dirigir as investigações do
senhor à fonte mesma do saber.
E, ditas estas palavras, abotoou o, sobretudo, chamou com um
assobio o seu cão, e saiu.
Quatro dias depois da nossa breve conversação na livraria do
Sr. D., encontrei-me de novo com o velho cavalheiro. Eu ia
tranqüilamente a cavalo em direção a Highgate, quando, ao pé da
sua clássica colina, distingui o desconhecido, que ia montado num
cavalo preto, e diante dele marchava o seu cão, preto também.
Se você encontrar, prezado leitor, o homem que desejas
conhecer, cavalgando ao pé de uma longa subida, de onde não
pôde se afastar muito, por certa consideração de humanidade à
espécie animal, a não ser que ande no cavalo de estimação de
algum amigo que lho emprestou, julgo que seria sua a culpa, se não
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o alcançasse antes dele chegar em cima da colina. Em suma,
favoreceu-me tanta a sorte que, ao chegar a Highgate, o velho
cavalheiro me convidou a descansar um pouco em sua casa, que
estava a curta distância da povoação; e era uma casa excelente,
pequena, porém confortável, com um vasto jardim, e das suas
janelas gozava-se de uma vista tão bela que seguramente Lucrécio
a recomendaria aos filósofos. Num dia claro, podia-se distinguir
perfeitamente as torres e sé pulas de Londres; aqui estava o
tranqüilo retiro do eremita, e lá longe o “mare-magnum” do
mundo.
As paredes dos principais aposentos estavam decoradas com
pinturas de um mérito extraordinário, pertencentes àquela alta
escola de arte que é tão mal compreendida fora da Itália. Eu fiquei
admirado ao saber que essas pinturas haviam sido feitas pela mão
do mesmo proprietário. As demonstrações da minha admiração
pareceram agradar ao meu novo amigo, e levaram-no a falar sobre
este ponto, e notei que ele não era menos inteligente no que se
referia às teorias da arte, do que consumado na prática da mesma.
Sem querer molestar o leitor com juízos críticos desnecessários,
não posso deixar, entretanto, de observar, a fim de elucidar em
grande parte o desígnio e o caráter da obra, à qual estas páginas
servem de introdução, digo, não posso deixar de observar em
poucas palavras, que ele insistia muito sobre a relação que existe
entre as diferentes artes, de igual modo como um eminente autor o
tem feito com
respeito às ciências; e que também opinava que, em toda a classe
de obras de imaginação, sejam estas expressas por meio de
palavras ou por meio de cores, o artista, pertencente às escolas
mais elevadas, deve fazer a mais ampla distinção entre o real e o
verdadeiro, - ou, em outras palavras, entre a imitação da vida real e
a exaltação da Natureza até o Ideal.
- O primeiro - disse ele - é o que caracteriza a escola holandesa; o
segundo, a escola grega. - Hoje, senhor, - repliquei, a escola
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holandesa está mais com voga.
respondeu o meu amigo, porém na literatura...
- Foi precisamente à literatura que me referi. Os nossos poetas
mais novos estão todos pela simplicidade e por Betty Foy; e o que
os nossos críticos apreciam mais numa obra de imaginação, é
poder-se dizer que suas personagens são exatamente como tiradas
da vida comum. Até na escultura.
- Na escultura! Não, não! Ali o ideal mais elevado deve ser, pelo
menos, a parte mais essencial! - Perdoe-me, senhor; parece-me que
não viu Souter Johnny e Tom O’Shanter.
- Ah! - exclamou o velho cavalheiro, meneando a cabeça, - pelo
que vejo, vivo muito apartado do mundo. Suponho que
Shakespeare deixou de ser admirado, não é?
- Pelo contrário; a gente adora Shakespeare, porém esta adoração
não é mais que um pretexto para atacar a todos os outros escritores.
Mas os nossos críticos descobriram que Shakespeare é tão realista!
- Shakespeare realista! O poeta que nunca delineou uma
personagem que se pudesse encontrar no mundo em que vivemos, -
e que nem uma vez sequer desceu a apresentar uma paixão falsa,
ou uma personagem real!
Estava eu pronto a replicar gravemente a este paradoxo, quando
adverti que o meu companheiro começava a perder sua calma
habitual. E aquele que desejava pescar um Rosa-Cruz, deve cuidar
de não turvar a água. Assim, pois, achei que convinha mais dar
outro giro à conversação.
- Revenons à nos moutons (Volvamo-nos ao nosso tema), - disse-
lhe; - o senhor me prometeu dissipar a minha ignorância acerca dos
Rosacruzes.
- Muito bem! - respondeu-me ele, em tom sério; - porém, com que
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propósito? Deseja talvez entrar no templo somente para
ridicularizar os ritos?
- Por quem me toma o senhor? Certamente, se tal fosse o meu
intento, a infeliz sorte do Abade de Vilars seria uma lição
suficiente para advertir a toda a gente que não se deve tratar com
frivolidade os reinos das Salamandras e dos Silfos. Todo o mundo
sabe como misteriosamente foi privado da vida aquele homem de
talento, em paga das satíricas burlas do seu “Conde de Gabalis”.
- Salamandras e Silfos! Vejo que incorre no erro vulgar de
entender ao pé da letra a linguagem alegórica dos místicos.
Esta observação deu motivo ao velho cavalheiro para condescender
a fazer-me uma relação muito interessante e, como me pareceu,
muito erudita, acerca das doutrinas dos Rosacruzes, dos quais,
segundo
me assegurou, alguns ainda existiam, continuando ainda, em
augusto mistério, suas profundas investigações no domínio das
ciências naturais e da filosofia oculta.
- Porém, esta fraternidade, - disse o ancião, - se bem que
respeitável e virtuosa, porque não há, no mundo, nenhuma ordem
monástica que seja mais rígida na prática dos preceitos morais,
nem mais ardente na fé cristã, - esta fraternidade é apenas um ramo
de outras sociedades ainda mais transcendentes nos poderes que
adquiriram, e ainda mais ilustres por sua origem. Conhece o senhor
a filosofia platônica?
- De vez em quando me tenho perdido em seus labirintos -
respondi. - A minha fé, os platônicos são cavalheiros que não se
deixam compreender facilmente.
- E, contudo, os seus problemas mais intrincados nunca foram
publicados. Suas obras mais sublimes conservam-se manuscritas, e
constituem os ensinamentos da iniciação, não só dos Rosacruzes,
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como também daquelas fraternidades mais nobres a que me referia
há pouco. Porém, ainda mais solenes e sublimes são os
conhecimentos que podem respigar-se de seus antecessores, os
Pitagóricos, e das imortais obras mestras de Apolônio.
- Apolônio, o impostor de Tyana! Existem seus escritos?
- Impostor! - exclamou o meu amigo. - Apolônio impostor?
- Perdoe me, senhor; eu não sabia que ele era um dos seus amigos;
e se o senhor me garante por sua pessoa, acreditarei com gosto que
ele foi um homem muito respeitável, que dizia só pura verdade
quando se gabava de poder estar em dois lugares distintos ao
mesmo tempo.
E isto é tão difícil? -- replicou o ancião. - Se lhe parece impossível,
é por que nunca sonhou!
Aqui terminou a nossa conversação; porém, desde aquele
momento, ficou formada entre nós uma verdadeira intimidade que
durou até que o meu venerável amigo abandonou esta vida
terrestre. Descansem em paz as suas cinzas! Ele era um homem de
costumes muito originais e de opiniões excêntricas; mas a maior
parte do seu tempo empregava em atos de filantropia, sem alarde e
sem ostentação alguma. Era entusiasta dos deveres do Samaritano,
- e assim como as suas virtudes eram realçadas pela mais doce
caridade, as suas esperanças tinham por base a mais fervorosa fé.
Nunca falava sobre sua própria origem e da história de sua vida, e
eu nunca pude elucidar o mistério obscuro em que estava
envolvida. Segundo parece, tinha viajado muito pelo mundo, e
havia sido testemunha ocular da primeira Revolução Francesa, a
respeito da qual se expressava de um modo tão eloqüente como
instintivo. Não julgava os crimes daquela tempestuosa época com
aquela filosófica indulgência com que alguns escritores ilustrados
(que têm as suas cabeças bem seguias sobre os seus ombros) se
sentem, atualmente, inclinados a tratar as matanças desses tempos
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passados; ele falava não como um estudante que tinha lido e macio
raciocinado, mas como um homem que tinha visto e sofrido.
O velho cavalheiro parecia estar só no mundo; e eu ignorava que
ele tivesse algum parente, até que seu executor testamentário, um
primo seu em grau afastado, que residia no estrangeiro, me
informou do bonito legado que fizera o meu pobre amigo. Este
legado consistia, em primeiro lugar, numa quantia de dinheiro, a
qual, julgo que convém guardar, em previsão de um novo imposto
sobre as rendas e bens imóveis; e, em segundo lugar, em certos
preciosos manuscritos, aos quais este livro deve a sua existência.
Suponho que devo este último legado a uma visita que fiz àquele
sábio, si se me permitem chamá-lo com tal nome, poucas semanas
antes da sua morte.
Embora lesse pouco da literatura moderna, o meu amigo,
com a amabilidade que o caracterizava, permitia-me afavelmente
que o consultasse acerca de alguns ensaios literários, projetados
pela irrefletida ambição de um estudante novo e sem experiência.
Naquele tempo, procurei saber o seu parecer a respeito de uma
obra de imaginação, em que eu me propunha pintar os efeitos do
entusiasmo nas diversas modificações do caráter. Ele escutou, com
sua paciência habitual, o argumento da minha obra, que era
bastante’ vulgar e prosaica, e dirigindo-se, depois com ar
pensativo, à sua coleção de livros, tirou um volume antigo, do qual
me leu, primeiro em grego, e em seguida em inglês alguns trechos
do teor seguinte:
“Platão fala aqui de quatro classes de mania”, palavra que, a meu
entender, denota entusiasmo, a inspiração dos deuses: Primeira, a
musical; segunda, a teléstica ou mística; terceira, a profética; a
quarta, a pertencente ao amor”.
O autor citado pelo meu amigo, depois de sustentar que na
alma há algo que está acima do intelecto, e depois de afirmar que
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em nossa natureza existem distintas energias, - uma das quais nos
permite descobrir e abraçar, por assim dizer, as ciências e os
teoremas com uma rapidez quase intuitiva, ao passo que, mediante
outras, se executam as sublimes obras de arte, tais como as estátuas
de Fidias, - veio dizer que “o entusiasmo, na verdadeira acepção da
palavra aparece quando aquela parte da alma, que está por cima do
intelecto, se eleva, exaltada até aos deuses, de onde provém a sua
inspiração”.
Prosseguindo em seus comentários sobre Platão, o autor
observa que “uma destas manias” (isto é, uma das classes de
entusiasmo) especialmente a que pertence ao amor, pode fazer
remontar a alma à sua divindade e bem-aventurança primitivas;
porém que existe uma intima união entre elas todas, e que a ordem
progressiva, pela qual a alma sobe, é esta: primeiro, o entusiasmo
musical; depois, o entusiasmo telético ou místico; terceiro, o
profético; e, finalmente, o entusiasmo do amor”.
Escutava eu estas intrincadas sublimidades, com a cabeça aturdida
e com atenção relutante, quando o meu mentor fechou o livro,
dizendo-me com complacência:
- Ali tem você o mote para o seu livro, a tese para o seu tema.
- Davus sum, non OEdipus, - respondi, meneando a cabeça e com
ar descontente. - Tudo pode ser muito belo, mas, perdoe-me o Céu,
- eu não compreendi nem uma só palavra de tudo o que acaba de
dizer-me. Os mistérios dos Rosacruzes e as fraternidades de que
fala, não são mais do que brinquedos de crianças, em comparação
com a geringonça dos Platônicos.
- E, contudo, enquanto o senhor não tiver compreendido bem esta
passagem, não poderá entender as mais elevadas teorias dos
Rosacruzes ou das fraternidades ainda mais nobres, das quais fala
com tanta leviandade.
- Oh! Se assim é, então renuncio a toda esperança de consegui-lo.
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Porém, uma vez que está tão versado nesta classe de matérias,
porque não adota o senhor mesmo, aquele mote para um de seus
próprios livros?
- Mas, se eu já tivesse escrito um livro com aquela tese encarregar-
se-ia o meu amigo de prepará-lo para o público?
- Com o maior gosto, respondi eu, infelizmente, com bastante
imprudência.
- Pois eu o tomo pela palavra, - replicou o ancião, - e quando eu
tiver deixado de existir nesta terra, receberá os manuscritos. Do
que diz a respeito do gosto, que hoje predomina na literatura,
deduzo que não posso lisonjear-lhe com a esperança de que venha
a obter grande proveito em sua empresa; e advirto-lhe de antemão
que achará bastante laboriosa a tarefa.
- É a sua obra um romance?
- É romance, e não é. É uma realidade para os que são capazes de
compreendê-la; e uma extravagância para os que não se acham
neste caso.
Por fim, chegaram às minhas mãos os manuscritos,
acompanhados de uma breve carta do meu inolvidável amigo, na
qual me recordava da minha imprudente promessa.
Com o coração oprimido, e com febril impaciência, abri o
embrulho, avivando a luz da lâmpada. Julguem qual foi o desalento
que se apoderou de mim, quando vi que toda a obra estava escrita
em caracteres que me eram desconhecidos! Apresento aqui ao
leitor uma amostra deles:
e assim por diante, as novecentas e quarenta páginas de grande
formato! Apenas podia dar crédito aos meus próprios olhos;
comecei a pensar que a lâmpada estava luzindo com um azul
singular; e assaltaram à minha desconcertada imaginação vários
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receios a respeito da profanada índole dos caracteres que eu, sem
dar-me conta disso, havia aberto, contribuindo para isto as
estranhas insinuações e a mística linguagem do ancião. Com efeito,
para não dizer outra coisa pior, tudo aquilo me parecia muito
misterioso, impossível!
Já estava eu querendo meter, precipitadamente, esses papéis
num canto da minha escrivaninha, com a pia intenção de não me
ocupar mais deles, quando a minha vista, de improviso, fixou-se
num livro, primorosamente encadernado em marroquim. Com
grande precaução, abri este livro, ignorando o que podia sair dali, e
- com uma alegria que é impossível descrever - vi que ele continha
uma chave ou um dicionário para decifrar aqueles hieróglifos. Para
não fatigar o leitor com relação às minúcias do meu trabalho, me
contentarei em dizer que por fim, cheguei a julgar-me capaz de
interpretar aqueles caracteres, e pus mãos à obra, com verdadeiro
afinco. A tarefa não era, porém, fácil; e passaram-se dois anos
antes que eu fizesse um adiantamento notável. Então, desejando
experimentar o gasto do público, consegui publicar alguns
capítulos desconexos num periódico, em que tinha a honra de
colaborar, havia alguns meses.
Estes capítulos pareceram excitar a curiosidade do público
muito mais do que eu havia presumido; dediquei-me, pois, com
mais ardor do que nunca, à minha laboriosa tarefa. Porém, então
me sobreveio um novo contratempo: ao passo que eu ia adiantando
no meu trabalho, achei que o autor tinha feita dois originais de sua
obra, sendo um deles mais esmerado e mais minucioso do que o
outro; infelizmente, eu tinha topado com o original defeituoso (*),
e, assim, tive que reformar o meu trabalho, desde o princípio
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até o fim, e traduzir de novo os capítulos que já escrevera. Posso
dizer, pois, que, excetuando os intervalos que eu dedicava às
ocupações mais peremptórias, a minha desditosa promessa me
custou alguns anos de trabalhos e fadigas, antes de poder vê-la
devidamente cumprida. A tarefa era tanto mais difícil, porque o
original estava escrito numa espécie de prosa rítmica, como se o
autor houvesse pretendido que a sua obra fosse considerada, em
certo modo, como uma concepção ou um debuxo poético. Não foi
possível dar uma tradução que conservasse tal forma, e onde tentei
fazê-lo, é, freqüentemente, necessário pedir a indulgência do leitor.
O respeito natural com que, ordinariamente, tenho aceitado os
caprichos do velho cavalheiro, cuja Musa era de um caráter
bastante equívoco, deve ser a minha única desculpa onde quer que
a linguagem, sem entrar plenamente no campo da poesia, apareça
com algumas flores emprestadas, um tanto impróprio da prosa.
Em honra da verdade, hei de confessar também que, apesar de
todos os esforços que fiz, não tenho a certeza absoluta de ter dado
sempre a verdadeira significação a cada um dos caracteres
hieroglíficos do manuscrito; e acrescentarei que, em algumas
passagens, tenho deixado em branco certos pontos da narração, e
que houve ocasiões em que, encontrando um hieróglifo novo, de
que não possuía a chave, vi- me obrigado a recorrer a interpolações
de minha própria invenção, que, sem dúvida, se distinguem do
resto, mas que com prazer reconheço, não estão em desacordo com
o plano geral da obra. Esta confissão que acabo - de fazer, leva-me
a formular a seguinte sentença, com a qual vou terminar: Se neste
livro, o caro leitor, encontrar algo que seja de seu gosto, sabe que
é, com toda a certeza, produzido por mim; porém, onde achar algo
que o desagrade, dirija a sua reprovação ao endereço do velho
cavalheiro, o autor dos hieróglifos manuscritos!
LIVRO PRIMEIRO
O MÚSICO
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CAPITULO I
“Vergine era D’alta beltà, ma sua beltà non cura:
Di natura, d’amor, de cieli amici Le negligenze sue sono artifici”.
Gerusal. LIb., canto II, 14-18.
“Era uma virgem de grande beleza, mas de sua beleza não fazia
caso: A negligência mesma é arte nos que são favorecidos
Natureza, pelo amor e pelos céus”.
Na segunda metade do século XVIII, vivia e florescia em Nápoles
um honrado artista, cujo nome era Caetano Pisani. Era um músico
de grande gênio, mas não de reputação popular; havia em todas as
suas composições algo caprichoso e fantástico, que não era do
gosto dos “dilettanti” de Nápoles. Era ele amante de assuntos
pouco familiares, nos quais introduziam toadas e sinfonias que
excitavam uma espécie de terror nos que as ouviam. Os títulos das
suas composições lhes dirão, já por si mesmos de que índole era.
Acho, por exemplo, entre os seus manuscritos:
“A Festa das Harpias”, “As bruxas em Benevento”, “A descida de
Orfeu aos Infernos”, “O mau olhado”;
Londres, Janeiro de 1842.
“As Eumênides”, e muitos outros, que demonstram nele uma
grande imaginação que se deleitava com o terrível e o sobrenatural,
mas às vezes se elevava, com delicada e etérea fantasia, com
passagens de esquisita beleza, até ao sublime. É verdade que, na
escolha dos seus assuntos, que tomava da fábula antiga, Caetano
Pisani era muito mais fiel do que seus contemporâneos à remota
origem e ao primitivo gênio da Opera Italiana. Quando este
descendente, embora efeminado, da antiga união do Canto e do
Drama, depois de uma longa obscuridade e destronamento, tornou
a aparecer empunhando o débil cetro e, coberto com mais brilhante
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púrpura, nas margens do Amo, na Etrúmia, ou no meio das lagoas
de Veneza, hauriu as suas primeiras inspirações das desusadas e
clássicas fontes da lenda pagã; e “A Descida de Orfeu”, de Pisani,
era apenas uma repetição muito mais atrevida, mais tenebrosa e
mais científica da “Eurídice”, que Jacopo Peri pôs em música
quando se celebraram as augustas núpcias de
[1]
Henrique de Navarra com Maria de Médicis
. Todavia, como já disse, o estilo do músico napolitano não era
agradável em tudo aos ouvidos delicados, acostumados às suaves
melodias do dia; e os críticos, para desculparem seu desagrado,
apoderavam-se das faltas e das extravagâncias do compositor, que
facilmente se descobriam em suas obras, e ponderavam-nas, muitas
vezes, com intenção maligna. Felizmente, - pois do contrário o
pobre músico teria morrido de fome, - ele não era somente
compositor, mas também um excelente tocador de vários
instrumentos, e especialmente de violino, e com este instrumento
ganhava uma decente subsistência, tendo encontrado uma
colocação na orquestra do Grande Teatro de São Carlos. Aqui, os
deveres formais e determinados, dados pela sua colocação, serviam
necessariamente de tolerável barreira às suas excentricidades e
fantasias, ainda que se saiba que não menos de cinco vezes deposto
do seu lugar por haver desgostado os executantes e levado em
confusão toda a orquestra, tocando, de repente, variações de uma
natureza tão frenética e espantadiça que se podia pensar que as
harpias ou as bruxas, que o inspiravam em suas composições, se
haviam apoderado do seu instrumento. A impossibilidade, porém,
de se encontrar um violinista de igual notabilidade (isto é, em seus
momentos de maior lucidez e regularidade) era a causa de sua
reinstalação, e ele, agora, quase sempre se conformava a não sair
da estreita esfera dos “adágios” ou “alegros” das suas notas. Além
disso, o auditório, conhecendo sua propensão percebia
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imediatamente quando ele começava a desviar-se do texto; e se o
músico divagava um pouco, o que se podia descobrir tanto pela
vista como pelo ouvido, por alguma estranha contorção do seu
semblante, ou por algum gesto fatal do seu arco, um suave
murmúrio admonitório do público tornava a transportar o
violinista, das regiões do Eliseu ou do Tártaro à sua modesta
estante. Então parecia ele despertar, sobressaltado, de um sonho;
lançava um rápido, tímido e desculpante olhar em redor de si, e
com ar abatido e humilhado, fazia voltar o seu rebelde instrumento
ao carril trilhado da volúvel monotonia. Em casa, porém, se
recompensava desta relutante servilidade. Agarrando com dedos
ferozes o infeliz violino, tocava e tocava muitas vezes até ao
amanhecer, fazendo sair do instrumento sons tão estranhos e
desenfreados, que enchiam de supersticioso terror os pescadores
que viam nascer o dia na praia contígua à sua casa, e até ele
mesmo estremecia
como se alguma sereia ou algum espírito entoasse ecos
extraterrestres ao seu ouvido.
O semblante deste homem oferecia um aspecto característico da
gente de sua arte. As suas feições eram nobres e regulares, porem
magras e um tanto pálidas; os negros cabelos descuidados
formavam uma multidão de caracóis; e os seus grandes e
profundos olhos costumavam permanecer fixos, contemplativos,
sonhadores. Todos os seus movimentos eram particulares,
repentinos e ligeiros, quando o frenético impulso dele se
apoderava; e quando andava precipitadamente pelas ruas, ou ao
longo da praia, costumava rir e falar consigo mesmo. Contudo, era
um homem pacífico, inofensivo e amável, que partia o seu pedaço
de pão com qualquer dos “lazaroni” preguiçosos, parando para
contemplá-los como se estendiam ociosos, ao sol. Não obstante,
esse músico era totalmente insociável. Não tinha amigos; não
adulava a nenhum protetor, nem concorria a nenhum desses alegres
divertimentos, de que gostam tanto os filhos da Música e do Sul.
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Parecia que ele e a sua arte eram feitos para viverem isolados e um
para o Outro: ambos delicados e estranhos, irregulares,
pertencentes aos tempos primitivos ou a um
inundo desconhecido: Era impossível separar o homem da sua
música; esta era ele mesmo. Sem ela, Pisani era nada, não passava
de uma máquina! Com ela, era o rei dos seus mundos ideais. E isto
lhe bastava, ao pobre homem! Numa cidade fabril de Inglaterra, há
uma lousa sepulcral, cujo epitáfio recorda “um homem, chamado
Cláudio Philips, que foi a admiração de quantos o conheceram,
devido ao desprezo absoluto que manifestava pelas riquezas, e
devido à sua inimitável habilidade em tocar violino”. União lógica
de opostos louvores! Tua habilidade no violino, ó Gênio, será tão
grande, quanto o seja o teu desprezo pelas riquezas!
O talento de Caetano Pisani, como compositor, se havia
manifestado principalmente em música apropriada ao seu
instrumento favorito, que é, indubitavelmente, o mais rico em
recursos e o mais capaz de exercer o poder sobre as paixões. O
violino de Cremona é, entre os instrumentos, o que Shakespeare é
entre os poetas. Todavia, Pisani tinha composto outras peças de
maior ambição e mérito, e a principal era a sua preciosa, sua
incomparável, sua não publicada, sua não publicável e imortal
ópera “Sereia”. Esta grande obra prima tinha sido o sonho doirado
de sua infância, a dona da sua idade viril; e, à medida que ele
avançava na idade, “estava a seu lado como sua juventude”. Em
vão Pisani se tinha esforçado para apresentá-la ao público. Até o
amável e bondoso Paisielo, mestre de capela, meneava a gentil
cabeça, quando o músico o obsequiava com algum ensaio de uma
das suas cenas mais marcantes. Contudo, Paisielo, ainda que essa
música difira de tudo o que Durante te ensinou como regras de boa
composição, pode ser que. . . Paciência Caetano Pisani! Aguarda o
tempo, e afina o teu violino!
Por mais estranho que possa parecer à bela leitora, esta
grotesca personagem havia contraído aqueles laços que os mortais
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ordinários são capazes de considerar seu especial monopólio, -
tinha-se casado, e era pai de uma filha. E o que parecerá mais
estranho ainda, a sua esposa era filha de um calmo, sóbrio e
concentrado inglês: tinha muito menos anos de idade do que o
músico; era formosa e amável, com um doce semblante inglês;
havia-se casado com ele por escolha própria, e (crê-lo-eis?) amava-
o ainda. Como aconteceu que ela se casou com ele, ou como este
homem esquivo, intratável, impertinente se havia atrevido a
propor-lhe, só posso explicá-lo, convidando-lhe a dirigir o seu
olhar em redor de si, para depois explicar, primeiro a mim, como a
metade dos homens e a metade das mulheres que você conhece,
puderam encontrar o seu cônjuge! Entretanto, refletindo bem, esta
união não era coisa tão extraordinária. A moça era filha natural de
pais demasiado pobres para reconhecê-la ou reclamá-la. Foi levada
à Itália para aprender a arte que devia proporcionar-lhe os meios de
viver, pois a jovem tinha gosto e voz; vivia em dependência, e via-
se tratada com dureza. O pobre Pisani era seu mestre, e a voz dele
era a única que a jovem havia ouvido desde o seu berço, e que lhe
parecia não a escarnecer ou desprezar. E assim. . . o resto não é
uma coisa muito natural? Natural ou não, eles se casaram. Esta
jovem amava o seu marido; e, jovem e amável como era, podia
dizer-se quase que era o gênio protetor dos dois. De quantas
desgraças tinha-o salvo a sua ignorada mediação oficiosa contra os
déspotas de São Carlos e do Conservatório! Em quantas
enfermidades, - pois Pisani era de constituição delicada, - tinha-lhe
assistido e dado alimentação! Muitas vezes, nas noites escuras,
esperava-o à porta do teatro, com sua lanterna acesa, dando-lhe o
seu robusto braço em que ele se apoiava, para ser guiado por ela;
se não o fizesse, quem sabe, o músico, em seus abstratos sonhos e
desvarios, não se teria arrojado ao mar, em busca da sua ”Sereia”!
Por outra parte, a boa esposa escutava com tanta paciência (pois
nem sempre o bom gosto é companheiro do verdadeiro amor) e
com tanto prazer, aquelas tempestades de excêntrica e caprichosa
melodia, até que, por meio de constantes elogios, conseguia levá-lo
à cama, quando ele, no meio da noite, se punha a tocar. Eu disse
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que a música era uma parte desse homem, e esta gentil criatura
parecia ser uma parte da música; com efeito, quando ela se sentava
junto dele, tudo o que era suave e maravilhoso em sua matizada
fantasia, vinha mesclar-se imperceptivelmente com a agradável
harmonia. Sem dúvida, a presença dessa mulher influía sobre a
música, modificando-a e suavizando-a; Pisani, porém, que nunca
perguntava de onde ou como lhe vinha a inspiração, ignorava-o.
Tudo o que ele sabia era que amava e abençoava a sua esposa. Ele
pensava que lho dizia pelo menos vinte vezes por dia; mas,
na realidade, não lho dizia nunca, pois era muito parco de palavras,
até para a sua consorte. A linguagem de Pisani era a música; assim
como a linguagem da sua mulher era os seus cuidados! Ele era